domingo, 27 de fevereiro de 2011

Da Ordem ao Caos – Considerações sobre os espaços do pensamento

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“Pois bem, agora vou eu falar, e tu, prestes atenção ouvindo a palavra acerca das únicas vias de questionamento que são a pensar: uma, para o que é e, como tal, não é para não ser, é o caminho de Persuasão — pois segue pela Verdade — outra, para o que não é e, como tal, é preciso não ser, esta via afirmo-te que é uma trilha inteiramente insondável; pois nem ao menos se conheceria o não ente, pois não é realizável , nem tampouco se o diria… Mas é preciso que de tudo te instruas: tanto do intrépido coração da Verdade persuasiva quanto das opiniões de mortais em que não há fé verdadeira. Contudo, também isto aprenderás: como as opiniões precisavam manifestamente ser, elas que atravessam tudo através de tudo” (Poema de Parmênides Acerca da Natureza -  fragmento 2 e  fragmento 1).

As necessidades dos homens ao longo de suas existências históricas sempre foram responsáveis pela forma como estes recortaram e interpretaram o real a sua volta, lendo-se real, aqui, como o mundo, material, ou não, fora do sujeito cognoscente. Reduzindo os fenômenos a sua volta à regularidade daquilo que deles permanece, numa atitude de preservação contra uma incômoda instabilidade provocada pela constatação da transitoriedade de suas vidas, ou explorando a infinidade dos nós e tramas de suas virtualidades, motivados pela potência contida no indeterminado, os seres da linguagem sempre se fizeram representar por discursos, que a despeito da diferenças pontuais de seus conteúdos, procuravam dar coerência ao mundo à sua volta. Seguindo a trilha dos homens do ocidente, não é difícil traçar linhas que ligam certas semelhanças no ato de pensar e abrem abismos conceituais entre ideias e pensadores.

Toda tentativa de traduzir a realidade dos fenômenos sensíveis em sentenças ou proposições, independente da época ou da língua em que se tentasse dar cabo desta tarefa, sempre esbarrou, a princípio, em duas dificuldades. Uma delas repousava sob a constatação de que as palavras são equívocas, podendo assim engendrar diversos significados, dependendo do sentido em que forem usadas. Aristóteles dedicou bastante espaço em seu Órganon, em especial nos Tópicos, na demonstração desta equivocidade, com o intuito de fixar um método que resguardasse a produção das proposições da falta de clareza e o pensamento do engano. A segunda dificuldade diz respeito ao que Sartre denominou de “neurose objetiva”, que seria um gênero ou forma privilegiada que conduziria a expressão das verdades de cada sujeito falante. Em cada um deles, os significantes seriam influenciados, definitivamente, pela  forma com são relacionados nos diversos estratos onde se interrelacionam na composição dos significados, nos processos do pensamento. Aristóteles mesmo, ao organizar um método que pretendia estabelecer as regras de um pensamento correto, evitando o engano de um raciocínio falseado, assim o faz a partir de um modelo epistemológico cuja ambição era oferecer bases racionais, últimas, a todo conhecimento. Assim, diríamos que cada modelo epistemológico está vinculado a um intenção que conduz o sujeito do pensamento, por suas articulações e usos que faz da língua, quando da construção dos conceitos que irão explicar o mundo apreendido pelos sentidos. Chamaremos este elemento constitutivo do pensamento, a partir daqui, de  intenção existencial.

No ar purificado,

quando já o refrigério do orvalho goteja sobre a terra,

invisível, inaudível também

- pois o consolador orvalho usa

sapato delicado, como todos os apaziguadores -

recordas-te então, recordas-te, coração ardente,

como outrora tinhas sede

de lágrimas celestiais e gotas de orvalho,

queimado e fatigado tinhas sede,

enquanto nas veredas amarelecidas

olhares perversos do sol poente

te perseguiam através de árvores negras,

olhares ofuscantes de fogo solar, olhares maliciosos.

(Nietzsche)

O cerne da discussão proposta aqui, de forma introdutória, versa sobre as alterações do modelo de conhecimento do sec. XXI, ao qual chamo de modelo sobremoderno, a partir da constatação de que estas alterações são o resultado de uma oposição entre os discursos do “ser” e do “devir”, presente ao longo de toda tradição filosófica do ocidente. Tal formulação se fundamenta na ideia de que o longo caminho que começou com Platão, passou pelo tomismo medieval, seguiu pelo iluminismo moderno até desembocar no anti-platonismo de Nietzsche, foi marcado pela oposição entre duas intenções existenciais dominantes: uma que visava a organizar, classificar, fixar e representar e outra que buscava desconstruir, derivar, libertar e diferir.

A final do sec. XIX, a cultura ocidental passa a experimentar a libertação progressiva de um potencial subversivo, mantido trancado nas profundezas de uma metafísica representativa de caráter estabilizante, mas que acabou irrompendo com vigor e sendo responsável pelas inúmeras manifestações da civilização no ocidente (artísticas, científicas, políticas). Da antiguidade clássica, berço e fundamentação de todo pensamento tido como ocidental, seguindo através da heteronomia medieval, até desembocar na passagem da visão perspectiva quatrocentista para a abstracionista do novecentos, pode-se identificar  um confronto agonístico fundamental. Este se dá através da oposição entre uma postura que tendia a subverter a ordem do ser, a partir da qual o sujeito do conhecimento não seria nem a origem nem o fim e uma atitude que buscava resguardar o ser do caos da insignificação, através da organização do pensamento a partir do princípio da não contradição. A proposta de se pensar a realidade a partir de criações incompletas, abertas, indeterminadas, sempre se opôs ao modelo de mundo que a metafísica clássica descrevera, a autoridade medieval sustentara e a modernidade viria renovar. Ela consistiria em buscar o caminho, identificado no poema de Parmênides “Acerca da Natureza”, como o Caminho dos Homens de Duas Cabeças, o caminho da doxa ou da “opinião”, contrastado, no texto do pensador de Eléia, pelo caminho da aletheia ou da “verdade”, que dominou a intenção existencial que prevaleceu na tradição metafísica do ocidente.

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Quando identificamos uma intenção existencial que, supostamente, subjaz à um modelo de conhecimento dos fenômenos, vamos além de uma simples determinação ou escolha dos elementos com os quais o sujeito cognoscente irá trabalhar na formulação de suas proposições ou na criação de seus conceitos. A intenção existencial aponta uma complexa rede de relações entre agenciamentos de corpos e enunciações, que compreendem, e aí no sentido deleuziano, “todas as atrações, repulsões, simpatias, antipatias, alterações, alianças, penetrações, e expansões” que forjam um horizonte a partir do qual interagem os dispositivos da produção de sentido de um sujeito. Desta forma, só é possível seguir os rastros destas intenções a partir dos gestos que os denunciam. Como forma de contrastar duas intenções existenciais e seus  modelos de objetividade que podem ser seguidos ao longo da história do pensamento ocidental, agrupamos estas intenções em dois principais espaços existenciais, os quais identificamos como: espaço da representação e espaço da incompletude.

O espaço da representação teria como intenção existencial dominante a ambição por um conhecimento racional e superior, da realidade dos fenômenos, capaz de refleti-los ou representá-los, fidedignamente, em sua objetividade, capturando as estruturas estáveis do “ser”, as quais o pensamento deveria recorrer para “fundar-se em certezas não-precárias”. Já o espaço da incompletude dissolveria a estabilidade da “representação dos fenômenos”, julgando que esta só poderia ser alcançada de forma ideal, uma vez que o “ser” deve ser pensado como evento contingente. No espaço da incompletude o ser não “está”, ele se torna. Assim, ele é instável e transitório, colocando em suspenso qualquer determinismo e apelando para indecidibilidade entre o dizer e o calar que alimenta o processo de desconstrução dos seus fundamentos, das certezas ou dos fatos. As diferenças entre as intenções existenciais de cada um destes espaços do pensamento convergem para uma oposição que está no centro de nossa discussão, a saber: a tradição filosófica constituída a partir de dois diferentes modelos cognitivos, o platônico e o nietzschiano. Se a dualidade dos caminhos que iriam ser seguidos pela tradição filosófica já tinham sido apontados pela “deusa” do poema de Parmênides, os sujeitos do conhecimento e os conceitos que trafegam por suas sendas, podem ser confrontados através destes dois modelos e relacionados pelas linhas que se cruzam em seus espaços existenciais. 

Se no espaço da representação a linha se desfia a partir do conceito das “ideias eternas” de Platão, passa pelo “cogito” de Descartes e pela “razão pura” do pensamento transcendental de Kant, desembocando no “espírito absoluto” hegeliano, ela vem se cruzar com as tramas do espaço da incompletude, que é escavado a partir do impacto do pensamento nietzschiano, em torno do qual se passa a agregar conceitos alinhados e orientados pela tarefa de reverter tudo aquilo que de platônico existe na filosofia, em uma “démarche” que vai agrupar pensadores e conceitos, através da desvinculação com a pretensão por valores últimos, resgatando ideias que a tradição metafísica da representação sempre desconsiderou.

A proposta de agrupamento dos sujeitos cognoscentes em espaços opostos de pensamento surge como tentativa de seguir o rastro das intenções existenciais dos  seus regimes de signos, cujas variáveis determinam o uso dos elementos da língua que construirá os edifícios conceituais de cada um deles. Porém, é fundamental perceber que toda iniciativa é dependente do impacto do pensamento nietzschiano, construído a partir de sua tentativa  de “reversão do platonismo”, cerne de toda a proposta. A investida de Nietzsche contra a maneira de se pensar o Ser em termos de estruturas estáveis que impõe ao pensamento e à existência a tarefa de fundar-se, de estabelecer-se no domínio do não-deviniante, abre uma fenda entre o que passou a ser chamado de pensamento “logocêntrico” e um tipo de pensamento que visava libertar os significantes da dependência de um logos, conceito conexo de verdade ou de significado primeiro. Esta postura da tradição ocidental, contra qual Nietzsche se colocava, pode ser definida como “a evidência tranquilizante” de uma estabilidade, onde a ordem do significado carece da  estabilidade dos significantes e de sua proximidade do logos como topos noetós, espaço de inteligibilidade situado além da natureza flutuante e mutável da percepção sensível, para longe da avalanche da descontinuidade do ser, que localiza-se num intervalo vazio, da fratura ou hiato que une e separa aquilo que olhamos daquilo que surge ou declina. Neste espaço só é possível seguir os traços e os vestígios e a ausência daquilo que é e não para de ser.

- Pretendente da verdade tu? escarneciam eles

um bicho astuto, predador, rastejante,

que tem que mentir,

que tem que mentir deliberadamente, voluntariamente,

avido de presa,

disfarçado de variegadas cores,

máscara para si próprio,

de si próprio presa

isto – o pretendente da verdade?…

Só Doido! Só poeta!

Só falando à toa,

sob máscaras de doido falando à toa,

subindo por mentirosas pontes de palavras,

por arco-íris de mentiras

entre falsos céus

vagueando, rastejando -

só doido! só poeta!…

(Nietzsche)

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