“ Assim como a vida, tampouco o romance precisa ser justificado, contanto que atinja a zona buscada, a zona hiperbórea, longe das regiões temperadas” (Gilles Deleuze – Crítica e Clínica, p. 95).
O ato de escrever na sobremodernidade parece consistir em constituir um espaço onde se possa ver, ouvir e falar, espaço este exterior ao sujeito de cada um destes atos. Espaço neutro, não vinculado nem às palavras nem ás coisas, onde o signo apareça como via de sínteses disjuntivas e a escritura como rastro da diferença. Espaço outro, outro lugar ou lugar nenhum, na exata medida que este dissolve os limites, as formas e as verdades. Espaço fractal onde os pontos tendem assintoticamente a zero. Deslocamento de ausências que escapam, infinitamente, onde não há nada que não as digam e não remeta a elas ao dizer. Ausências que se deslocam em velocidade vertiginosa. Espaço vertigem, do tipo do equilibrista no Zaratustra, mas com a diferença de que a linha na qual se oscila não se eleva acima do abismo pronto a dissolve-lo, mas segue embaralhada em um rizoma que tem como principal característica o intercruzamento de uma tecitura que faz-se e refaz-se no ritmo de uma trama em movimento. Se a trama nietzschiana tinha como argumento a transmutação de valores a partir da contradição entre elementos dionisíacos e socráticos, afirmando uma síntese pronta a substituí-la, nos discursos sobremodernos as linhas articulam-se num tecido desconstruído e destituído de qualquer necessidade dialética, uma vez que as contradições dos duplos apresentam-se, afirmativamente, como sínteses disjuntivas em um labirinto do qual se escapa e torna-se a entrar, a todo tempo.
As sínteses disjuntivas não visam à superação das contradições entre uma série de duplos que se sucedem no processo de diferenciação entre homem e mundo, indivíduo e sociedade, essência e existência, família e estado, consciente e inconsciente, mas leva estas contradições até o limite, num movimento que faz oscilar e remete, a todo tempo, de um pólo a outro, sem negar a natureza de nenhum dos contrários. O abismo do qual ecoavam as vozes reprimidas, por séculos, definitivamente chegou à superfície. Melhor, o encontro entre abismo e superfície delineou uma dimensão que se funda a partir da convivência dos pólos em uma única dimensão. Já não existem fora, dentro, fundo, sobre. Todas as posições, dispostas espacialmente em pontos específicos, relativizam-se a partir de sínteses que permitem a coexistência dos contrários. Esta posto o non-sens que traduz o conjunto de elementos da cena sobremoderna. Outrora tratados através dos aparatos de decodificação e distribuição das forças de cada conjunto em sínteses que vinham reconciliá-las no seio de uma teoria discursiva ou crítica, os elementos assumiram seu caráter indecidível, dificultando a fundação das universalidades, uma vez que as múltiplas possibilidades de um pensamento que se apresenta, com frequência, estranhamente surpreso e destemperado, explodiram as direções e subverteram os sentidos, tornando-os insituáveis.
Assim a escritura sobremoderna vem buscar uma zona insituável, espaço deslocalizado, (não)lugar das diferenças intensivas, para a evocação de uma voz silenciosa, muda, insonora e sem palavra. A escritura de um sentido inaudito que se constrói no rastro do significante. Sem um espaço determinado, o caminho se faz por entre a produção do diferir, não encontrando aí nenhuma origem ou fundamento mas a mobilidade desta “diferência” (Jacques Derrida – Gramatologia p.29 e 30). Seguindo os rastros de um movimento de ruptura do conceito de unidades essenciais, a escritura sobremoderna se propõe a descrever relações contínuas, diferentes e contraditórias, no seio de suas ambiguidades. A multiplicação dos centros de uma escritura da diferência ilustra a impossibilidade de qualquer significado universal, ou melhor, desvelam lugares que alteraram o quadro espacial da representação clássica, da perspectiva e suas exigências foto-geométricas, a partir de uma postura que pretende não mais se colocar a serviço da palavra ou do pensamento dito idealista que se movia por uma metafísica oposicional. O espaço das estrábicas visões. “A multiplicação de centros exercida no estilo Barroco ilustra visualmente a falta de essência na arte. As muitas volutas, inflexões lineares necessárias, desdobram-se ao infinito sem a nada remeter. Essa flutuação pontual não pode, ao contrário do que fazia a rígida perspectiva, impor a posição do sujeito. O objeto não tem mais gerência sobre o espectador que o observa. Ao invés de conduzi-lo ditatorialmente, tenta confundi-lo com estrábicas visões. O objeto mutante, porém, insiste em impor uma verdade única, a verdade da relatividade da percepção” (Gilles Deleuze – A Dobra: Leibniz e o Barroco, p. 39).
Essa desessencialização leva a escritura a zonas longínquas, inóspitas e inabitadas. Regiões hiperbóreas, “isto de mel e de asfalto, porta hermética nos gonzos de zonzos sentidos presos, ara sem sangue de ofícios..crespa, intata, inacessível, abre-que-fecha-que-foge” (Carlos Drummond de Andrade), cujos territórios abrem-se em movimentos marcados por sínteses, incapazes de reconciliar forças antagônicas, mantendo-as no ápice de sua potência e tensão original. Tensão original de vida, onde o desfecho sempre será surpreendente, contrariando qualquer tentativa de antecipa-lo, reforçando o caráter permanentemente aberto de um espaço de deslocamento, pulsar infinito de chegadas sem partidas. Estes paradoxos acompanham o desenrolar de uma trama que conjuga faces simultâneas de uma mesma superfície. Nela, interior e exterior, passado e futuro, conteúdo e expressão, acham-se em uma continuidade sempre reversível, o que caracteriza o estágio de neutralidade e de esterilidade desta escritura, postura quase que indiferente a todos os opostos. Contudo, esta zona, de forma alguma, se propõe a assumir um manipulação de paradoxos ou a servir um jogo niilista de palavras. Ao contrário, ela apresenta-se, positivamente, como uma terra de estranhamento, onde a carência de pátria liberta as palavras para além dos seus significados originais e o sentido para além de suas referências. Lugar de um jogo infinito de deferimentos que remetem significantes, continuamente, a outros, sem que se alcance um significado essencial, liberando a escritura de qualquer função originária e reconciliatória das palavras e das coisas.
A Terra de Mandelbrot é o (não) lugar da ausência de significados que contenham, em si, qualquer estatuto de verdade. Ali os termos não param de circular e o motor deste movimento é o desequilíbrio de um divergir sem cessar entre eles, que os fazem deslizar um sobre o outro. Deslocamento contínuo de um “ocupante sem lugar” sempre deslocado, em uma instância paradoxal de onde se extrai, continuamente, novos significados. Esta extração se dá, justamente, no espaço entre os sentidos, na tênue linha do limite das coisas e das palavras, limite que se afasta e ausenta no fluxo de cada movimento de significação. Isso remete os significados a um conjunto infinito de figuras de quase-significados, que possuem, cada uma delas, seu próprio conjunto infinito, num processo que se repete infinitamente. A partir desta proliferação infinita, o sentido é isolado de qualquer origem e perde a capacidade de definir um destino final. Suspensa na proliferação convulsiva de quase-significados, em círculos cujos os raios tendem a zero numa repetição infinita, a escritura das zonas hiperbóreas é uma figura fractal.
O rastro do movimento de uma escritura fractal pode ser seguido por entre o labirinto do contínuo que, diferentemente de uma linha que se dissolva em pontos independentes, divide-se em dobras até o infinito, num “continuum” de singularidades adjacentes em relações diferenciais, formando “pequenos turbilhões em um turbilhão e, neles, outros turbilhões ainda menores, e mais outros ainda nos intervalos côncavos dos turbilhões que se tocam” (ibidem, p. 16). Neste labirinto de inscrições, as frases quase loucas, com suas mudanças de direções, bifurcações, rupturas e saltos, seus estiramentos, germinações e parênteses, revelam diácopes que dobram e redobram a superfície de uma linguagem inquieta, longe das regiões temperadas, de qualquer imobilidade fundadora, centro ou certeza tranquilizadora
Nenhum comentário:
Postar um comentário