domingo, 27 de fevereiro de 2011

Caetano Veloso, Woody Allen, Almodóvar e a Lógica do Paradoxo

cinema falado Tiros-na-Broadway volver

Voltando a uma discussão que ganhou espaço, há poucos dias, na grande mídia e na blogosfera acerca das declarações de Caetano Veloso sobre Woody Allen, permito-me aqui nada comentar sobre o que ele teria dito sobre Allen, mas o que poderia ter dito. O método consiste em tentar dizer aquilo que estava presente, virtualmente no seu discurso, sem contudo ter sido dito, de fato, naquela oportunidade. Aproveitando que o CCBB realiza a partir desta terça-feira (24.11), no Rio, a primeira edição do projeto CCBB em Cine, que reúne até 6 de dezembro importantes obras do cineasta espanhol Pedro Almodóvar e para facilitar nossa tarefa de entender a lógica com a qual trabalha o personagem principal de Coração Vagabundo, apelamos ao cineasta cujo trabalho serve de contraste a lógica do autor de Tiros na Broadway, cujos filmes também estão sendo exibidos no CCBB até o próximo domingo (29.11) . É justamente este traço de distinção entre os dois cineastas que está no cerne das críticas sobre o perfil woodyalleano feitas pelo autor de Cinema Falado.

Enquanto o espanhol usa e abusa da lógica do paradoxo para solucionar os problemas de suas tramas, o americano trabalha no nível das contradições, onde o ser e o não ser jamais se misturam nos desfechos propostos; estão ali, lado a lado, mas em espaços diferentes. Espaços definidos que não se confundem, no máximo se cruzam, dando a impressão de estarem imbricados, mas no fim assistimos seu retorno à circunscrição que lhes é própria. A lógica das tramas de Allen foi muito bem capturada pelo próprio Caetano em uma de suas poesias na qual tenta traçar um perfil geral dos americanos afirmando que “para os americanos, preto é preto, branco é branco e a mulata não é a tal; bicha é bicha, macho é macho e dinheiro é dinheiro”. Em contrapartida, o regime da indefinição é o que permeia a obra de Almodóvar, onde ser e não ser alternam-se na mesma aparição, de forma que é impossível fixá-los através da contradição pois eles dançam, sem parar, na margem “entre a delícia e a desgraça, entre o monstruoso e o sublime”.

Ao tempo que a contradição fixa, delimita e destaca, o paradoxo confunde, escamoteia e dissolve.

Melhor definir paradoxo, então, para garantir que tudo o que virá depois consiga se relacionar com esta definição a priori, afinal, conceitos dão um contorno, mesmo que irregular, ao fluxo do discurso e do pensamento.

Se tivesse de definir paradoxo, diria que é a coexistência de realidades contraditórias, sem que nenhuma delas reivindique o ser de sua verdade.

Diferente da lógica da contradição que surge na Grécia, com Platão, onde a coexistência entre o ser e o não ser era impensável, a lógica do paradoxo visa o ser por trás da simultaneidade das contradições. Nela, o ser e o não ser ocupam o mesmo espaço sem, contudo, constituírem qualquer unidade, mas sim uma relação disjuntiva que consiste em uma luta, batalha, dupla insinuação ou mútua captura, fazendo deste espaço um espaço de indefinição.

Diríamos, portanto, que a intenção da trama de Allen é expor as contradições como fraturas de uma ordem que insiste em fixá-las em seus espaços próprios, enquanto a do cineasta espanhol é dissolver as contradições em um espaço alternante, mas sempre o mesmo. Da mesma forma que nos filmes de Allen, mesmos os tidos como próximos da lógica almodovareana, as personagens habitam estações distintas, lá resolvem seus conflitos e permanecem nela até o final - a mulher conservadora em busca de um amor; o artista plástico que depende de uma relação doentia para criar (Vick, Cristina e Barcelona); o homem ambicioso que vê no casamento a possibilidade de ascensão social (Mach Point); o escritor em conflito que desce ao inferno (Desconstruindo Harry). Independente da narrativa, o traço distintivo da trama do americano é a contradição.

Já o universo dramático do cineasta espanhol é habitado pelos paradoxos. Nele, não há contradição entre heterossexualidade e homossexualidade, homem e mulher, ordem e caos, razão e desrazão, verdade e delírio. Isto não significa que este mesmo espaço por eles ocupados reúna todos os elementos em uma simples unidade identitária, mas cada um dos elementos carrega, em si mesmo, de forma virtual ou não, inúmera possibilidades. Os personagens de Almodóvar são construídos por uma lógica onde o sentido da solução de seus problemas é dado no próprio contrassenso – o amor paternal da mulher que já foi homem, o elogio da feminilidade autêntica feito por um homem que se tornou mulher (Tudo Sobre Minha Mãe), o cineasta que para poder criar as imagens de uma realidade ficcional precisa ser cego (Abraços Partidos).

Não creio que por tal diferença, um deles mereça ser chamado de “cineasta menor”, mas talvez as expressões que melhor definam cada um deles seja as de “cineasta da contradição” versus “cineasta do paradoxo”. O que vem depois não seria mais do que alianças – de gosto, afinidade estética ou ideológica, onde o juízo valorativo assumiria a função de simples escolha em nada relacionada à lógica do preterido mas a sua divergência em relação à lógica do peteridor. A lógica de Caetano se aproxima, sobremaneira, do trabalho do cineasta nascido em Cárcere. Caetano constrói ao longo de suas obras, um espaço “transgênico”, terra-de-ninguém por onde desfilam personagens paradoxais. Palavras que se apresentam travestidas, quer sob a perspectiva da fonética ou da sintaxe, transformando-se, continuamente e dentro de um mesmo espaço, em outras, com sentidos móveis e intercambiantes.

Projeitinho, imanso, ciumortevida, vivavid

Lambetelho, frúturo, orgasmaravalha-me Logun

Homenina nel paraís de felicidadania

Ao comentar a forma como reproduz seus versos na forma escrita, o velho novo baiano dá a dimensão da lógica utilizada na construção de suas canções. “Sempre hesito ao tentar pontuar uma letra quando a copio (raramente escrevo toda antes de ir cantando). Às vezes desejo fazer como João Cabral, que pontuava seus poemas segundo as regras de pontuação da prosa. Às vezes quero ser como Oswald, que quase não pontuava. Termino na terra-de-ninguém entre o uso de pontuações pesadas no meio do verso e a ausência de pontuação onde a mudança de linha parece fazer às vezes de vírgulas e pontos”.

Arte Nova, um prédio art-nouveau numa margem
Em frente à marina-miragem:
Os barcos na Ria. E depois

Uma taça sobre o pubis glabro, um estudo
Nenhum descalabro se tudo
É sexo sem sexo em nós dois
Menina da Ria
Menina da Ria
Menina da Ria

Desde modo, não causa nenhuma estranheza o olhar do autor de Zie e Zie sobre a obra de Woody Allen, pois ela é fruto de uma perspectiva estética que fita a realidade através de imagens difusas que insistem em se formar fora dos anteparos formais da visão. O cineasta Nova Iorquino, ao seu tempo, embora se volte para as tramas que se embaralham no tecido da realidade que se abre às suas lentes, desembaraça os fios e os projeta sobre os anteparos de uma visão ordenadora. Talvez o problema, se é que podemos dizer que há algum, tenha sido a forma displicente com que esta questão tenha sido colocada pelo Doce Bárbaro e que talvez tenha eclipsado o conteúdo de suas declarações. Mas isso já é uma questão de estilo.

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