domingo, 27 de fevereiro de 2011

Do Centro Impermanente

 

" Dar um centro é, por um lado, organizar, orientar, equilibrar um movimento, desencadear as suas forças, permitir o seu envio e libertar o jogo dos elementos no interior da forma total mas, por outro (e ao mesmo tempo), é pregá-lo em um clausura irremediável e opressiva... O jogo revela-se, pois, um jogo fundado, constituído a partir de uma imobilidade fundadora e de uma certeza tranquilizadora, ela própria subtraída do jogo. A partir desta certeza a angústia pode ser dominada ". (Às Margens - A propósito de Derrida - Organização Paulo Cesar Duque-Estrada)

O conhecimento da realidade do mundo no qual o homem se insere, apresenta-se, insistentemente, como um desafio que tem figurado nas diversas etapas da organização histórica da existência humana, bem como de seu pensamento. A partir desta perspectiva, surge uma dificuldade que se coloca de uma forma incômoda. Como atingir este intento, partindo de sua (do homem) clara finitude e perante a insegurança provocada pela instabilidade do fluxo de um devir que perpassa esta realidade, e do qual, sua vida é o principal exemplo?

O homem lançado no mundo contempla seu curso, que prossegue independente de sua existência, obrigando-o a buscar, sob o risco de sua sucumbência, uma integração a este movimento. Como, porém, buscar a estabilidade numa realidade marcada por um ritmo de freqüentes e múltiplas transformações, das quais a sua própria vida participa?

Uma direção, naturalmente apontada, parece ser a construção de um plano, estaticamente imóvel e uno, que expugne toda e qualquer mobilidade, devir ou multiplicidade. Contudo, este somente poderá ser elaborado a partir de uma representação colocada paradoxalmente às originais impressões provenientes de um primeiro confronto, transformando-se em uma tentativa de ordenação desta inerente instabilidade transitória.

Quer partamos das primitivas práticas mágicas, das diversas concepções religiosas, das formações hierarquizadas de Estado, das inúmeras correntes do pensamento filosófico ou dos elaborados construtos teórico-científicos, esbarramos no esforço de se tentar minimizar as incertezas e insignificações da avalanche de uma descontínua transitoriedade. Todo ele se concentra na busca por uma unidade essencial ou universalidades constantes, sendo na esperança de extrair um arcabouço para o mundo, ou na tentativa de obter segurança, a partir da organização e controle do mesmo. Da necessidade de garantir sua sobrevivência, o homem se estabelece num constante confronto com as forças da natureza, fazendo da captura destas forças uma pré-condição básica de sua autopreservação e de seu autodesenvolvimento. O jogo deste controle se processa através de diversos mecanismos que se sucedem no fluxo das civilizações, sob a égide de princípios ordenadores.

Fugindo do caos da insignificação brotam as construções em categorias individuais e sociais que vão preenchendo um escopo para a realidade. Contudo, a ameaça do caos se apresenta de uma forma insistente, exigindo representações em busca de esferas estabilizantes. Esta parece jamais figurar na ameaçadora avalanche da descontinuidade do mundo apreendido pelos sentidos. Sendo assim, a tendência inevitável é o seu transporte para um mundo além da percepção sensível, numa dimensão ontológica, essencialmente ordenada. O ser fica, assim,  resguardado de toda multiplicidade aparente, e a civilização da ameaça do devir.

Porém a marcha do mundo da transitoriedade sugere sua superioridade sobre as construções estabilizadoras, visto que elas necessitam ser constantemente reelaboradas, através de novos dispositivos e instituições. Sociedades primitivas segmentárias são apropriadas e incorporadas pela soberania dos Estados. Cai a verdade absolutizada, resguardada no universo do mito, surge o logos como realidade capaz de harmonizar a verdade ameaçada pelas contradições estabelecidas. Frente ao paradoxo da dúvida, o pensamento desenvolve critérios absolutos para o resgate da unívoca verdade do ser, que se desloca desde a ascensão ao mundo das idéias eternas, passando pelas realidades essenciais, portadoras da ordem em si mesmas, pela eficácia do conhecimento de um espírito absoluto e pelo desenvolvimento de uma racionalidade científico-tecnológica.

Todas estas tentativas visam à apreensão da verdade do ser, como ponto de equilíbrio de uma realidade desorganizada, e se reproduzem historicamente através de específicas organizações no âmbito das civilizações, estabelecendo simultâneas ou sucessivas configurações. Estas configurações históricas se expressam através de organizações na esfera da ordem social. Nestas organizações são harmonizadas as forças que agem no seu interior, como pré-condição necessária à subsistência da ordem em si mesma. Cada organização se estabelece na medida em que consegue realizar o equilíbrio dos poderes individuais e sociais, e entra em declínio, justamente, quando perde esta capacidade de coesão. A composição destes poderes é marcada pela inter-relação de movimentos individuais e coletivos, e pelo processo de interação da realidade indivíduo-mundo, tanto no que se refere à sua natureza biológica, quanto social, determinando um equilíbrio temporário e viabilizando a específica configuração constitutiva de uma ordem, ou o seu sentido.

Uma ordem pode ser entendida como uma dimensão de estabilidade; uma configuração onde se relacionam diversos elementos e onde existe uma variedade de conteúdos em constante movimento. Ela deve ser capaz de organizar o espaço onde matérias diversas se relacionam por intermédio de linhas de articulações, por onde as trocas se dão em diferentes quantidades e velocidades do “... caos do Ser, sempre vivo, sempre atuante, em que uma multiplicidade de formas materializa-se a partir de um sem-número de elementos” [1]. A ordem captura o devir através de modelos que reduzem o número de dimensões infinitas que a multiplicidade abre como possibilidade. Ela define um estatuto para o estado das coisas e para os enunciados, e relaciona os acontecimentos de forma a organizá-los em uma configuração específica.

Ao recuarmos no tempo e apelarmos para uma série histórica, podemos assistir a uma coexistência de modelos e possibilidades dentro de configurações específicas; sistemas dinâmicos organizados sob a ordem de chefes tribais, reis, magos, sacerdotes, juristas, déspotas ou legisladores de Estado.  A história tão-somente traduz em sucessão uma coexistência de devires. Uma ordem planifica um conjunto de relações de produção, quer sejam elas subjetivas, econômicas, políticas ou sociais, que unem, em um determinado momento as matérias heterogêneas, o meio onde estas se relacionam e o código de enunciados dominantes historicamente determinados,  remetendo a um estado de mistura de corpos em uma sociedade.

A base de uma organização social pode ser vista, à luz de todo os movimentos que a antecederam, sempre caracterizados pela ação do devir e pelas tentativas de controle e redução de suas infinitas possibilidades, através de dispositivos de captura do acontecimento, da criação e da produção do novo, a partir de um centro que visa equilibrar os agenciamentos. Os dispositivos de captura do acontecimento em uma determinada ordem se distribuem pelos processos individuais e coletivos, que através de um movimento de troca, vão construindo sentido para uma realidade móvel, mantendo-a em equilíbrio. Estas linhas de articulação funcionam enquanto conseguem escoar o acontecimento e perdem sua eficácia quando o movimento encontra novas linhas de fuga, que irão escoar o acontecimento através de novas segmentariedades. Daí a sucessão de diversas ordens por centros impermanentes, onde as matérias, corpos e enunciados são distribuídos em diferentes arranjos, onde os saltos ou rupturas que se podem detectar no movimento se traduzem em diferentes organizações sociais. Quer seja numa “Ordem Tribal”, numa “Ordem Feudal” ou numa “Ordem Capitalista” cada ordem assume as matizes específicas de captura dos acontecimentos, distribuindo o devir em novas dimensões através de um princípio ordenador do caos.

Em organizações como a de povos nômades, das pequenas  sociedades agrícolas “primitivas”, ou dos Estados Nacionais Modernos, o principio ordenador visa capturar o fluxo do devir que atravessa a máquina social em sua mistura de corpos e conteúdos, expugnando deles a insignificação e os arranjos caóticos. Esta mistura de corpos compreende todas as “atrações e repulsões, as simpatias e as antipatias, as alterações, as alianças, as penetrações e as expansões que os afetam uns em relações aos outros”. Assim, cada máquina social possui seu princípio ordenador que, em última instância, engendra um modo de produção específico destas formações sociais. Mais do que um modo de produção determinado, estas formações sociais compõem-se pelos processos que definem os aparelhos de captura que engendrarão os amálgamas e simbioses, dos quais os modos de produção dependem. Desta forma não é a máquina social que “supõe um modo de produção determinado” mas é a máquina social que “faz da produção um modo”.


[1] Carlyle, Thomas – Selected Writings – On History – p.95

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