domingo, 27 de fevereiro de 2011

O Caminho dos Homens de Duas Cabeças – A Coexistência dos Duplos

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E o meu ser se esgota

na procura patológica

do que nem eu sei o que é

e esse é

não há nunca

em parte alguma

prazer algum

mantra

mito nenhum

que me baste.

(Waly Salomão) 

 

Talvez a melhor forma de testarmos nossa capacidade de compreensão do diferente seja assumir a eficácia de idéias que, mesmo contrárias ao escopo original de nosso pensamento, leva-nos alhures, além da pretensão de nossos discursos sobre os objetos. O que os objetos são, em si mesmos, fora da maneira como nossa percepção os recebe, permanece totalmente desconhecido para nós. Não conhecemos coisa alguma a não ser o nosso modo de perceber tais objetos. Um modo que nos é peculiar e não necessariamente compartilhado por todos os seres.

Este modo peculiar de perceber objetos alterna-se entre as diversas epistemologias (míticas, religiosas, do senso comum ou da ciência) desde muito tempo. Em todos os casos não importando aqui as diferenças que separam as diversas abordagens, o resultado final traduz-se na busca pela ordenação dos objetos percebidos,  advinda da necessidade de sobrevivência e estabilidade frente a avalanche da descontinuidade dos fenômenos da vida.

Prescott Leck, em seu Self-Consistency, para ressaltar esta estratégia de preservação frente ao contingente, dizia: “A habilidade para prever e predizer os acontecimentos ambientais, de entender o mundo em que se vive, e assim a capacidade para antecipar eventos e evitar a necessidade de reajustamentos bruscos, é um pré-requisito absoluto para que o indivíduo se mantenha inteiro. O indivíduo deve sentir que ele vive num ambiente estável e inteligível, no qual ele sabe o que fazer e como fazê-lo...”

Ficheiro:Juan Gris 003.jpg

Ao propor um modelo de percepção dos objetos e um discurso que os traduza, gostaríamos de introduzir nossa empreitada através da constatação original que permeou tudo o que veio a seguir em nossa abordagem. A de que todo movimento de conhecimento acaba sendo um prolongamento dos esforços mais primários pelo estabelecimento da ordem, exigência que se encontra presente mesmo nos níveis mais primitivos da vida. Tal exigência remonta os diversos tipos de sociedades, que por sua vez combina elementos da própria vida orgânica e seu processo de preservação em unidades cada vez maiores, onde a instabilidade representa uma ameaça ao organismo, esteja ele relacionado ao complexo social ou biológico. A partir daí, constroem-se mecanismos que vão delineando o escopo com qual o modelo ordenador confrontará  esta realidade desorganizada, caótica, provisória e contingente, capturando elementos que, codificados e arranjados, servirão para constituir as bases da estabilidade necessária para a perpetuação de cada ordem.

Se a organização da bios encontra no organismo a base necessária para a preservação da vida, a partir de um funcionamento harmonioso das unidades, sistemas e órgãos, é através da razão ordenadora que o socius encontra sua mais eficaz condição de possibilidade.  Como instrumentos estabilizadores, cada um deles, organismo e razão, são a base para a construção do equilíbrio das complexas tramas da vida em sociedade. Assim, a sociedade da razão ordenadora estabelece suas bases e categorias racionais onde o mundo passa a figurar como campo de realidade a reproduzir a linguagem como instância representativa e o sujeito como estrutura representativa. É neste espaço delimitado que a sociedade da razão irá harmonizar as forças e poderes que se relacionam no seu interior e, a partir deste equilíbrio, avançar na conquista da natureza, quer seja aquela  externa aos indivíduos e a sociedade quanto a natureza interior das estruturas biológicas, psicológicas e sociais do mundo dos homens.

A primeira dualidade  está na base de todo o fluxo oposicional  que virá a seguir e surge da necessidade de harmonização das forças em constante ebulição,  se traduzindo no processo de individuação, diferenciação entre a natureza interna e externa do indivíduo no mundo. Esta relação entre um eu e um ou vários  outros, não só humanos,  fora de sua estrutura unitária, demarca a atividade que irá inscrever a passagem e a diferenciação  do fluxo das duplicações oposicionistas, uma vez que as inaugura através da confrontação entre a unidade e permanência do indivíduo que afirma o eu, e  a partir deste ponto passa a dizer o outro. Quem é esse outro fora do eu e onde ele se encontra? Região limítrofe a permitir que o eu não se dissolva em um único plano infinito, onde não mais seria possível nenhuma diferenciação, não só entre este eu e outro, mas entre os lugares, aqui, ali, em cima, em baixo, dentro fora. E como dizer algo do que sou? Pois quando falo já não o faço apenas por mim, pois no meu falar o outo já se encontra e é por ele e para ele que falo. Nesta relação, aparentemente, para que o outro apareça o eu deveria sumir. Mas como, se é a partir deste eu que o outro se torna possível?

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Os duplos sempre estiveram na base da problemática que acompanhou o desenrolar da cena humana. Relação esta que nunca foi simples de ser pensada, independentemente do método que fosse adotado. Havia de se encontrar um termo, lugar ou descrição que permitisse  se estar resguardado das insistentes oposições que flutuam e fazem nelas flutuar qualquer possibilidade da fixação de um sentido claro, indubitável e invariável. Na tentativa de expugnação da incômoda alternância que dificulta a nomeação daquilo que é de cada coisa, a tarefa principal seria salvaguardar aquilo que permanece, no insuportável movimento do desaguar infinito  da trama dos seres da linguagem. Daí advêm a necessidade da determinação de um termo, coisa ou espaço, de onde e a partir do qual fosse possível designar, nominar, separar e conhecer todos os demais termos, coisas ou espaços. Um neutro, um não-designável, imutável e permanente.

A construção dos discursos que irão designar,  nominar e dar a conhecer, enfrentam, também, um duplo desafio: trabalhar com palavras, portadoras em si mesmo de uma equivocidade que faz alternar os sentidos das sentenças e determinar às sentenças que capturem o que permanece de cada coisa, estabelecendo, assim, a possibilidade do seu conhecimento. Como a transitoriedade esta no cerne da própria vida, a forma mais simples de fixar o sentido daquilo que não para de mudar, seria fazê-lo a partir da correspondência oposicional entre a coisa que muda e aquilo em que ela se torna, ou seja, entre a coisa e a não-mais-coisa, entre o ser e o não-ser. As respostas a estes desafios multiplicaram-se ao longo da história do pensamento do homem ocidental, e se circunscrevemos este conflito à esfera do que se identifica como homem ocidental, foi como forma de facilitar nossa tarefa. As tentativas de fixação de um sentido inequívoco se sucederam, sempre na perspectiva de se encontrar caminhos que levassem as certezas para longe das movediças regiões da dúvida e da impermanência. O caminho para a terra prometida, de onde mana  leite e  mel . Contudo, nas catacumbas do processo da civilização, jaziam as forças da instabilidade e da desorganização, execradas do mundo da evolução e do sentido histórico. Carregadas de uma potencia subversiva, elas eclodem nos movimentos  que abalaram as construções absolutizantes e pacificadoras. Com estes movimentos de ruptura surge uma possibilidade que consiste em dar voz aos discursos dos “ homens de duas cabeças”.

As operações do pensamento, desde o início, buscaram estabelecer os critérios com os quais iria se confrontar as forças da natureza, a partir dos quais iriam se representar as sínteses da razão. Desta forma, havia de ser  evitado tudo aquilo que se interpusesse como obstáculo a esta tarefa original. Desde as origens do pensamento grego, estes critérios se relacionavam a capacidade de escolher entre os caminhos, aquele que levasse a verdade. A verdade era a preocupação originária dos primeiros gregos. Contudo, diferente do que se possa imaginar, o oposto do caminho da verdade, ou seja, o outro caminho que com ele compõe uma dualidade, não é o caminho da falsidade, e sim o caminho da dúvida e da opinião, o “caminho dos homens de duas cabeças”, insondável e nunca realizável, uma vez que é impossível fixá-lo. Caminho pelo qual se trilha sem nenhuma segurança, conforto ou paz.

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O Século XX foi o palco por onde desfilaram as potências subversivas que investiam contra a ordem da razão. O funcionamento orgânico do pensamento, e este voltado ao intelecto que visava conservar o ser das coisas que habitavam o meio dos viventes, foi questionado, violentamente, como reação aos esforços da tradição de conservar a ordem pela representação do mundo, da tendência  do pensamento para a verdade e do modelo do reconhecimento e  busca por um fundamento. Como um painel de multiplicidades, dispostas de uma forma que fosse impossível a idéia do pensamento como representação, sua submissão à lei da reflexão e da unificação, uma vez que as linhas da realidade visada multiplicavam-se ao infinito, sendo impossível uma apreensão daquilo que de fato dela permanecesse ou do ser daquilo que ela é. Este movimento culmina num desbloqueio de toda virtualidade, nó de tendências ou problematização, que torna impossível a tarefa de demarcar, determinar ou fixar o real. A realidade passa a coexistir com todas as suas descrições, que por sua vez assumem o status de realidade, sempre incompleta e transitória. Não que tenha havido uma inversão simples das descrições sobrepujando o real, mas ambos passam a se apoiar na ludicidade do jogo que impossibilita até mesmo a localização do espaço que os separa. A coexistência destes duplos transforma-se em uma das marcas recorrentes da modernidade. Afastando-se do par platônico “modelo e cópia”, em que se evidencia a lógica da exclusão, e de um segundo termo decaído, a perspectiva moderna insere-se em um tipo de lógica dúplice da co-existência e sobreposição dos termos.

Eu redijo um manifesto e não quero nada, eu digo portanto certas coisas e sou por princípios contra manifestos (...). Eu redijo este manifesto para mostrar que é possível fazer as ações opostas simultaneamente, numa única fresca respiração; sou contra a ação pela contínua contradição, pela afirmação também, eu não sou nem para nem contra e não explico por que odeio o bom-senso." (Tristan Tzara)

Os castelos das certezas vêm se dissipar com o vapor que sobe da ebulição de uma infinidade de dúvidas, sempre novas e cada vez mais ágeis em alternarem-se. Nesta névoa apontam-se os caminhos por onde trilham os seguidores das dubiedades, imagens que fogem no contínuo do silêncio que as abrem e fecham. Estes ao penetrá-las, misturam-se ao que nelas as falam e as silenciam, no fio escorregadio onde nada pode ser atado. Assim, privilegiam-se, aqui,  as tentativas de exploração deste espaço, lugar ou sentido, onde o provisório assume o caráter de única possibilidade. Porém ao encerrar esta possibilidade em uma única qualquer, rouba-se da transitoriedade o elemento que lhe é fundamental: a provisoriedade. Desta forma, há de se pensar em termos de uma quase-possibilidade, que se desfaz, initerruptamente, de forma que seja impossível fixá-la. Os movimentos da modernidade desembocaram em um limiar, borda ou espaço onde as dualidades, definitivamente, livraram-se do peso da exclusão. Bem vindos à sobremodernidade!

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O ritmo das alternâncias sobremodernas imprime uma velocidade de traficância que é a base da própria provisoriedade. Os elementos aparecem e somem no menor espaço e tempo possível, sem que se possa determinar o fundamento de qualquer permanência. A realidade já não se limita aos objetos percebidos, nem, tão pouco, a representação que deles a razão venha a constituir, como sua imitação ou cópia. Já presente nas transformações  da perspectiva moderna, que visava dar vasão à transitoriedade dos elementos capturados em instantes determinados, a descrição sobremoderna vai além, uma vez que ela desvincula suas produções de qualquer possibilidade de se dizer o real como um objeto passível de ser capturado em sua essência, mesmo que no curso de sua transformação. A sobremodernidade convive com a experiência de exacerbação  e da multiplicação das possibilidades. Se a modernidade colocava em cheque os modelos da recognição ou as representações orgânicas a serviço da preservação da vida, em favor das violentas expressões da singularidade do instante, numa perspectiva de tempo heterogênea , a sobremodernidade desenvolve a capacidade de evocar esta singularidade numa menor fração possível de sua duração. O aumento da velocidade do fluxo das transações e a possibilidade de lidar com esta aceleração do movimento a partir das tecnologias que trabalham com a menor porção possível do espaço e do tempo, concederam a sobremodernidade uma possibilidade de fácil alternância entre os termos dos duplos que continuam no cerne da vida dos homens da linguagem.

A possibilidade de se trabalhar com os mecanismo diferenciais que permitam conferir a originalidade de cada termo, por si só, sem a necessidade de uma busca pela sintetização dos contrários, a partir da negação dos termos opostos, confere o estatuto de uma espécie de suspensão e neutralização capazes de abrir uma perspectiva que proteja o processo do conhecimento de qualquer idealização. Sem modelos, fundamentos ou essências, o padrão sobremoderno multiplica os duplos e os lança  em uma série de projeções que retêm a realidade de cada elemento até o ponto em que ela se desfaz. A cena, então, não mas carece da afirmação de qualquer temo, em sua unidade fundamental ou essencial. Ela é marcada pela coexistência dos conteúdos e expressões, cada qual com sua natureza singular, em sínteses disjuntivas e ações recíprocas que afirmam a potência e o brilho de cada uma delas, no palco onde desfilam múltiplas as formas, imagens e fundos que aparecem e somem. Assim, a desorganização, transitoriedade e instabilidade da contingência dos acontecimentos são seguidos na desorganização, transitoriedade e instabilidade dos elementos do pensamento e do conhecimento. Ao invés de uma estratégia que fixe o ser de cada coisa em transição, instaura-se um pensamento desorganizado, esquizo e nômade, que não cessa de mergulhar na veloz alternância de suas possibilidades.

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