domingo, 27 de fevereiro de 2011

Indecidíveis Presenças e o Jogo das Sensações Impermanentes

 

A tua presença
Entra pelos sete buracos da minha cabeça
A tua presença

Auto Retrado FB
Pelos olhos, boca, narinas e orelhas
A tua presença
Paralisa meu momento em que tudo começa
A tua presença
Desintegra e atualiza a minha presença
A tua presença
Envolve meu tronco, meus braços e minhas pernas
A tua presença
É branca verde, vermelha azul e amarela
A tua presença
É negra, negra, negra
Negra, negra, negra
Negra, negra, negra
A tua presença
Transborda pelas portas e pelas janelas
A tua presença

Auto Retrato FB2

Silencia os automóveis e as motocicletas
A tua presença
Se espalha no campo derrubando as cercas
A tua presença
É tudo que se come, tudo que se reza
A tua presença
Coagula o jorro da noite sangrenta
A tua presença é a coisa mais bonita em toda a natureza
A tua presença
Mantém sempre teso o arco da promessa
A tua presença

 

FB Auto Retrato 1 Francis Bacon AR2 Francis Bacon Auto Retrato 3

Acabo de assistir a um sessão de "Feliz Natal"  (filme que estreia Selton Mello como diretor). Coincidentemente, assisti, também este mês, o "Shadow" do Cassavetes. Sem mergulhar nos detalhes dos filmes, eles impressionam pela forma como o corpo é colocado no centro dos acontecimentos, capturando e secretando todo o sentido e a ação, assumindo a dimensão do acontecimento por si só em toda sua superficialidade. Coincidentemente, também, aconteceu, em São Paulo, uma exposição do Bob Wilson, que juntamente com Artaud (cada um à sua época) valoriza, ao máximo, a  dimensão do gesto na construção da espacialidade que aponta os sujeitos moventes e a instalação do sentido de “personagem” em suas peças.

Os  câmera claustrofóbica de Selton Mello, em Feliz Natal, revela figuras chapadas em um fundo negro sempre a engoli-las. Figuras/corpos que não param de brilhar pelos seus poros estilhaçados. Fendas abertas pelas quais jorram uma contínua  presença  de coisas sem paz, que agridem e invadem os sete buracos da cabeça do espectador, espalhando-se e impregnando o espaço diminuto que sobra para este se posicionar. Espaço da impermanência, onde as sensações se alternam pelos graus e níveis de cada vibração e seu momento pático.

O sentido de presença a ser perseguido aqui, não se confunde com um objeto tridimensional que ocupa um espaço geométrico e que pode ser representada nas dimensões de altura, largura ou profundidade. Ao contrário, a presença da qual se pode extrair o cerne da linha argumentativa a seguir tem a ver com a  intuição.  "A intuição de que falamos, então, versa antes de tudo sobre a duração interior. Apreende uma sucessão que não é justaposição, um crescimento por dentro, o prolongamento ininterrupto do passado num presente que avança sobre o porvir. É a visão direta do espírito pelo espírito...consciência imediata, visão que mal se distingue do objeto visto...premendo contra os bordos de um inconsciente que cede e que resiste, que se rende e que se retoma: através de alternâncias rápidas de obscuridade e de luz..." ( Henri Bergson - O pensamento e o movente, p. 29).

A presença de que se trata está liberta da sua obrigatoriedade de narrar ou representar, contentando-se, apenas, com o remeter. E neste processo de libertação ela ergue-se para entrar em contato direto com a sensação. A intuição é sua porta de entrada,  livre de todo mal entendido que possa considerá-la uma faculdade supra-intelectual.  Devidamente redimida de qualquer pecha de irracionalidade, a intuição designa o conhecimento imediato. E essa ausência de mediações jamais retira o  seu potencial múltiplo que se atualiza nas direções diversas por ela assumidas.

Como uma potência virtual que se atualiza através da sensação, a presença carrega a unidade daquele que sente e do que é sentido. A sensação como "o que se transmite diretamente, evitando o desvio ou o tédio de uma história a ser contada" (Gilles Deleuze - Francis Bacon - A lógica da sensação, p. 43).  É através da sensação que os pontos de inflexão da presença se fazem atuais, a despeito dos coeficientes angulares das tangentes que os  cortam.  Eles se abrem como pura possibilidade do indecidível que assume uma exposição ao resultado de uma especulação levada a extremo. Expostos ao jogo de uma ausência que se afasta permanentemente, os pontos de inflexão assumem a característica de uma indecidível presença em todo acontecimento.  Uma  "radical abertura à alteridade que, irredutível a todo e qualquer sistema de orientação, não permite que se estabeleça, a priori ou a posteriori, qualquer porto seguro que oculte a exposição do risco absoluto" ( Ana Maria Continentino -  O luto impossível da desconstrução - Espectros de Derrida, p. 59).

Este risco absoluto permite que se especule até o limite da virtualidade de qualquer conteúdo material. Não porque a certeza de atualização acompanhe esta aposta. Mas o aumento da velocidade das trocas exige que apostas cada vez mais audaciosas sejam feitas, uma vez que o menor retorno por aposta instaura a urgência da multiplicação das tentativas, com vistas a alcançar excedentes que as justifiquem, num espaço cada vez mais diminuto. A quarta casa a direita da vírgula já pode ser considera um conteúdo a se perseguir no jogo do retorno das trocas materiais a uma velocidade vertiginosa. Mas o grande desafio não se limita à exaustão da procura por diferenciais infinitamente presentes, mas à  impermanência dos resultados das "sequências moventes", que reorganiza o excedente de forças não relacionadas dos conteúdos, que funcionam como o motor das trocas sobremodernas.

O menor tempo possível é a realidade que imprime o sentido de urgência na sobremodernidade. Assim a intuição é o sentido da presença capturada de forma imediata nos pontos de inflexão, onde a impermanência eleva-se a enésima potência, e onde se sente o "grito muito mais  que o horror". E para se sentir o grito enquanto presença, carregada da potência do horror  que ele traduz, a intuição se abre ã ação direta da violência, nos diversos níveis da sensação pelos quais esta se movimenta. Entra pelos  buracos da cabeça e transborda pelas portas e janelas do espírito, "como paradas  ou  instantâneos de movimento que recomporiam o movimento sinteticamente em sua continuidade, velocidade e violência" (ibdem p. 47).

A presença se sustenta pelas forças que nela atuam, forças que possuem uma organização mínima que permite o reconhecimento do conteúdo por elas sustentado. Mas a radical impermanência da sobremodernidade imprime um sentido de novidade que se alterna a cada instante das sequências moventes, fazendo como que o reconhecimento da natureza dos conteúdos se de no rastro de sua traficância.  Assim, o aparente paradoxo que perpassa a impermanência, carregado da aparente contradição entre presença e ausência, traduz-se a partir de um movimento espasmódico entre dois movimentos no próprio lugar, que se torna possível a partir da manipulação do espaço, "sempre aberto, incompleto e devassado".  Através das "armas da comunicação que atingem a velocidade da luz ", em uma hiperealidade da  qual a internet é a legítima "personagem principal", produto da velocidade, da instantaneidade e vertiginosa  interatividade de imagens que habitam a circulação sobremoderna, garante-se a mobilidade em um espaço ocupado pelos corpos, potentes  veículos metabólicos.

"Os níveis de sensação seriam domínios sensíveis remetendo aos diferentes órgãos dos sentidos: mas cada nível, cada domínio, teria uma maneira de remeter aos outros, independentemente do objeto comum representados. Entre uma cor, um gosto, um toque, um odor, um barulho, um peso, haveria uma comunicação existencial que constituiria o momento pático (não representativo) da sensação" (ibdem p. 49).

Estes corpos/fendas, capturam o jorro da novidade que coagulam através de uma superfície que se dobra num ritmo que fecha-os sobre si mesmo, para abrir-los, a seguir, para o mundo. Não os corpos a serviço da natureza, essencialmente orgânicos, mas os corpos para além do organismo, o "corpo sem órgãos", que no lugar destes possui limiares, buracos ou níveis nos quais vibra a presença. “Sem boca. Sem língua. Sem dentes. Sem laringe. Sem esôfago. Sem estômago. Sem ventre. Sem ânus. O corpo pleno sem órgãos é o improdutivo, o estéril, o engendrado, o inconsumível. Antonin Artraud descobriu-o, precisamente onde ele se encontrava, sem forma nem figura.(Gilles Deleuze e Felix Guattari - O Anti-Édipo, p.13)

Debaixo da pelo o corpo é uma fábrica a ferver,
e por fora,
brilha,
reluz,
com todos os poros,
estilhaçados. (Artaud)

Esse brilhos são capturados por uma potência que transborda todos os seus níveis e os atravessa; um ritmo que associa-se as sensações percorrendo todo o movimento dos corpos que abrem-se e fecham-se sobre si mesmo e sobre o mundo que eles metabolizam. Estes corpos-acontecimento, dispostos na sobremodernidade num espaço cada vez mais contraído, escoam-se através das velozes conexões em rede. Integrados em uma só dimensão global e separados por uma mobilidade impermanente,  potência de contínua reinvenção, mantêm teso o arco da promessa de se espalhar no campo e derrubar as cercas. A partir de seu caráter fluido e deslizante, estes trípticos achatados em uma só dimensão contraem  os elementos do espaço e do tempo  e modificam o mapa cognitivo do séc XXI.

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