domingo, 27 de fevereiro de 2011

Os Movimentos Estéreis

Benditas coisas que eu não sei
Os lugares onde não fui
Os gostos que não provei
Meus verdes ainda não maduros
Os espaços que ainda procuro
Os amores que eu nunca encontrei
Benditas coisas que não sejam benditas
A vida é curta
Mas enquanto dura
Posso durante um minuto ou mais
Te beijar pra sempre o amor não mente, não
mente jamais
E desconhece do relógio o velho futuro
O tempo escorre num piscar de olhos
E dura muito além dos nossos sonhos mais puros
Bom é não saber o quanto a vida dura
Ou se estarei aqui na primavera futura
Posso brincar de eternidade agora
Sem culpa nenhuma

Mart'nália / Zélia Duncan

 

As coisas que delas não se sabem, os lugares ainda não alcançados ou os gostos ainda não provados, apontam para a virtualidade de um tempo onde os conteúdos se movem, sem terem sido atualizados através dos saberes,  sentidos ou retornos. Nele os movimentos não obedecem as dimensões tradicionais da espacialidade ou das marcações temporais, uma vez que qualquer tentativa de apropriação, remeteria as forças a um ciclo, onde a passagem passa a ser medida pelo deslocamento em um espaço economicamente definido, que atualiza as potências a partir do seu objetivo produtivo. Assim, tais coisas estariam ligadas a um tipo de movimento que não se sujeitaria à medida da eficiência da energia/força por ele despendida.

"... o movimento de gozo, em si, desintegrado do movimento de propagação da espécie, seria - genital ou não, sexual ou não - aquele que, ultrapassando o ponto de não retorno, derrama as forças libidinais fora do conjunto e à custa do conjunto, à custa dos destroços e da desintegração do conjunto (Jean-François Lyotard - O acinema - Teoria Contemporânea do Cinema, p.219)

Qual a diferença entre queimar um fósforo para acender o gás para esquentar a água do café ou pelo simples prazer de uma criança que esfrega a ponta vermelha à toa, porque gosta do movimento, das cores e do brilho da chama, nos pergunta Lyotard? A resposta passa por duas conceituações sobre tipos de movimentos, os quais chamaremos aqui de "movimentos econômicos" e "movimentos estéreis", utilizando, de certa forma, alguns aspectos da abordagem Lyotardeana.

Um movimento estéril pode ser entendido a partir da degradação de qualquer objetivo que pretenda apropriar as forças que o sustentam ou por ele liberadas. Assim ele foge do círculo produtivo que reabsorve toda a energia liberada pelo movimento. Numa terminologia da física, uma liberação de energia/força que acaba assumindo um sentido de degradação, de um não-retorno e de um desvio. O consumo desta energia é sempre em vão, não absorvível pelos processos econômicos. Os movimentos não se processam de forma a alimentarem a ordem econômica, a partir da reapropriação da energia produzida pelo circuito do capital: mercadoria-fósforo - mercadoria-força de trabalho - dinheiro-salário - mercadoria-fósforo. A diferença principal entre estes dois tipos de movimentos - os econômicos e os estéreis - é que ao contrário do movimento econômico, que compõe um processo produtivo, cuja energia liberada é reapropriada pelo processo, o movimento estéril se caracteriza pelo desvio dispendioso da energia, em vão, que não é  compensável, mas se resume numa perda ou numa simples degradação.

Esta dualidade segue na linha da abordagem deleuzeana que procura separar o "corpo orgânico", a serviço do organismo e da espécie e o "corpo histérico", com suas produções gratuitas e que escapam do ciclo econômico, e este aqui entendido como o conjunto de movimentos divergentes subordinados a uma totalidade funcional, numa síntese que articula elementos numa organização cíclica a serviço do  lucro e do retorno. O corpo histérico, seria o "corpo sem órgãos" de Aurtaud, que se opõe menos aos órgãos do que à organização destes em um organismo. E o sentido de histeria aqui, remete a uma onda de amplitude variável que percorre o corpo e traça nele zonas e níveis, segundo as variações de sua amplitude. Assim, a energia despendida pelo corpo histérico encontra-se com as forças exteriores a ele, numa onda e num determinado nível de sua superfície, formando um órgão provisório, que "só dura o quanto durarem a passagem da onda e a ação da força, e que se deslocará para se situar em outro lugar" ( Gilles Dleuze - Francis Bacon -  Lógica da Sensação, A histeria,  p.53  ). Esta referência  ao quadro de histeria, como este foi formado pela psiquiatria, com suas contraturas e paralisias, hiperestesias ou anestesias migrantes e orientadas de acordo com a passagem da onda nervosa e com os fenômenos de precipitação, antecipação ou atraso, aponta um movimento que segue de acordo com as oscilações da onda antecipada ou atrasada.

Os processos econômicos reivindicam a "eliminação dos movimentos aberrantes, das despesas vãs, das diferenças de pura consumição - compostos como um corpo unificado e propagador, um conjunto unificado e fértil que transmitirá o que veicula em vez de perdê-lo... acaba por aferrolhar a síntese dos movimentos na ordem dos tempos, a representação perspectiva na ordem dos espaços" (ibdem, p. 223) . Tais processos se traduzem nas exigências de formas impostas a qualquer matéria e o assentamento do diverso sobre a unidade idêntica, quer seja na política, na música, na arquitetura, na pintura ou no cinema. Qualquer forma de expressão que seja caracterizada por um movimento econômico deverá considerar o binômio lucro-retorno, que limita e disciplina os movimentos, subordinando-os e circunscrevendo-os em um sistema ou conjunto determinado que possa, sempre, reabsorvê-los no final.

Já tivemos a oportunidade de abordar aqui a divisão taxonômica que Deleuze busca imprimir às imagens do cinema, chegando a dois grandes grupos que as sintetizam: a Imagem-Movimento, sustentada pelo esquema sensório-motor e a Imagem-Tempo, permeada pelas situações ópticas e sonoras. De todos os pontos da análise deleuzeana acerca deste dualismo que o levará a relacionar estes "dois grandes grupos" de imagens ao que ele denominará de "cinema clássico" e "cinema moderno", destacamos a afirmação do plano da Imagem-Tempo, que sem carecer de uma decupagem que permita trazer os desvios para o centro da narrativa,  carrega os extremos da imobilidade ou do excesso de movimento. Essa abordagem toca a de Lyotard quando este propõe a idéia das intensidades gozosas em contraste como os objetos consumíveis-produtivos, reivindicando um cinema que cesse de ser uma força da ordem a reivindicar a renúncia dos excessos libidinais perversos, a eliminação dos movimentos aberrantes e das despesas vãs, em favor de um ciclo produtivo.

O ciclo produtivo se encerra nas formas funcionais do organismo e do corpo orgânico, cuja tarefa é subordinar todos os movimentos pulsativos parciais e estéreis divergentes à uma unidade produtiva. Aqui, mais uma vez, recorremos aos discursos da impermanência e da indecidibilidade para abordarmos  os movimentos estéreis citados por Lyotard, como um jogo de conteúdos em processo de desconstrução, interruptores de conexões, a partir dos desvios e da decomposição das forças que os atravessam e que só podem ser identificadas a partir dos rastros de um processo estéril de pura consumição. No fim cabe compreender como estes movimentos se encaixam nos fluxos e de que modo são conjugados e expressos pelas formas que sustentam as velozes trocas sobremodernas.

As alterações que se processam nas trocas entre as formas de conteúdo e formas de expressões, se intensificam a partir do aumento da velocidade impressa à estas trocas, pelos fluxos "real-time" da realidade sobremoderna. A pós-modernidade conviveu com a possibilidade de ruptura de uma ordem narrativa que buscava apoiar-se em um centro fixo dos "meta-discursos" e abriu os espaços vazios e acentrados, que possibilitaram o tráfego por ex-apropriação, fruto de uma "fidelidade infiel"  permitindo a apropriação dos conteúdos que respeitasse sua exterioridade infinita e a necessidade de deixá-los ir, numa ausência que se prolongava infinitamente. Com o advento dos eventos em "tempo-real", das "chegadas sem partidas" e dos "(não)lugares", o "já e o ainda não", com toda a subversão e ruptura  que o discurso da impermanência trouxe para um mundo centrado em uma narrativa orgânica, tornou-se parte inalienável dos processos de velocidade absoluta.

As aporias pós-modernas assumem um caráter constitutivo dos fluxos sobremodernos, onde os antigos paradoxos vão assumindo uma natureza aderente à realidade das trocas que se processam na tramas de uma rede global. Os simulacros passam então de elementos subversivos e de desequilíbrio das formas essenciais a imagens imprescindíveis aos processos do cyberespaço. O real parece cada vez mais indissociável das imagens que chegam à retina através das linhas e dos pixels das transmissões digitais. Se numa perspectiva bergsoniana a consciência já era tida como parte do todo por ela percebida, num conjunto de imagens que formam o universo material, na perspectiva sobremoderna ela assume um caráter de interface ou de elemento decodificador, transpassado pelas tecnologias da comunicação.

Virilio nos brinda com a constatação de que na base dos fluxos sobremodernos está  a fuga das imagens que perderam o seu suporte material e cuja duração reside apenas na "persistência retiniana"  onde o "eu vejo" foi substituído pelo "eu vôo" de uma "interface ótico- eletrônica funcionando em tempo real" (Paul Virilio - O Espaço Crítico, p. 19 e 20), fundamental para a mutação radical da percepção do mundo, como nos mostra o trabalho de Vicky Muniz, nas artes plásticas, e seu jogo constante com a escala que define a proximidade ou o distanciamento dos olhos que contemplam as imagens trabalhadas pelas técnicas visuais, onde as retinas passam a ser moldadas pelas biotecnologias, a partir das simples ceratotomias radiais ou dos feixes de lasers que trazem as imagens para o seu foco. As transmissões das imagens e a apresentação instantânea dos dados, através das câmeras ultra-rápidas que capturam milhões de imagens por segundo e dos instrumentos de teledetecções, reorganizam a aparência e a medida do sensível, trazendo a transparência do ecrã para o lugar do olhar direto, propiciando uma transmutação dos objetos observáveis a partir da teleobservação e da telecomunicação dos dados da imagem,  acabam suplantando as percepções imediatas. A dimensão digital do ponto da imagem eletrônica assume uma importância fundamental "em detrimento da linha, da superfície e do volume, dimensões analógicas ultrapassadas".(ibidem, p.25)

Tais procedimentos alimentam-se dos fluxos disjuntivos, conectados ao infinito, a partir das inúmeras possibilidades combinatórias que a aceleração do processamento dos dados tornou possível. Os processadores e suas  "teras capacidades" de leitura dos bytes que trafegam nas redes sobremodernas, abrem (cyber)espaços de circulação onde as forças não relacionadas ou energias degradadas são a base do equilíbrio do fluxo e a condição de sua mobilidade. Este excedente virtual, descompromissado com o ciclo produtivo de caráter econômico, aponta a fuga de uma imagem instável, cujo tempo de sensibilização escapa a consciência imediata, pela ultrapassagem dos milissegundos necessários à sua atualização. O simulacro, então, aparece como única possibilidade de intermediação entre a realidade e a retina, onde o tempo escorre num piscar de olhos e dura muito além dos nossos sonhos mais puros, onde podemos, então, brincar de eternidade agora sem culpa nenhuma.

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