domingo, 27 de fevereiro de 2011

A Ordem da Virtualidade Unidimensional

Painting (Francis Bacon - 1946)

                                      Painting_1946           

   Man in a Cap (Francis Bacon - 1943)

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Faz-se necessário, desde já,  definir o conceito de virtualidade com o qual iremos trabalhar daqui pra frente, tecendo alguns comentários, a priori, acerca do processo de virtualização que acomete a sobremodernidade.

Aproximando-nos da filosofia escolástica que definia o virtual como um conteúdo que existe em potência e não em ato, o primeiro passo é conferir-lhe um estatuto de realidade sem o qual cairíamos na enganosa oposição entre este e o real que erroneamente reivindicaria uma ausência de realidade dos conteúdos virtuais. Aproveitando a distinção efetuada por Pierre Lévy, diríamos que a principal oposição, que nos ajuda a entender o conceito de virtualidade, está feita entre o virtual e o atual.

Contrariamente à dimensão do “já constituído”, do “estático” e do “determinado” que subjaz aos conteúdos atuais, o virtual explora um “complexo problemático”, "nó de tendências"ou a "mobilidade das forças" que no processo de virtualização dos conteúdos, eleva à potência as entidades consideradas, deslocando seu centro de gravidade, que passa a encontrar sua consistência essencial num campo de problematização. Assim, segundo Lévy, "virtualizar uma entidade qualquer consiste em descobrir uma questão geral à qual ela se relaciona, em fazer mudar a entidade em direção a essa interrogação e em redefinir a atualidade de partida como resposta a uma questão particular " . [1]

Conseqüentemente, o conceito de virtualização, uma vez relacionado a um processo de determinação que redefine uma atualidade qualquer e na dimensão da exploração de um novo problema, ressalta o grau de fluidificação entre as distinções já instituídas nos conteúdos atuais. A partir daí ela abre a possibilidade de evocarmos a dimensão do problema como um desprendimento do espaço físico ou geográfico ordinário e do tempo cronológico do relógio e do calendário; espaço não determinado ou não designável, onde fica ressaltada a ubiqüidade e a simultaneidade dos eventos e a possibilidade de seu processamento em uma única dimensão.

A perspectiva de uma única dimensão já tinha sido colocada, mesmo que de uma maneira diferente, por Herbert Marcuse no seu conceito de "Unidimensional Men". A concepção marcuseana estava carregada de  crítica social contra o modelo que se estabelecia a partir de uma ideologia específica. A Sociedade Industrial pode ser definida como a sociedade tecnológica, do artificialismo, da racionalidade institucional. É a sociedade sem oposições, de nivelamento. O filósofo alemão utiliza a expressão "sociedade unidimensional"  que segundo Marcuse era  um sistema e um modo de produção dominante exercendo sua influência sobre as consciências humanas.

No seu “A Ideologia da sociedade industrial” (One-Dimensional Man, 1964), Marcuse afirmava que a sociedade unidimensional - ao contrário da bidimensional, onde classes dominantes opõem-se às classes dominadas - caracterizava-se por sua capacidade de absorver as classes subalternas, tornando-as não-contestadoras. Desta forma, a idéia de Marx de que o operariado industrial, o moderno proletariado, seria a força motriz da revolução socialista não se verificava em sociedades do capitalismo tardio como a norte-americana. Nela os trabalhadores eram acomodados, seduzidos pelo consumo e pelos bens materiais e inseridos numa única dimensão. O desenvolvimento técnico era, segundo ele, o principal culpado por um sentimento de que o sistema vigente seria capaz de gerar condições de satisfação das necessidades fundamentais da sociedade e a perspectiva destacada por Marcuse era a da “homogeneização”, numa ordem, que segundo ele, destruía o potencial de singularização e todo o potencial subversivo das minorias.

Ao utilizarmos novamente o conceito de unidimensionalidade, gostaríamos de fazê-lo numa perspectiva diferente. Embora reforcemos a perspectiva da homogeneização levantada por Marcuse, incluímos aí, um paradoxo típico da sobremodernidade: ao mesmo tempo em que a velocidade cada vez maior das conexões interliga os diversos conteúdos, audiências e públicos, criando uma interdependência local, ela traz consigo a multiplicação das reivindicações de singularidades. “O paradoxo do mundo contemporâneo, ao mesmo tempo unificado e dividido, uniformizado e diverso...”. [2]

A ordem social sobremoderna aponta para um movimento de captura dos acontecimentos, distribuídos em diferentes pontos, que produzem multiplicidades achatadas em um mesmo plano, onde os saltos ou rupturas se estendem em uma única dimensão ou numa virtualidade unidimensional.

A sobremodernidade carrega o paradoxo que exprime uma capacidade de homogeneização e interdependência dos acontecimentos, assim como reivindicações de singularidades que trafegam em diferentes direções. A sobremodernidade carrega o germe da dissolução das fronteiras e dos entraves para a livre circulação, que originalmente apontava para um fluxo cujo movimento se dava do centro para as periferias. A mudança do sentido da ordem reside na compreensão de uma realidade unidimensional que figura como elemento motriz de uma circularidade difusa, onde o aumento na velocidade das trocas achatou as dimensões de espaço e tempo, permitindo que todos os conteúdos trafeguem sem uma partida, que acaba funcionando como premissa de uma “chegada generalizada”. 

“Atualmente, com a revolução das transmissões instantâneas, assistimos às premissas de uma chegada generalizada aonde tudo chega sem que seja necessário partir; a liquidação da viagem (quer dizer, do intervalo de espaço e de tempo) do século XIX, volve-se neste final do século XX em eliminação da partida, perdendo assim o trajeto os componentes sucessivos que o constituíam, em benefício, unicamente da chegada”. [3]

Por virtualidade unidimensional, entendemos todas as relações de possibilidades que se processam nos diversos âmbitos, esferas e segmentos constitutivos da ordem social, em sua dinâmica relação com os indivíduos que dela fazem parte, distribuídas no sentido de uma única dimensão subjacente. Esta dimensão subjacente se caracteriza pelo alto grau de desterritorialização dos indivíduos e das trocas que se processam sob a égide de uma multiplicidade circulante. A inexistência de territórios fixos, de limites demarcados e a presença de uma traficância volátil, que permite a circulação de um fluxo em velocidade crescente, cria a perspectiva de uma única dimensão, onde a repetição dos acontecimentos e a conexão dos corpos abrem novas relações de possibilidades em um mesmo plano, sem alterar sua dimensão.

A sobremodernidade propiciou a multiplicação de linguagens menores, servindo na efetuação de importantes transformações no sentido de ordem, a partir de uma máquina social interconectada em uma rede global, onde os “muros”, mais do que derrubados, foram transpassados, fruto do desenvolvimento da tecnologia e do aumento da velocidade das conexões. Longe de constituir uma visão teleológica, este novo sentido de ordem global aponta para um sem número de possibilidades, obviamente sem conotações de utopias sociais do porvir, mas que “submetem a potência de criação e de realização de mundos possíveis a sua própria indeterminação”.

Quando falamos em relações e possibilidades, nos referimos à aposição de possibilidades na esfera individual em sua interação dinâmica com o coletivo, e este (coletivo) enquanto todos os seus movimentos, avaliados sob a ótica das relações do universo político, da evolução constitutiva do pensamento e das trocas materiais que se processam a partir de uma dinâmica produtiva. Na sobremodernidade a interação entre o individual e o coletivo nos remete a um movimento que se processa em espaços unidimensionais, alinhados sob a égide da veloz traficância dos signos, sentidos e enunciados, onde as resistências parecem cada vez mais minadas, tanto no sentido histórico-social, quanto no subjetivo-individual. A queda dos "muros", e estes não limitados a movimentos­ políticos singulares, mas ampliados às próprias relações que compõe o universo de trocas entre o indivíduo e o coletivo, imprimiram uma traficância de velocidade crescente.

Contudo, a constituição de uma ordem, portadora de diversas possibilidades, apresenta-se como explosão de multiplicidade capturada em uma única dimensão e enfatiza um paradoxo: o paradoxo da multiplicidade unidimensional, espaço onde tudo circula, mas ao mesmo tempo, permanece no mesmo lugar. Felix Gattari já identificava esta multiplicidade unidimensional, apontando para o que ele chamava de paralisia da subjetividade. “Tudo circula: as músicas, os slogans publicitários, os turistas, os chips da informática, as filiais industriais e, ao mesmo tempo, tudo parece petrificar-se, permanecer no lugar, tanto as diferenças se esbatem entre as coisas, entre os homens e os estados de coisas. No seio de espaços padronizados, tudo se tornou intercambiável, equivalente. Os turistas, por exemplo, fazem viagens quase imóveis, sendo depositados nos mesmos tipos de cabine de avião, de pullman, de quartos de hotel e vendo desfilar diante de seus olhos paisagens que já encontraram cem vezes em suas telas de televisão, ou em prospectos turísticos.” [4].

Nesta nova Ordem, a captura do devir se dá através de um movimento que reduz os espaços, dado o aumento de velocidade das trocas e conexões em uma complexa rede. Nela são gerenciadas, de forma fragmentária, suas atividades criadoras de sentido, que se repetem e se interconectam na criação de um padrão unidimensional de cultura que chamamos de cultura unidimensional. Uma cultura unidimensional é uma dimensão que modula os diversos significados e as diversas possibilidades, através de um diagrama que orienta a flexibilidade do movimento dos corpos e da produção de subjetividade.

 Cultura unidimensional pode ser entendida como o arranjo de agenciamentos individuais e coletivos intercruzados no espaço e no tempo, sendo este tempo não encarado como linearidade progressiva, mas sim como um fluxo de acontecimentos, e o espaço como palco dos encontros temporais que dá um sentido à ordem. Se o sentido puder funcionar como conjunto de possibilidades de expressão que intervém nos conteúdos, então esta ordem se encontra numa dimensão que assume suas próprias significações, cada vez mais voláteis, referendando ações e abrindo possibilidades que se bifurcam e se superam a cada novo acontecimento, de modo cada vez mais veloz, criando um código de expressão de uma multiplicidade que aponta para o infinito.

A máxima expressão desta multiplicidade pode ser entendida a partir de um novo significado, posto para o espaço e para o grupo social, que passam a ser identificados, respectivamente, como não-lugares e público (ou públicos), num processo de fragmentação que mantêm juntos os conteúdos e suas subjetividades diversas em nichos, espaços de circulação, conectados à distância, numa extensa rede, onde a velocidade crescente da transmissão reduz as distâncias e cria novas possibilidades que se propagam simultaneamente a diferentes audiências, que participam, simultaneamente, de públicos diversos.  Neste novo espaço social, a partir do multipertencimento dos indivíduos a diferentes públicos, aliados à ação contínua dos enunciados sobre eles, no jogo da dinâmica social que conta com a ação de forças infinitamente multiplicadas. Estas forças se distribuem a partir de uma organização molecular, onde a multiplicidade das partículas infinitesimal que constituem os corpos e suas relações aponta para a unidimensionalização de sujeitos e objetos.

Este multipertencimento pode ser ilustrado através da abolição de espaços de bipolarização onde dimensões como esquerda/direita, idéias intervencionistas/liberais, e movimentos tipo socialista/social-democrata se confundem, dada a intercambialidade das subjetividades, a multiplicidade dos espaços e o multipertencimento das audiências que impede a fixação de lugares que carreguem um simbolismo indenitário e onde se possam determinar sujeitos e objetos. Os enunciados flutuam e se cruzam em espaços de dimensões infinitas, numa velocidade vertiginosa, encontrando corpos que se relacionam através da ação de forças alternantes, em territórios que se desfazem e se recriam num menor espaço e tempo possível. “As idéias são exatamente os pensamentos do Cogito, as diferenciais do pensamento. E assim como o Cogito remete a um Eu rachado – rachado de um extremo a outro pela forma do tempo que o atravessa -, é precioso dizer das Idéias que elas formigam na rachadura, que elas emergem constantemente nas bordas dessa rachadura, saindo e entrando sem parar, compondo-se de mil maneiras.”[5]


[1] Pierre Lévy, O que é o Virtual? – Editora 34, p. 18

[2] Marc Augé – Sobremodernidade: do mundo tecnológico de hoje ao desafio essencial do amanhã – Socieade Midiatizada, p.99

[3] Paul Virilio, A velocidade de Libertação – Relógio D’agua, p. 38

[4] Feliz Guattari – Caosmose – um novo paradigma estético, p.169

[5] Gilles Deleuze – Diferença e Repetição, p. 278

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