domingo, 27 de fevereiro de 2011

A Virtualização do Tempo ou a Contínua Impermanência

Finja que é amanhã, um ver mais amanhã. Fuja se puder, de vez amanhã de novo. Pois hoje já se foi, ser amanhã ontem mesmo de novo.

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Para compreendermos a dimensão que o tempo assume na sobremodernidade, como um presente inflado ou uma eterna atualidade,  seria importante nos determos nas concepções de tempo que servirão como base para nossa idéia acerca da sua virtualização. A conjugação das dimensões passado, presente e futuro, estão no cerne da teorização sobre o tempo e, portanto, a forma como se organiza a relação entre tais dimensões será definitiva para criação de qualquer definição do tempo, da duração e do instante, todas perpassadas pelo processo da virtualização temporal.

Partamos de uma aparente dualidade entre a duração e o instante, a partir de duas idéias distintas sobre o tempo e sua relação entre suas dimensões. Caso se conceba o tempo como uma realidade encerrada no instante presente, a dimensão do presente aparece como única possibilidade, suspensa entre dois nadas, ficando a duração relegada a uma construção desprovida de realidade, uma vez que esta concepção de tempo destaca a descontinuidade como sua característica essencial. Já uma idéia que confira ao instante um caráter de mero corte artificial da abstração do pensamento, como forma de imobilizar um ponto qualquer da passagem de uma duração que é puro devir, retira do presente qualquer realidade, uma vez que tal dimensão assume um caráter factício, frente à reunião indissolúvel de passado e futuro na idéia do tempo como um bloco contínuo.

Poderíamos acrescentar a esta dualidade uma tentativa de mistura entre o descontínuo do instante e o contínuo da duração, conciliando suas características fundamentais, quer seja numa tentativa de conferir uma dimensão ao instante, quer faça dele um átomo temporal, que conserve em si mesmo certa duração, o que continuaria ressaltando a face descontínua do tempo, pois o instante, ainda assim, seria tido como puro acidente e separado em si mesmo ou, apelando para um misto de espaço e duração, onde a duração se apresentaria como uma sucessão puramente interna, heterogênea, contínua, sem exterioridade misturada a um espaço, como uma exterioridade sem sucessão que introduz seus cortes homogêneo e descontínuos, o que mantem o estatuto da continuidade do tempo como duração dilatada nos espaços descontínuos.

Se acrescentarmos um ingrediente que ficou de fora das combinações precedentes das idéias espaço-temporal, que é a velocidade, e se aumentarmos esta velocidade ao limite do absoluto, acrescentaríamos um vetor que altera as referências que sustentam as dimensões de passado, presente e futuro, já que o deslocamento do movente, a uma velocidade vertiginosa, imprimiria um caráter de impermanência absoluta a cada instante, à própria duração, à descontinuidade e à continuidade em si mesmas. Assim introduziríamos o conceito de uma contínua impermanência.

Neste ponto é importante nos determos no sentido que a duração assume quando trabalhamos como um conceito de tempo que aponta para uma contínua impermanência. Esta perspectiva ressalta duas características fundamentais desta duração: continuidade e heterogeneidade. Retomando o conceito deleuzeano de tempo, como uma ação da memória que retém o passado e antecipa o futuro, num movimento que se dá sempre no presente, esbarramos no conceito de um movimento absoluto engendrado pelo aumento da velocidade das trocas dos fluxos. Esta memória que propiciaria a contração de uma multiplicidade de momentos, “onde o momento seguinte contém sempre, além do precedente, a lembrança do que este lhe deixou”[1], a partir do aumento de sua capacidade de se contrair, faz surgir um tempo que assume uma dimensão de virtualidade. Passado, presente e futuro são contraídos em uma única dimensão de um tempo que assume a potência de tempo real.

O tempo real é o instante contínuo que conjuga a heterogeneidade dos momentos através do aumento da capacidade da memória efetuar contração do passado, presente e futuro em uma única dimensão. Este tempo apresenta-se emancipado do espaço, uma vez que ele não se vincula a lugares ou territórios fixos, mas supõe a circulação contínua dos conteúdos em espaços virtuais. Ele abole o sentido da posição dos conteúdos materiais, uma vez que consegue reuni-los em um único acontecimento.

E é na sobremodernidade que este status de único acontecimento vem assumir sua potência de forma definitiva, através das redes de memórias digitais que conseguem reunir os conteúdos em uma única dimensão de tempo. Se para Bachelard, o passado e o futuro só poderiam ser reconstruídos “apoiando-se unicamente na realidade temporal dada imediatamente ao pensamento, na realidade do instante” [2], sempre numa dimensão presente, para Pierre Lévy é a linguagem, em primeiro lugar, que “virtualiza um tempo real” mantendo aquilo que está vivo “prisioneiro do aqui e agora”, inaugurando o passado, o futuro e, no geral o “tempo com um reino em si, uma extensão provida se sua própria consistência”[3] . Este aqui e agora da realidade do instante assume sua potência de contração na sobremodernidade via as linguagens digitais, permitindo, através da virtualização dos conteúdos, que uma sucessão de instantes se combinem e se desfaçam na pura dimensão de um tempo real e como um único acontecimento.

A veloz traficância dos conteúdos sobremodernos, no plano de um espaço “chapado” em uma única dimensão, liberando forças não relacionadas, que garantem a continuidade do movimento, a partir de uma assimetria especulativa que designa a captura e alocação deste potencial excedente, confere a sobremodernidade um status de contínua impermanência. A partir daí o tempo parece congelado numa espécie de eterna atualidade, onde o presente assume sua potência na ordem da virtualidade unidimensional, onde as “experiências virtuais, as transações e as conexões são muito mais sutis, rápidas e livres”. [4]O horizonte engoliu, definitivamente, o movimento e os conteúdos moventes, dobrando-se, sobre si mesmo, em uma simultaneidade que garante sua mobilidade automotiva.


[1] Gilles Deleuze – Bergsonismo, p.39

[2] Gaston Bachelard – A intuição do instante, p.54

[3] Pierre Lévy – O que é o virtual? , p. 71

[4] Pierre Lévy - O ciberespaço e a economia da atençào ( Artigo puclicado em Tramas da Rede, org. André Parente, p.174)

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