domingo, 27 de fevereiro de 2011

O Pensamento Como Dissolução da Natureza

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" Eu vejo este significado claramente presente na terrível trindade que forma o destino de Édipo: o homem que resolve o enigma da natureza - da dupla natureza da Esfinge - deve também, como assassino de seu pai e amante de sua mãe, transgredir o sagrado código da natureza. De fato, o que o mito parece nos sussurrar é que esta sabedoria, a dionisíaca sabedoria em particular, é um abominável crime contra a natureza; qualquer um que, através de seu conhecimento, lança a natureza no abismo da destruição, deve ele mesmo experimentar a dissolução da natureza. " ( Friedrich Nietzsche - O Nascimento da Tragédia)

Cláudio Ulpiano, em uma de suas aulas (www.claudioulpiano.org) cita a descrição feita pelo músico Olivier Messiaen (www.oliviermessiaen.org)  a respeito do canto do Tordo. O Tordo seria  um pássaro o qual,  segundo Messiaen,  alternaria três tipos de canto. Dois deles, estariam a serviço da espécie e,  portanto, da natureza e dos corpos orgânicos: o canto do acasalamento, que visa atrair a fêmea  e o canto do perigo, que tem como objetivo alertar os demais membros da espécie acerca da presença de um predador.

O terceiro canto do Tordo, seria um canto desvinculado de qualquer função orgânica ou serviço à natureza. Seria o canto que surge a partir do alvorecer ou do crepúsculo. Um canto gratuito, sem objetivo, significado ou função, mas que é uma reação pura a uma essência que vem ao  encontro ao corpo do pássaro que canta: a essência do entardecer ou da aurora.

Cabe aqui colocar uma distinção fundamental para que possamos avançar em nossa articulação, que seria as diferentes visões sobre a essência das coisas, ou melhor, os diferentes sentidos sobre a idéia de essência.

Diferente da concepção platônica-aristotélica de essência, que apela para o significado e, portanto,  para a lógica, a idéia  com a qual gostaríamos de trabalhar é a  de essência enquanto potência. Potência como conjunto de forças próprias que sustentam os corpos, e nos permite reconhecer estes corpos mesmo quando eles estejam em arranjos ou composições diferentes. O significado, a partir desta visão, não residiria, portanto,  nas coisas ou suas essências em si, mas sim, no encontro das potências e em suas diferentes composições. Assim o significado seria o efeito do encontro dos corpos, suas forças e potências , sendo, portanto, secundário e não originário.

O significado do terceiro canto do Tordo surge, diferentemente, da função orgânica dos outros dois que estariam a serviço da sua natureza. O significado do terceiro canto surge a partir do encontro do corpo do Tordo e do corpo da alvorada, encontro entre as potências do canto do pássaro e as forças da natureza. Encontro de potências;  cores, ritmos, tons, melodia, temperaturas e pulsões. Libertando-se deste serviço, este canto aponta para a ultrapassagem da natureza e de seus códigos, dissolvendo-a em um sentido ou significado do devir e do agenciamento dos conteúdos.

E é neste ponto que reside o grande enigma da natureza humana. Compartilhando condições com os demais corpos que habitam o cosmos, o homem surge como uma potência que subverte os códigos da natureza comuns às demais potências, lançando a natureza no abismo da destruição, uma vez que ao extrair significados das coisas e dos corpos, ele ultrapassa as essências e fixa-se no sentido do acontecimento. Desta forma,  ao procurar os sentidos  e significados das coisas, podemos concluir que os mesmos não existem no mundo,  mas no interior do homem que ultrapassa a simples experiência física do encontro das forças dos corpos, que se dá no presente,  retroagindo-a ao passado e projetando-a para o futuro, a partir do significado de um acontecimento, liberando uma dimensão de tempo que o mundo dos corpos ou a natureza das coisas não tinha liberado até então.

Os significados localizados fora das coisas e dos corpos  " não tomam  absolutamente o lugar do sujeito, mas destituem todo sujeito em proveito de um agenciamento do tipo hecceidade, que abriga ou libera o acontecimento naquilo que ele tem de não formado, e de não efetuável por pessoas algo lhes acontece que eles não o podem restituir a não ser destituindo-se de seu poder de dizer eu ... As cadeias de expressão que ele articula são aquelas cujos conteúdos podem ser agenciados em função de um máximo de ocorrências e devires" (Gilles Deleuze - Mil Platôs)

Assim, deslocado das potências das coisas para os agenciamentos dos conteúdos, o significado lança os corpos e as forças da  natureza no abismo da destruição significante, de onde somente o acontecimento poderá resgatá-los. O acontecimento como efeito da experiência do encontro dos corpos e suas potências, que sempre se dá na dimensão presente, abre a possibilidade de ultrapassagem desta experiência, trazendo novas  dimensões de tempo que vem pousar não sobre corpo, mas sobre espírito humano, através do seu pensamento. É somente através do acontecimento, onde a conjugação dos corpos cria os significados, que o pensamento retém o passado e antecipa o futuro, ultrapassando, desta forma,  a natureza.

E não há expressão melhor que defina esta ultrapassagem do que uma com a qual  Nietzsche nos brindou em sua comparação das duas divindades da arte   que foram reconciliadas na tragédia grega:  Apolo, o deus das forças  plásticas e Dionísio, o deus das invisibilidades musicais.

"Nos ditirambos dionisíacos as faculdades simbólicas dos homens são elevadas a sua suprema intensidade: um sentimento nunca antes experimentado está lutando para exprimir-se - a destruição do véu de Maya, unidade como a força da forma e da natureza em si. A essência da natureza foi agora encontrar uma expressão simbólica. Um novo mundo de símbolos era requerido, o conjunto do simbolismo do corpo, não somente o simbolismo da boca, dos olhos, da palavra, mas o movimento rítmico de todos os órgãos do corpo no completo gesto da dança. Então, todas as outras forças simbólicas, as forças da música - ritmo, dinâmica e harmonia - encontrariam,  de repente, expressões impetuosas. Com o objetivo de atingir a liberação de todas as forças simbólicas, o homem pode já ter alcançado o ápice da auto-negação, que procura a expressão simbólica destas forças... Com que surpresa a Grécia Apolínea  o deve ter olhado! E esta surpresa teria sido intensificada pela sua combinação com o terror, no fim nem tão estranho a ele (homem), que sua consciência Apolínea sozinha, como um véu, escondeu este mundo Dionisíaco de sua vista ". ( Friedrich Nietzsche - O Nascimento da Tragédia).

O ápice da auto-negação humana se processa a partir da negação de uma essência corporal enquanto potência a serviço da natureza, do corpo que serve às forças da natureza e aos seus códigos. Esta negação libera um outro corpo  como expressão simbólica que é o corpo estético ou, como foi chamado por Artaud, o corpo sem órgãos. Um corpo que produz, a exemplo do terceiro tipo do canto do Tordo, um movimento rítmico, sempre que se encontra com as expressões impetuosas das forças da natureza. Estas, então, passam a funcionar como uma paisagem melódica para este personagem rítmico que é o espírito que pensa através do seu corpo estético ou do corpo sem órgãos, à partir das ações recíprocas e simultâneas do encontro de múltiplas formas, produzindo novas realidades e novos mundos.

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