sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Faces do Mesmo Sol

Rai das Cores 19122010730 Atrás de Nuvens (Carlos Machado Mobile Photos)

 

Sob o sol do final do século XVIII, Friedrich Hölderlin intentava descrever o espírito de sua época. O Zeitgeist da Europa pelos idos de 1797, segundo ele, carregava um elemento que o alemão foi buscar na Tragédia Grega, a saber: a ruptura entre o homem e os deuses. Para a geração do auge da modernidade ocidental, século das luzes, e do renascimento da razão, o divino ser manifestara-se não mais como seu claro rosto mas com  máscaras  que escondiam a vergonha de ter feito de si um mistério inescrutável às gerações passadas. Aqueles que o contemplavam no mundo moderno o faziam com olhos rasos e cansados de chorar a  distância que lhe roubava a disposição de fitar o mundo criado por sua palavra, agora muda. Seu poetas, sábios e loucos, tornaram-se tradutores da ignomínia de um mundo sem a divindade, onde se perambula por nada mais dever,  a não ser a obrigação de ser humano. Sem nobres motivações, banhavam-se no rio da selvagem natureza e saiam de lá molhados de humanidade, exibindo o despudor da nudez de um deus sem morada. Pois agora, no mundo por ele criado, as almas vagueiam senhoras de si, usurpando seu próprio destino.Esquecendo-se do criador, fazem-se terrenas, numa infidelidade que as torna demasiadamente humanas. Da mesma geração de Schiller, Schelling, Fichte, Goethe e Hegel, Hölderlin viveu em uma Alemanha onde ecoava o grito do imperativo categórico kantiano, que tinha relegado o criador ao mais profundo do seu céu, onde só o sol ousava brilhar.

Todo conceito de geração  pressupõe a ideia de genealogia, que por sua vez remonta o discurso das origens. A não ser que concebamos o conceito de existência como o conjunto de formas que irão determinar os níveis por onde transitarão os conteúdos e os enunciados, ficaremos reféns da tentação de nos aproximar dos desdobramentos temporais como arqueólogos que tentam refazer o caminho até o ponto de partida. Se, contudo, conferirmos à existência um status de crivo espaço-temporal que atualiza as potências e possibilidades, caberá procurarmos nos níveis ou camadas da realidade, as passagens, os cruzamentos e as conexões que fazem da história um embate de forças, e das gerações um composto de formas em marcha sob o mesmo sol, que nunca se cansa de brilhar.

Há poucos meses circulou um vídeo na internet chamado “We All Want To Be Young”, que  trabalha com o conceito de gerações como fases que caracterizam um processo de transformação que se desenrola nas estruturas sociais, a partir de um conjunto de transformações que se processam através da reivindicação de um determinado grupo que funciona como catalizador das mudanças na forma de relacionar as forças que compõe a interação dos indivíduos com o mundo. Tentando descrever as três últimas gerações surgidas após a Segunda Grande Guerra e marcando as semelhanças e diferenças entre cada uma das reivindicações que conduzem  a abertura para as transformações que se processam a partir de uma vanguarda que canaliza as agitações e ebulições subterrâneas, o vídeo procura descrever as transformações em andamento nesse nosso novo mundo, interconectado em rede e onde as transações se processam no menor tempo possível. Para isso descreve o perfil de cada uma das fases representada por sua vanguarda, especificamente relacionada ao espírito de uma época. A geração nascida nos anos 40 e 60, ou os “Baby Boomers”, teria carregado as frustações oriundas da falência de um humanismo que acreditava no pleno desenvolvimento da sociedade e na capacidade do “homem" em construir uma civilização que refletisse a maioridade da razão. Esta geração canalizou a subversão que seguiu latente ao longo do final do século XIX e nas cinco primeiras décadas do século XX, e fez explodir esta lascívia através dos seus solos de guitarra, sexo livre, consumo de drogas e palavras de ordem em nome da paz, do amor e da transformação política. Já os filhos dos “Baby Boomers”, nascidos nos anos 60 e 70, apesar de contarem com o legado libertário de seus pais, levaram a liberdade  de uma vida de prazer e sem culpas para o centro de suas individualidades. Senhores de seu destino, exacerbaram a individualidade como estratégia de afirmação , apoiaram suas construções em estereótipos capazes de definí-los imediatamente e contaram  com o suporte do marketing e da propaganda para se afirmarem em um mundo que tinha virado o palco de seus papéis solos. Finalmente chegamos a última geração cuja definição se mistura com o próprio enredo que está sendo escrito, por estar em plena atuação.

 

 

Sem remontar sua origem como partida, sigamos os rastros dos fluxos através das irrupções, dos saltos e dos desvios por onde trafegaram os conteúdos que vemos hoje passar diante de nossos olhos, em nossa telas de computador ou projetadas como hologramas através dos programas de produção de realidade virtual, como brilhos de um sol que jamais se põe ou nasce, pois sempre esteve lá, pronto a ser capturado pelo espaço e pelo tempo. Se não vemos o seu brilho é porque nos tornamos prisioneiros das formas a priori da percepção sensível que atualizam os conteúdos diante de nossos sentidos. Precisaríamos, então, liberar as sensações para que possamos ingressar em uma dimensão inextensa e atemporal, onde os corpos circulam virtualizados. Para que não nos percamos nesse trajeto, bom seria apelar para um  dualismo metodológico que servirá para apontar níveis ou dimensões de uma mesma e única realidade, onde são apropriados todos os conteúdos, preservando apenas a diferença entre linhas de uma aparição virtual e atual de uma mesma realidade. Como realidade virtual descreveríamos toda existência que se manifesta em termos de possibilidades ou nó de tendências, onde convivem todas as possibilidades juntas, no caos exuberante de coexistência infinita. Já a dimensão atual da realidade caracteriza-se pela individuação dos conteúdos a partir dos limites de espaço e de tempo, onde se dão a ressonância entre um conjunto de frequências relacionadas, num processo dissipativo irreversível. Assim, a realidade virtual seria pré-individual, infinita e meta-estável, já a atual, individual, limitada e irreversível.

Voltemos ao conceito de geração e tentemos descrever as imagens de uma geração que ficou conhecido na literatura especializada como “geração Y” e que chamarei aqui de geração sobremoderna, seguindo os fios de uma trama que se estabelece na dimensão de uma realidade virtualizada, com o devido terror de quem quer declinar o que pretende durar, a partir do “terrível” ponto de ebulição que aceita o selvagem destino humano  de retorno ao vazio,  num mundo enfeitiçado pela estabilidade. A esse grito desumano de noite, olhemos como se fôssemos o sol. Situado no fundo do céu ele responde como do fundo de um poço, com o atrativo espectral de sua partida e promessa de que tornará a brilhar em cada segundo marcado na conta de se tentar descobrir o lado oposto da lua que some e vem trazer o astro rei  de volta, sem pedir licença e sem que se possa dizer não. Olhemos como quem já não se contenta em levar a vida inteira a aceitar monótono passar do tempo, com olhos de onde nascem os mundo que dissipam as bordas das linhas que pretendem circundar o campo de visão e que limitam os lados por onde o infinito passa e circula. Escolha de quem já fez o seu achego no silêncio dos desvios e das alturas por onde trafega um potente e sorridente pensamento. Jato dissimétrico no qual encontramos o velho jogo de ligar os pontos e cruzamos todas as linhas na esperança de que possamos cair na roda do tempo, que reúne num presente contínuo todos os traços do passado e do futuro, estampando os dias que passam e os que ainda estão por vir. Adubo que faz crescer as possibilidades de abrirem-se os abismos por onde irrompem os corpos molhados de eternidade.

25122010769 2512201080725122010799 (Carlos Machado Mobile Photos)

A geração sobremoderna carrega o germe da multiplicidade que floresce como uma explosão dos limites que circunscrevem a realidade, abrindo-se em uma dimensão onde encontram-se, por acaso, as partes que nunca se orientam pelo princípio da totalidade. A representação da unidade do todo é subvertida pelas singularidades nômades, cujos velozes arranjos e dissoluções interditam qualquer tentativa de se fixar o que permanece como elemento essencial, agitando os conteúdos através de derivações que estriam os tecidos e suas tramas. A dimensão de circulação desses conteúdos virtualiza as relações espaço-temporais a partir da velocidade do tráfego e da multiplicidade de conexões, lançando os corpos num vazio de um lugar não geométrico, não extensivo e atemporal; dimensão virtual do espaço liso, amorfo e informal. Já que não possui limites cronológicos ou geométricos a visão não mas representa o que ali está contido, pois as retinas estão vasadas e não existem anteparos para apoiar as imagens, que deslizam em todas as direções. Os olhos passam então a refletir a realidade nas suas diversas possibilidades, sem que a incerteza provocada pela coexistência de múltiplos elementos reivindique uma atmosfera de insegurança, mas fazendo este imponderável assumir-se como motor do fluxo e condição do movimento da energia circulante. O brilho da eternidade que sai dos olhos sobremodernos mistura-se ao desejo por uma vida que nasce do fato de todo dia ser o mesmo dia, iluminado por um sol que jamais se deixa conhecer em seu sempre despertar. Incertos da posição nas conexões em rede, os conteúdos se movem numa velocidade vertiginosa, produzindo chegadas sem partidas e dissolvendo os limites das figuras, que escorregam em todas as direções, em misturas que não se deixam mais saber seus nomes próprios.

A geração sobremoderna é a geração que centrifuga todos os pontos, linhas e partículas, a partir da capacidade de mixar os frequências,  criando novas faixas de ressonâncias que se multiplicam na velocidade da conexão dos bits em rede e embaralham as linhas circulantes numa só dimensão - a dimensão do presente contínuo que não se cansa de correr por não sair do lugar. Nela os frames se espaçam ou confundem-se num rodopio que vai do início ao fim em busca do próximo quadro, que no fim assume sua efemeridade de ser cada vez um e nunca de uma vez por todas, rodopiando no vazio os rastros de cada volta que passa sem fixar nenhum ponto de sua passagem. A capacidade de tornar os elementos atuais em potências que se estendem ilimitadamente é a marca da civilização que se nega a admitir o mesmo, não por ideologia, mas por incapacidade de processar o volume de informações capaz de chegar em um menor tempo possível, fazendo da fragmentação um instrumento de diluição do volume de dados e de suporte transitivo da velocidade do fluxo. A aceleração absoluta dos corpos em circulação gera uma velocidade de escape que, livre de qualquer gravidade, é capaz de reproduzir continuamente o instante, num retorno que faz o tempo e o espaço perderem o estatuto de formas que sustentam a realidade. Se na realidade atual é impossível escapar dos conteúdos individuados no espaço e da limitação da irreversibilidade do tempo, a virtualização da realidade lança os conteúdos de volta a eternidade, onde todas as possibilidades coexistem numa meta-estabilidade do jorro ininterrupto de novidade. Daí não ser necessário apelar para o discurso das origens, uma vez que o ponto, quer seja de partida ou de chegada, pouco importa, visto que não se encontra mais espaço para ele. No seu lugar surgem os cortes de uma ausência que se afasta na sua brancura, carregando com este espaçamento todo o tempo, e este  por sua vez chapado em uma única dimensão. A geração sobremoderna é a geração do compartilhamento, onde as fontes abertas possibilitam a livre circulação dos conteúdos, sem a necessidade que os fixem por carregamentos em espaços físicos. A circulação em rede é sustentada pelo compartilhamento ilimitado, onde os acessos multiplicados ao infinito viabilizam o próprio movimento. Baixar o dado para um espaço local seria interromper o fluxo virtual dos corpos interconectados, embora a tentação deste limite carregue o apelo de quem não quer se perder num reinício contínuo.

 

 

No ano de  1807 Hölderlin passou a viver em um quarto de uma torre, às margens do rio Neckar, até 1843, ano de sua morte. Durante esses 36 anos escrevia poemas que contavam com um estranhamento por parte dos de sua geração. Talvez daí surja a tendência dos historiadores de identificar sua reclusão e produção literária como motivada por um “distúrbio mental”. A clausura o separou do mundo dando a sua realidade um sentido que a retirava de uma série de desdobramentos ao infinito. O infinito passa ser o vazio da separação entre o homem e o divino,  tornando-se um imenso vazio de um céu sem fundo, que Baudelaire descrevia como “o azul do céu imenso e redondo”, onde nada mais existia que não o sol a brilhar a cada novo dia. Esquecido por Deus, o alemão continuava mergulhado em sua produção irradiante, febril e fulgurante,  rebatendo-se sobre as forças da sua finitude, na busca por um território perdido que abrigava toda uma geração. Foi ali que encontrou o embrião do que viria ser sua geração futura, onde as formas da finitude dobraram-se sobre uma dimensão de profundeza, abismo e isolamento, que no caso do poeta não foi reconhecido pelos homens de seu tempo e por isso tido como anormal e patológico. Passou-se algum tempo, contudo, até que se verificasse, de fato, uma revolução da finitude, que fez os homens buscarem neste imenso vazio do céu sem fundo, não mas o infinito originário mas o finito constituinte. Nesse ponto seria importante apelarmos para Deleuze, quando este analisa o trabalho de Foucault sobre a passagem das formas do solo arqueológico do século XVII para as do do século XIX. As formas para Foucault seriam “compostos de relação de forças”. Assim, a passagem entre as duas formas de realidade que alimentava o sentido de duas gerações, teria transcorrido a partir de uma nova relação de forças. Enquanto no século XVII as forças do homem tendiam a se relacionar com forças desdobradas ao infinito, num continuo de uma série que desembocava numa forma-Deus, o século XIX coloca as forças do homem em relação com novas forças, vindas de fora, representando tudo aquilo que não é homem e com as quais ele passa a se confrontar. Forças da finitude  compondo uma nova forma: a forma-Homem. Nesta nova perspectiva as forças do homem se rebateram ou se dobraram sobre uma nova dimensão, onde as fraturas e rupturas vão impedir qualquer continuo em direção ao infinito ou, em última instância, a Deus.

Se aceitamos a ideia de que as forças no homem só compõem uma forma entrando em relação com as forças do lado de fora, podemos avançar na seguinte pergunta:  Com quais novas forças de fora as forças do homem entraram em relação no século XX, dando origem as três gerações do pós-segunda guerra, descritas e expostas acima nos nossos vídeo?  Segundo Foucault, estas formas não mais seriam  um desdobramento ao infinito nem um rebatimento a finitude, mas constituíam uma relação com forças de um finito-ilimitado, onde um número finito de componentes produz uma diversidade praticamente ilimitada de combinações. Apoiadas nas novas tecnologia do silício, as formas sobremodernas seriam o resultado de uma codificação capaz de capturar fragmentos de outros códigos, numa velocidade que estabelece conexões ilimitadas e em rede. Sem o limite dos territórios fixos, os conteúdos sobremodernos giram continuamente nos circuitos das redes de produção e redistribuição de um número muito grande de dados, num fluxo heterogêneo e múltiplo. Assim,  a geração sobremoderna precisa ser capaz de apreender o mundo acelerado, caótico e incerto dos fluxos que se difundem, escoam, flutuam, transformam-se, perdem-se e alimentam suas máquinas, fazendo girar suas conexões num total desprendimento de um espaço vazio.

Espaço Vazio 1 Espaço Vazio 2 Espaço Vazio 4 (Carlos Machado Mobile Photos)

Bem vindos à Sobremodernidade, face de um mesmo sol cuja luz dita o ritmo do tempo, num espaço sem suportes de qualquer natureza, uma vez que o sucesso das conexões não reside nos ambientes físicos, mas numa memória virtual que se perde ao se interrompida. Daí o perfil dessa geração não ser mais do que um conteúdo não localizável em parte alguma a não ser nos rastros  de uma ilimitada rede rizomática, onde os arquivos só se sustentam se forem compartilhados. Por isso a multiplicidade dessas conexões gera um composto que garantirá o movimento contínuo num território onde a identidade não passa de um”profile”. A partir daí o conhecimento assume uma solidariedade presente na relação entre os conteúdos conectados que se desdobram indeterminadamente e que sempre volta ao zero caso as conexão sejam obliteradas.

Tive meu e-mail  “hackeado”. Meu blog saiu do ar, meu facebook esta inacessível, perdi todos meus e-mail arquivados na rede e ninguém me acha. Estou off-line - morto no mundo virtual. Ao longo das eras, os seres chamados de humanos construíram mitos de morte e renascimento. Os poetas desde sempre utilizaram a metáfora da semente que tem que morrer para germinar e o cristo morreu para poder renascer junto com a fé de seus seguidores. Morte e ressurreição é um dos símbolos mais utilizados nos enunciados da cultura que se tem registro até aqui. Embarco amanhã para o velho mundo, cujos escombros anunciam a emergência de um mundo do qual faço parte. Sem saber onde vou trabalhar quando voltar, sem identidade na rede, sem casa, sem ninguém para me despedir. Estou partindo morto. Sei que é só um símbolo, mas os sentidos que estes apontam, possuem uma potência que pode ser atualizada nos caminhos que escolhemos para traçar. Assim como certo dia escolhi seguir o caminho do equilibrista do Zaratustra, parto hoje só. Levo comigo, porém, a esperança de um renascimento e a impressão que não é certeza, de que o sol há de nascer mais uma vez amanhã.

 

 

 

 

 

 

 

 

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