domingo, 27 de fevereiro de 2011

A Volatilidade Sobremoderna e a Exposição ao Risco Absoluto

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"... que tenho eu a ver com refutações! - mas sim, como convém num espírito positivo, para substituir o improvável pelo mais provável, e ocasionalmente um erro por outro" (Nietzsche - A Genealogia da Moral).                                                          

A assunção de posições sempre obriga o agente da ação a assumir riscos. Quer sejam elas decisões simples, feitas de forma quase automática, como a em que ponto se irá atravessar uma rua, ou mesmo as de cunho mais complexos, a exemplo das ações que são precedidas por uma análise mais ponderada - a escolha de uma hipótese ou de uma opção de investimento no mercado financeiro, o movimento do espírito humano entre pontos diversos a serem acolhidos como seu destino, mesmo que transitório, é cercado pelo incomodo desconforto gerado pelo imponderável. Além disso a convivência com o  aumento da velocidade do  "verdadeiro tornado falso em plebiscito",  a cada vez que supostas decisões apropriadas são desprovidas de seu caráter de verdade, expõe o espírito a  alteridade radical da transitoriedade.  Em vez do espírito como um espaço fixo que aprisione os conteúdos e as verdades, ele passa  a ser encarado como um "espaço sempre aberto, incompleto e devassado", onde se dá o " jogo da relação presença/ausência ". (Ana Maria Continentino - O Luto Impossível da Desconstrução-Espectros de Derrida - Organização Paulo Cesar Duque-Estrada).  Esta ausência de estabilidade chamaremos volatilidade.

A volatilidade, como medida da velocidade dos tráfegos,  pode ser definida como uma abertura para o movimento dos conteúdos que possuem a mobilidade como uma necessidade intrínseca e essencial. Ela acompanha os corpos orgânicos e seus fluxos como parte indissociável de sua natureza. " Tudo corre, os objetos são fontes. Fluunt, fluviis, undis, aequoris, fluenter, fluendi. Vagas e fluxos de fragrâncias, de vozes voando ao vento, de calor e de frio, de brumas e de amargura...Todas as coisas são emissoras, sem interrupção e em todas as direções. (Michel Serrres - O nascimento da física no texto de Lucrécio, correntes e turbulências, p. 79).

E o que falar do movimento e do desequilíbrio, que aparecem juntos na inquietude arrebatadora do volátil mundo orgânico? O abandono do "nirvana", que assume uma tentativa aporética no espírito em sua descida ou desvio para a morte, aprisionado em uma necessidade de represar os fluxos que o arrasta pelas correntes da circulação, remete, instantaneamente, ao obstáculo que se pretende interpor como intercessão do percurso.  A tentativa da mitigação da insuportável sensação  aos quais estão expostos os corpos e conteúdos materiais, engendra modelos que objetivam estabilizar a irregularidade dos fenômenos que ameaçam a ordem do equilíbrio e expõe a vulnerabilidade dos organismos e elementos vivos.  "Existe  primeiro o equilíbrio e o desvio. Juntos eles produzem fluxos, cuja soma está em equilíbrio, mas apenas relativo, instável. Essa sequência, evidentemente, produz o tempo. Ela conserva, em cada ponto, o desvia da estabilidade" (Ibidem, p. 97). Chegamos aí o conceito de risco.

Impossível seria pensar o risco sem a exata dimensão de dissolução de uma realidade estabilizadora que confere a quietude perdida. Sim, perdida; pois a realidade orgânica com sua insuportável instabilidade e seu movimento inegociável, lança os seres da "bios" em um destino irreconciliável. "Quando os clássicos tentam descrever a vontade , a liberdade, ou a inquietude, desenham muitas vezes um pêndulo ou uma balança. O ângulo infinitesimal do fiel, o menor desvio do equilíbrio do travessão, eis a decisão, a determinação, por vezes a angústia, fora do repouso" ( Ibdem , p.19).  As tentativas de se buscar uma relativização do risco, através de modelos que imprimam um suposto equilíbrio das forças que se cruzam nos movimentos dos conteúdos materiais, geram modelos estatísticos que tentam prever  a dimensão da abertura à impermanência e à alteridade absoluta. A busca por ângulos que possam se colocar entre linhas de abertura é,na verdade, uma tentativa de conjugar os movimentos da vulnerabilidade.  Assim o fenômeno estaria resguardado da insignificação das relações temporária, assumindo um sentido que lhe restituiria a quietude inorgânica.

Assim, o risco aqui assume um significado diferente de uma caracterização probabilística da ocorrência de um evento desfavorável ou da medida numérica relacionada à sua incerteza. Ele passa a ser o elemento irredutível a todo movimento. " Ele faz nascer, ele preserva um momento da existência, ele conduz à morte. Ou: ele faz nascer, ele faz se mover...( ibidem, p.97). Ele pode ser considerado o engajamento à alteridade que é própria do movimento, que escapa a toda e qualquer tentativa de apreensão. O risco pode ser tomado como o elemento positivo do fluxo e da volatilidade. O espaço de passagem dos conteúdos que trafegam sem prescindir do equilíbrio móvel que a abertura a impermanência carrega, com a tarefa de garantir sua mobilidade, na exata proporção do potencial especulativo do espaço a se ocupar.

 

 

Chegamos então às conexões sobremodernas. Velozes e instáveis por natureza, assumindo a máxima potência da volatilidade ou da capacidade de que algo apareça e se desmanche com a rapidez de um pixel. A tarefa estabilizante da sobremodernidade, e eu digo tarefa pois o mergulho num relativismo absoluto ou em um niilismo radical parece infrutífero, passa pelo posicionamento em um espaço mínimo da fenda por onde trafegam os conteúdos conectados em rede. Lá onde o espaço assume, definitivamente, uma dimensão de circulação e onde o tempo é carregado de uma potência de instantaneidade que o arrasta à sua realidade paradoxal de "já e  ainda não".  A tentação de se buscar um centro fixo como ponto de origem ou base do movimento é substituída por um jogo contínuo das indecidíveis presenças e ausências dos conteúdos, cuja identificação só pode se dar a partir da leitura dos rastros de seu movimento, e onde os conteúdos orbitam ao redor de um espírito que insiste entre "deixá-los ir"  e o "desejo de apropriá-los".

O risco da sobremodernidade, e aí em seu sentido absoluto, é a abertura para o imponderável, e este assumindo a sua potência violenta de  capacidade desestruturante e desestabilizadora. " A maior força prevalece e passa, derruba uma barreira mais fraca do que ela. A violência é um fluxo majorado que ocupa os cumes, os picos, tudo o que ultrapassa o nível comum..." (ibidem, p. 83). Diferente dos fenômenos naturais regulares é uma "catástrofe que não se deixa apreender pelo cálculo e não pode ser anunciada"( Ana Maria Continentino - O Luto Impossível da Desconstrução, p.70). É o jogo que sustenta o próprio movimento, numa tentativa de antecipação do potencial especulativo de um excedente de forças não relacionadas, geradas pela reduplicação das trocas, que permite intuir a posição futura de um conteúdo a partir da leitura do rastro de sua passagem. Estas forças não relacionadas são carregadas de um potencial subversivo que assume a função de motor nas trocas da economia sobremoderna e imprime um "status" de automotividade nos conteúdos. Como as notas de um velho blues os conteúdos deslocam-se, dançam e se cruzam, e não podem ser localizados em um lugar, a não ser nas relações de suas circulações, pois estes não se localizam na partida nem na chegada, mas no "entre". Como afirma Lyotard "não há mais do que uma enorme desordem em que os objetos aparecem e desaparecem sem cessar, dorsos de golfinhos à superfície do mar, em que a sua objetividade cede à sua obsolescência, em que o importante tende a já não ser o objeto, concreção herdada dos códigos, mas o movimento metamórfico, a fluidez" (Capitalismo energúmeno, p.19)

Onde e de que forma, então, se atualiza esta abertura radical ao imponderável que não permite que se estabeleça "qualquer porto seguro que mitigue a exposição ao risco absoluto? Representar este espaço requer um esforço contínuo de não fixar a sua origem ou determinar o seu ponto de presença. Exige que se trafegue em um deslocamento contínuo, reivindica uma recusa da origem e do centro e uma inquietação que jamais pode aquietar-se. Este intervalo, menor tempo possível de um não-lugar, espaço contraído pela velocidade absoluta, é a posição de um fundamento "nômade, instável e esquizofrênico". Foi esta exposição ao risco absoluto que elevou, nas últimas décadas do sec XX, os movimento dos corpos, muito deles heróis auto-imolados em suas overdoses, a uma violência que abriu, definitivamente, o espaço de desconstrução por onde deslizam os conteúdos da  sobremodernidade. Os códigos delirantes e sua fluidez extraordinária, passando de um código a outro, embaralhando todos os códigos, num deslizar veloz ,  nunca registrando do mesmo modo o mesmo acontecimento, explodiram as topologias determinantes da origem e do fundamento, fazendo da volatilidade seu motor e da exposição ao risco absoluto o sentido a ser perseguido na sobremodernidade. O jogo sobremoderno  busca "suportar o paradoxo, a contradição...enfrentar o caminho barrado e continuar a percorrer, sem as clausuras, as brechas e as margens...desafiar o pensamento, desafogá-lo, tentar libertá-lo, cada vez mais, obrigá-lo a pensar contra si mesmo, assumir-se instável, sempre em movimento, incessantemente aberto, negativo, aporético...estar condenado a ser lúcido, impiedoso, esquartejador, para jamais se render às acolhedoras sereias da certeza, do absoluto, da origem, da presença" (Rosário Rossano Pecoraro - Niilismo, metafísica, desconstrução).

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