domingo, 27 de fevereiro de 2011

O Tarde Demais como a Quarta Dimensão do Tempo

Vik Muniz - Homem em Cinzas

O Espírito da Sobremodernidade remonta a subversão processada no limiar do século passado, que auscultava os ecos dos ditirambos dionisíacos recitados por Nietzsche. As formas de expressão sentiam os toques dos corpos subvertentes na ordenação de forças que insistiam em atravessá-los, imprimindo um sentido de urgência outrora sublimado pela esperança de uma realização supra, além das fronteiras do visível, táctil ou sensível. O manto da razão ordenadora já não era suficiente para aplacar a irrupção do caos que contava com a legitimação de espíritos que passavam a tê-lo em alta estima. A impossibilidade de qualquer certeza, ao invés de causar angústia ou desespero imprimiu nos corpos um sentido de liberdade, que se abria como o caminho a ser trilhado, o caminho da alteridade. Em 1930 o lógico Kurt Goumldel apresentou seus teoremas que demostravam existir sentenças matemáticas indecidíveis, cujo paradoxo estaria em não poderem ser provadas nem refutadas, ainda que pudessem ser atestadas como verdadeiras. Junto de Einstein, talvez, tenha sido uma das portas do pensamento científico para o caminho da impermanência. A partir daí abre-se a noção de que qualquer objetividade não passaria de um mito, uma convenção, mesmo que necessária sob o ponto de vista da ciência e do desenvolvimento tecnológico, o que aponta para um sentido de incompletude que dominou a cena pós-moderna. A década de 40 foi marcada, também, pelo movimento neo-realista que, no cinema, representou a ruptura com uma narrativa linear, assim como  pelo sentimento de desesperança  ao qual a Segunda Grande Guerra expôs os ideais da razão, do humanismo e da autonomia do sujeito. Além disso o pensamento abria-se a novas formas de investigação, instaurando, no centro da reflexão epistemológica, o erro no lugar da verdade e a imaginação no lugar da razão. Posteriormente, o mundo presenciou uma violenta reação contra a ordem das instituições e do discurso. Os movimentos dos 60, que culminou no maio de 68, imprimiram uma onda de ruptura que fez germinar a semente da alteridade, veiculada nos cenários político, cultural e científico.

Tal sentido de urgência pode ser facilmente capturado nas imagens pós 68. Nos seus planos pode-se perceber o instante pleno, que não carece da montagem e do seu intuito de ordenar a narrativa linear. Neles as imagens elevam os conteúdos a uma singularidade essencial e descrevem o inesgotável, remetendo sem fim a outras descrições. A desconstrução de territórios fixos, cujos limites tinham sido dados por um pensamento que se apoiava num centro organizador do qual partiam as referências para a interpretação e a adequação da realidade material com o discurso, passou a dominar a cena cotidiana. O processo de descentramento remete a um movimento de dissolução que procura trabalhar com um espaço "sempre aberto, incompleto e devassado". Essa abertura traz consigo a necessidade de se abrir mão, de forma radical, dos sistemas de orientação que permitiam estabelecer  bases quaisquer, a priori ou a posteriori, de partida ou de destino, que expugnassem o risco absoluto do movimento, da jornada, da indecidibilidade e do erro.

Um dos aspectos deste processo de desconstrução é a passagem de uma realidade a outra, através da desmobilização daquilo que, na realidade ultrapassada, se dava como resistência e como centro, lugar imóvel e estável, operando um deslocamento que transgride o anteriormente estabelecido. Essa ultrapassagem indica um caminho sem volta e implica uma constatação que traz consigo a dimensão do "tarde demais".

"O que é o tarde-demais? É... quando um homem diz para uma mulher: "puxa, é tarde demais!" Quando um revolucionário diz para os seus soldados: "é tarde demais!" Quando Deus provavelmente disse para a serpente: "é tarde demais!" Tarde demais é que não há retorno, não há volta. Tarde demais é isso: não há volta"(Cláudio Ulpiano - Transcrição da aula de 2/06/1993, O "tarde-demais" como dimensão do tempo).

O cinema neo-realista brindou-nos com uma sublime apresentação desta dimensão do processo de desconstrução com o Filme "Morte em Veneza", filmado em 1971, por Visconti. Nesta adaptação do livro de Thomas Mann, escrito no limiar da Primeira Grande Guerra, Visconti aborda o processo de desconstrução de um artista ao confrontar-se com forças irresistíveis que desmobilizam e deslocam o antigo centro sob o qual repousava seus ideais estéticos.

 

Cena do filme Morte em Veneza de Visconti

Ele era mais bonito do que as palavras podiam exprimir, e Aschenbach (o homem de meia-idade) sentiu dolorosamente, como tantas vezes antes, que a linguagem pode apenas louvar, mas não reproduzir, a beleza que toca os sentidos. (...) Tadzio (o rapaz polaco) sorriu; (...) E recostando-se, com os braços caídos, transbordando de emoção, tremendo repetidamente, segredou a formulação tradicional do desejo - impossível, absurda, abjeta, idiota mas sagrada, e mesmo neste caso honrada : "Amo-te!" (Thomas Mann - Morte em Veneza).

O livro de Thomas Mann e, posteriormente, sua adaptação para o cinema por Visconti, traduzem uma dimensão do tempo, ou melhor secretam uma dimensão do tempo que expressa a irrefutável constatação da impossibilidade de reter sua passagem: o tarde demais. Segundo Deleuze, o tarde demais seria a revelação da unidade da Natureza e do Homem, uma dimensão do próprio tempo que se opõe a dimensão estática do passado, uma vez que por ser puro acontecimento revela o puro devir de um instante pleno. Em Morte em Veneza, Visconti trata  a realidade dinâmica do acontecimento, que contrai todas as dimensões do tempo em um um único instante, sempre que Ashenbach e Tadzo dividem o mesmo plano.

O que significa, então, render-se a  constatação do "tarde de mais". O tarde demais como pura emergência do tempo é muito mais que um sentimento, paixão ou desejo. O "tarde demais" revela a dimensão da impossibilidade de se reter o fluxo do devir. E é ao reconhecer-se dentro dele,  como um rio sem margens, superfície ou fundo, cuja passagem não carece de nenhuma origem ou fim, que surge a constatação da impossibilidade de reter, conservar ou imobilizar qualquer conteúdo. Daí  retira-se a possibilidade de uma imobilidade essencial que possa ser representada como uma realidade  permanente em contraste com a  fugacidade do que se afasta num contínuo. Ao se tentar reproduzir as essências das forças do tempo que tocam nossos corpos através dos sentidos e traduzi-las na imobilidade, quer seja através da imagem ou da palavra, esbarra-se na incômoda constatação da transitoriedade e da impermanência que transforma esta representação numa cópia esmaecida do que já se foi há muito. Assumir o tarde demais como uma dimensão do tempo é uma atitude que provoca, no mínimo, um desconforto. Isto porque significa assumir o paradoxo do tempo, uma vez que o lugar deste instante pleno desterritorializa os corpos da sucessão de qualquer progressão marcada na escala temporal de uma linha reta, bem como de um movimento que leve algures ou alhures. Deste desconforto surge o movimento que assume o deslocamento de um suposto centro,  fazendo da própria mobilidade um sentido que escapa e impossibilita congelá-lo em categorias. O sentido então assume uma mobilidade de uma ausência ou brancura que se afasta continuamente, e o tarde demais como o espanto que conduz  a tomada de consciência de se estar vivo, com todas as contradições que isto representa, e de que já não não há volta.

"o espanto... não é somente maravilha, admiração, surpresa ou susto provocado pelo desconhecido, pelo enigmático, pelo aterrorizador...mas é também o terror incomensurável e irredutível que incute o monstruoso, o disforme, do qual não provém nenhum sinal que possa ser interpretado como algo de não aniquilador, o aberrante que - e este é o assombro maior - não só não é contrário às leis da natureza, enquanto é a própria natureza, mas também não é incompatível com a vida, da qual não sairá em poucos instantes, sendo ele a própria vida e o que nela permanece eternamente. Aquele espanto, a dolorosa tomada de consciência de estar vivo, de ser um existente finito, sem proteção, que assim como o devir, cujos atributos o superam, o atormentam, o fazem tremer, sai do Nada e ao Nada retornará". (Rosário Rossano Pecoraro - Às Margens - Nihilismo, metafísica, desconstrução, p. 49).

A chegada de Ashenbach a Veneza é marcada pelo assombro que a imagem da cidade imprimia em seu olhar que por ela deslizava, quer seja no texto de Mann quanto nas tomadas de Visconti, e pelo seu deslocamento em uma gôndola, cujo conteúdo conduz à sua revelia, por entre os portais da cidade. Após admoestá-lo, sem sucesso, e com um certo desconforto ele pergunta: "Quanto cobra pela viagem? Olhando por cima dele o gondoleiro respondeu: O senhor pagará.” . Após trocar o dinheiro com o qual pretendia pagar o homem, dá-se conta de que ele e sua gôndola tinham sumido. Esta metáfora traz a potência de um pensamento que se apresenta como um revelador de sentidos móveis, impossíveis de serem capturados por um recorte subjetivo representativo de uma idéia essencial, fundadora em si mesma de um centro em torno do qual todo movimento é posto como degradação de um conteúdo original imóvel ou de um destino fixado a priori. Sobra, então, o navegar por aporias e paradoxos, os brancos e os efeitos que escapam das intenções do autor-sujeito. A idéia do tarde demais dirige o pensamento não mais para uma confirmação interior de um sujeito como causa do pensamento ou como uma certeza central da qual não poderia ser mais desalojada,  lançando-o num movimento cujo os espaços se estendem até o limite do sentido original que irá desaparecer, em seguida, sem que se consiga ver a positividade do sentido outro que o substitui, sobrando apenas o vazio no qual desaparece.

A instabilidade, a transitoriedade e a impermanência são formulações que remontam às formas de expressão subversivas que incitaram a desconstrução da linearidade e da ordem do discurso, podendo ser pontuadas ao longo de toda a história do pensamento ocidental. Contudo, foi no final do sec XIX que ganha força o discurso que valorizava a descontinuidade do sentido e a perda de um centro que pudesse funcionar como ponto de partida, fundamento ou destino do pensamento. A velha palavra não parece  suficiente. Isso porque, cheio de significados, o velho signo levava a lugares que  não se queria estar. A leveza proclamada aos quatro cantos, cobra o insustentável peso do indecidível e transpõe os limites da linguagem. Já não se é dono de si, e disto não se duvida, pois que sem dono se flutua melhor. Sem origem, ideais ou destino, só  resta a metáfora do vento, que por nada se fixa  por mais de um segundo. Não uma palavra, apenas o murmúrio, um calafrio, algo que não se poder fazer calar e que ocupa todo o espaço, no entanto, nunca retornando ao mesmo ponto, mas sempre no afastar-se de um deslocamento contínuo que só  permite seguir o rastro do ausente.

 

 

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