sexta-feira, 13 de maio de 2011

A Luz do Cabaré e o Fim do Tango na Vitrola - Sem Choros ou Lamentos

Metaestável

Trilhos

Em Camadas

Através da tarefa de observar os espaços de circulação do  mundo sobremoderno, penso sobre um tema que tem ocupado meu discurso ao longo deste últimos meses: a diferença entre ordem e disciplina. Passando por territórios onde os conteúdos circulantes se esbarram e abrem espaços de significação distintos e tendo como mote da observação a procura pela diferença excedente como fundamento dos atuais processos de virtualização , voltamos a prática de pensar por dualismos, herança que insistimos em não abrir mão. Em trânsito e longe das referências catalogadas em acervos tácteis  atualizados no tempo linear e no espaço extenso do livro, sobra-nos  os (não) lugares virtuais que se nos abrem em um "click". Logo na primeira linha da pesquisa no ciberespaço, surge uma definição para disciplina, que garimpada, parece-nos servir como partida. Diz assim:

"Disciplina pode ser entendida como o esforço para tornar-nos aptos a não nos desviarmos de uma conduta  desejável para o bem comum , mesmo em situações de pressão extrema".

Embora o comum significado  etimológico da palavra disciplina pareça apontar para um conjunto de regulamentos destinados a manter a boa ordem, gostaria de destacar uma diferença que se abre ao nosso entendimento através de exemplos retirados do nosso cotidiano e que podem ser expandidos a uma dimensão ontológica do ser. Segundo Spinoza, ‎"diz-se livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza e que por si só é determinada a agir. E diz-se necessária, ou melhor, coagida, aquela coisa que é determinada por outra a existir e a operar de maneira definida e determinada" (Spinoza - Ética).

Considerando que este bem comum inclui o sujeito da disciplina, em seu processo de atualização no mundo, poderíamos afirmar que a a disciplina conduz  o sujeito da ação na afirmação de sua natureza, e de seus conteúdos desejantes, a despeito das ameaças que, vez por outra, insistem em colocar em cheque esta atualização, exercendo, assim, sua liberdade. As ameaças multiplicam-se por todos os lados e apresentam-se como risco de limitar a plena atualização do sujeito desejante. Seria, então, através da disciplina que ele estaria livre das ameaças e apto a não se desviar do objeto último de sua conduta e da afirmação de suas potências. Logo de saída, devemos nos libertar a errônea interpretação de disciplina como uma imposição externa de um agente ou conjunto de agentes que a requer como algo desejável. Na verdade, a disciplina pode ser vista como um esforço de auto realização, na medida em que  garante o sucesso da ação do sujeito disciplinado. Neste ponto, faz-se necessário introduzirmos o segundo conceito da nossa abordagem dual, uma vez que ele diz respeito ao espaço onde o sujeito da ação é lançado e o ritmo  que se imprime nessa jornada, saber: o espaço do caos. Minhas últimas andanças ao redor do globo me trouxeram a dimensão dessa diferença ao comparar determinados espaços sociais e perceber como eles definem os traços distintivos de cada um dos conceitos. Sem querer aprofundar a análise social desses espaços urbanos e dos processos que os levaram aos atuais estágios de suas configurações, fiquemos como as marcas que os caracterizam sob o prisma da nossa abordagem, onde a ordem surgiria então como o conjunto de limites que se fixam entre e ao redor das conexões caóticas de um fluxo que se expande numa variação contínua, enquanto a disciplina é a força de atualização de terminada natureza, que por si só é determinada a agir.

Caminhando pelas ruas de Berlin constatamos que o território da cidade alemã está marcado pela falta de ordem. Do cacos de garrafas quebradas nas esquinas e ao longo dos trilhos do metrô, rastros de uma passagem contínua de vida, seguindo as calorosas discussões presenciadas no espaço público, quando as forças entram em choque e chegando ao vai-e-vem das pessoas que circulam na cidade, vinte e quatro horas por dia, nos deparamos com a potência de um espaço caótico cuja a força vital o tem empurrado  ao posto de uma das mais dinâmicas e pulsantes cidades da Europa. Contudo, as estações de metrô da cidade não possuem roletas. Os bilhetes são comprados em máquinas de auto-atendimento e validados para aquele dia de jornada, sem que o mesmo seja solicitado ao usuário, que não encontra nenhuma obliteração ao seu acesso, a não ser o seu próprio esforço para não se desviar de uma conduta desejável para o bem comum. A partir daí, diríamos, então, que em Berlin falta ordem e sobra disciplina. Instantaneamente somos remetidos a nossa cidade natal, cantada aos quatro ventos como maravilhosa, mas ao mesmo tempo reconhecida em versos como "purgatório da beleza e do caos". Da desordem da ocupação do seu espaço urbano, ao desalinhamento do seu relevo, o Rio de Janeiro transborda a mesma potência da cidade alemã, talvez com a diferença trazida pelas diversas cores que rasgam a cidade de cima a baixo, oposto do tom pastel que predomina no território germânico. Observando o emaranhado de barracas coloridas e pontos negros que inundam a areia de suas principais praias em dias de sol, temos uma fotografia do coração de uma cidade onde as relações entre seus habitantes se processam na leveza e na velocidade dos contatos que dificultam a criação de vínculos. Ao mesmo tempo, a convivência é dificultada por um comportamento que prima pela exploração máxima desse potencial e leva os indivíduos a práticas solitárias que, na maiorias das vezes se contrapõem, sem que haja uma mediação capaz de leva-la a bom termo. Pedestres esquivando-se de carros em faixas que não passam de sinais decorativos,  sintetizam a luta individual de cada sujeito pelo melhor espaço da ação, que os leva ao impasse da dissolução de qualquer coexistência e faz-nos constatar que no Rio falta tanto ordem quanto disciplina. Como antípoda da cidade brasileira colocaríamos  o Emirado Árabe de Dubai. Suas vazias ruas, impecavelmente limpas e margeadas pelos floridos e exuberantes canteiros de flores ao longo dos jardins que circundam a cidade, mantidos artificialmente sob o sol torturante do deserto, são combinadas com o vai e vem ordenados dos carros em suas vias de perfeito pavimento. A ação é norteada pelo esforço que regula a conduta e que desemboca na coexistência de indivíduos que exploram, ao máximo, o bem comum de um espaço social harmônico. Nessa perspectiva, em Dubai sobra ordem e disciplina.

Imediatamente temos a impressão de estarmos introduzindo uma reflexão ética que poderia desembocar em questões que permeiam o comportamento dos indivíduos no meio social. Contudo seguindo a argumentação spinozista contida na sua "Ética", apelamos para significados que situam a reflexão para além dos códigos de conduta dos indivíduos humanos e nos remetem à ação recíproca entre "formas de conteúdo e formas de expressão", nos movimentos de "territorialização e desterritorialização", das estruturas biológicas, geológicas e sociais, a fim de encontrar-mos os princípios ontológicos de diferenciação constitutivos do processo de emergência do mundo sobremoderno,

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Azul em Fuga

Entre as Mãos de Fumaça

Comecemos distinguindo os processos de subjetivação e objetivação descritos por Deleuze em três sínteses, fundamentais para evoluirmos através de uma argumentação que busca relacionar as forças constitutivas do ser-no-mundo. A primeira dela, chamado por ele de "síntese do eu contraente", se processa de forma passiva, através das sensações do sujeito e imprime em sua alma as excitações provenientes do seu confronto com as forças da natureza, o mundo que entra pelos sentidos, num esquema de ação e reação. A luz que entra pelos olhos, dilata as pupilas e forma as imagens na retina é um bom exemplo para entendermos esta primeira síntese. A segunda síntese é chamada por Deleuze de "síntese  ativa da memória", sendo o processo de fixação que retêm a experiência em registros de blocos de sensações, criando a dimensão espaço-temporal do presente, passado e futuro. A terceira e última síntese e descrita pelo filósofo francês como "síntese do juízo", por intermédio da qual o pensamento elabora os critérios de diferenciação entre o sujeito e o objeto, entre o indivíduo e o mundo, entre a natureza interna e externa ao ser. Seguindo o exemplo do olho e da luminosidade, diríamos que através dos sentidos o olho contrai a realidade da luz, fixa as dimensões temporais através da memória que retêm essa sensação e cria, através do juízo uma separação que coloca o olho do lado do sujeito e a luz do lado do objeto. A partir daí podemos descrever o processo  de constituição e atualização da vida e do mundo. Lembrando que para isso precisamos trabalhar com a categoria de diferenciação entre o conceito de virtual e atual, onde por virtualidade entendemos o conjunto de todas as possibilidade que coexistem simultaneamente na dimensão pré-individual e meta-estável e por atualidade o processo de individuação que se dá na dimensão das três sínteses e que constitui a dimensão da realidade onde as forças da natureza interna e externa dos sujeito se relacionam no campo social produzindo as relações necessárias entre os objetos através de "máquinas produtoras de significados" e por intermédio da ação recíproca das formas de conteúdo e das formas de expressão.

Para entendermos a dimensão ontológica da diferença entre os conceitos de disciplina e ordem, faz-se necessário que os relacionemos aos processos de atualização na ordem social, onde os agenciamentos individuais e coletivos se processam na dimensão do embate das forças que irão constituir as formas do mundo dos homens e onde as conexões manifestam a soma de diferenças de potencial. Teremos, contudo, que busca-la (a dimensão ontológica) nos processos virtuais dos fluxos imateriais, pré-individuais e meta-estáveis do antes-de-ser, fora da dimensão do espaço extenso e do tempo como sucessão e para além da estabilização das contínuas variações do conjunto de possibilidades que coexistem diferencialmente até que os processos se atualizem através dos acontecimentos que fixarão os princípios orgânicos e inorgânicos, em cada uma de suas dimensões individuadas. Este conjunto de possibilidades coexistentes referem-se a capacidade de transformações criativas como um movimento que assume a condição da renovação contínua de mudanças qualitativas, onde cada elemento se transforma sem que mude sua natureza, a partir de uma auto-motividade que independe de qualquer outro fator que determine o seu agir, que não o seu elemento natural constitutivo, que podemos chamar de disciplina de  ser. Tal dimensão  compreende todas as singularidades, mônadas ou mundos incompossíveis que existem por si e para si, sustentando intensivas multiplicidades em contínuo movimento que se referem a um latente e não atualizado estado de coisas.  Diferenciação que acaba lançando as multiplicidades no domínio da individuação,  através da diferença de velocidade dos fluxos que marcam o ponto de passagem onde a inflexão de cada combinação potencial abre-se como energia atualizada que se constitui em  objetos da experiência humana, quer seja uma visão, uma lembrança, uma palavra,  uma proposição geométrica, ou tudo aquilo fora do sujeito que é por ele referido. A questão aqui é que, para encontrarmos a dimensão ontológica a que nos propomos, precisamos colocar em suspenso, mesmo que de forma temporária, algumas das noções que, naturalmente tomamos como axiomas ou pontos de partidas para a construção do pensamento lógico, tarefa tão cara a ciência moderna, como por exemplo a noção de espaço extenso, lugar onde se mensura a posição relativa de corpos rígidos, extensos ou materiais, assumindo a premissa de que matéria significaria qualquer coisa que possua massa, sendo considerado, portanto um corpo rígido que ocupa lugar nesse espaço mensurável geometricamente, ao qual chamamos extensão. Desta forma, os eventos materiais seriam toda a descrição do lugar (ou posição) onde ocorreu um evento ou onde se encontra um objeto a partir da indicação do ponto de um corpo rígido com o qual aquele evento coincide. Adicionalmente, pode-se substituir os lugares pontuados sobre os corpos rígidos através do emprego de sistemas de coordenadas, através de símbolos que indicam as medidas de posição. Todo esse sistema de abstração tem como o objetivo viabilizar a descrição dos fenômenos materiais aos quais os sentidos tem acesso, através das sínteses do processo de subjetivação.

Porém, quando passamos às singularidades pré-indivinuais e inextensas,  na dimensão da virtualidade, precisamos aproximar-nos delas a partir do conceito de intensidades, refirindo-nas a partir de sua diferença qualitativa, para que não nos percamos no infinito conjunto de forças coexistentes, sem que se consiga distinguir os conteúdos circulantes na superposição de cada estado de coisas e sua discreta diferença que nos permite sair do campo da completa indeterminação. Para pensar-mos tal estado de coisas e uma vez que o pensamento encontra-se no reino da atualização, através da síntese do juízo. Um caminho a seguir, surge com a apropriação deleuzeana do conceito de intuição de Bergson, como um método que permite-nos alcançar as diferenças discretas da duração das intensidades no campo do virtual. Nossa tarefa é facilitada a partir das relações estabelecidas na sobremodernidade, era das velozes trocas dos conteúdos, onde a desmaterialização dos fluxos circulantes em uma rede global coloca os conteúdos numa constante fuga. Se apelarmos para os princípios que conduziram as revoluções processadas no final nos últimos dois séculos, em representações que vão da arte a ciência, verificamos que elas (as revoluções) inauguraram uma era onde a fuga de um ponto, espaço qualquer determinado pela extensão; a fuga de uma nota, local da vibração determinada pelo tom; a fuga de uma partícula subatômica, vibração de um quantum de energia, leva os conteúdos intensivos alhures e augures. Onde não subsiste a diferençação, já que não se pode falar em termos de qualquer atualização espaço temporal. Apenas as diferenças intensivas que nos remetem ao caldeirão de uma duração (in)extensa, (a)temporal, sem momento ou lugar, na pura duração do infinito. Daí ser a intuição o instrumento de acesso a esta dimensão de forças ressonantes, potência virtual não mais localizável ou mensurável nos termos e categorias da clássica noção de espaço e de tempo. É através da intuição que o nosso entendimento nos lança no campo intensivo das estruturas dissipativas, onde as oscilações de frações de segundos virtualiza o campo de ação dos indivíduos, não mais localizável do espaço extenso e não mais mensurável no tempo da sucessão. A instantaniedade do processamento das trocas lança a dimensão do atual num turbilhão de múltiplas possibilidade, onde cada singularidade se diferencia a partir da diferença de intensidade das forças ressonantes que compõe as várias formas.  O sujeito da ação passa a "dançar" uma música que nunca termina, pois na verdade ela sempre esteve ali. Mergulhado na dimensão  de todas as possibilidades o sujeito da ação,  quer orgânico ou não, em todas as instâncias do dinamismo que sustenta os movimentos dos corpos materiais, lança mão de ferramentas que volatizam os conteúdos, transformando-os em um arquivo que contrai o espaço e o tempo, na digitalização em bits e bytes. Tal dinâmica não está mais a mercê das categorias da física clássica, ou das formas de expressão que fixam os limites das figuras espaciais, uma vez que suprimiram-se os pontos de suporte das partidas e chegadas e os encontros passam a se dar num ciberespaço e nas linhas de comando do programa. Este mergulho no caos processa-se pela aceleração dos fluxos, que trafegam numa velocidade vertiginosa, onde os sentidos não são mais capazes de reter as imagens da paisagem ao redor, transformada em borrões que não diferenciam os limites das figuras. Sem sustentação no espaço e no tempo o ser assume, definitivamente, o seu elemento natural constitutivo que determina sua ação, por si só, não necessitando da coerção de nenhuma outra coisa, estando totalmente dependente de sua disciplina de ser. "Onde quer que você esteja, em Marte ou Eldorado, abra a janela e veja, o pulsar quase mudo, abraço de anos-luz, que nenhum sol aquece e o oco escuro esquece" (Augusto de Campos).

 

 

 

 

 

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