domingo, 27 de fevereiro de 2011

Uma Nova Arquitetura da Visão

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Passo pouco por entre as posses

Que tidas todas diletas contas

De apontar divinas postas

Fazem irromper severas pontas

A traduzirem a parte imposta

De um caminhar com pernas tortas

Voltadas sempre à face oposta

"A seguirmos uma bela análise de Michel Serres, o século XVII não foi a idade "clássica" do ideal da verdade, mas a idade barroca por excelência, inseparável do que se chama clássico, e quando a verdade atravessava uma crise definitiva. Não se tratava mais de saber onde ficava o centro, o sol ou a terra, pois a primeira questão tornava-se: Há, ou não um centro qualquer? Todos os centros, de gravidade, de equilíbrio, de força de revolução, em suma de configuração, desmoronavam. Então se efetuou, é certo, uma restauração dos centros, mas a custo de uma mudança profunda, de uma grande evolução das ciências e das artes. Por um lado o centro se tornava puramente ótico, o ponto se tornava ponto de vista. Esse perspectivismo de modo algum se definia pela variação de pontos de vista exteriores sobre um objeto que se suporia invariável (o ideal de verdade seria conservado). Não, ao contrário, o ponto de vista era constante, mas sempre interno aos diferentes objetos que desde então se apresentaram como a metamorfose e uma única e mesma coisa em devir. Era a geometria projetiva, que instalava o olho no ápice do cone, e nos dava projeções tão variáveis quanto os planos de secção, círculo, elipse, hipérbole, parábola, pontos, retas, o próprio objeto não passando mais, em última instância, da conexão de suas próprias projeções, da coleção ou série de suas próprias metamorfoses. As perspectivas ou projeções são o que não é nem verdade nem aparência " ( Giles Deleuze - A Imagem-Tempo, p. 175).

O modelo  moderno carrega noções de uma realidade estável, limitada por uma temporalidade fixa e  espaços demarcados, apoiado nas representações que formulam verdades e certezas definitivas, com o fim de acalmar os espíritos inquietos e gerar estabilidades que se fundam na previsibilidade dos processos de adequação de ordem cognitiva entre a imagem mental do objeto e o próprio objeto. O olho moderno se apoiou nas máquinas da razão, que por intermédio da lógica objetiva reconstruiu o olhar através de modelos físico-matemáticos da luz e da fisiologia da visão, baseados nos princípios da geometria e da mecânica. Estes modelos ensinaram a visão e supriram-na de elementos corretivos por intermédio de dispositivos apoiados na racionalidade,  aprofundando, desta forma, a cisão entre  o olhar e o mundo, experiência subjetiva e objetivação, a partir de uma divisão própria entre o olhar do corpo sensível e o olhar do espírito inteligível. A moderna impressão perceptiva da realidade, com seus significados fixos e transcendentais,  fundada no caráter absoluto dos intervalos de espaço e tempo, produz uma visão que olha para as coisas com o "olho do espírito" através de um "olhar geometral", abstraindo dos objetos seus formatos, números e formas.

Os elementos técnicos corretivos da visão evoluíram através da capacidade, cada vez maior, de produção, captação, transmissão, reprodução, processamento e armazenagem da imagem, produzindo uma ruptura nos modelos do conhecimento e nos princípios organizadores da visão moderna. A chegada das "máquinas de visão", produtoras de  percepções sintéticas , através de operações "ultra-rápidas" que expandem a profundidade de campo do sistema ocular, garantiram uma rede de significados que passa a descrever experiências subjetivas, processos de objetivação, sujeitos, objetos, encontros das formas de conteúdo e das formas de expressão. Estas redes se multiplicaram através do proliferação dos diversos significados que não mais se apoiavam em uma única gênese, a partir da capacidade indefinida de sua reduplicação, dado ao emaranhado de conexões que passam a elevá-lo a enésima potência. Bem vindos a sobremodernidade!

Tunga Amigo Mago

A sobremodernidade carrega o germe da pluralidade de visões que se abrem num espaço  não mais de representação, mas de movimentos que respondem às velocidades próprias das novas tecnologias , criadoras de realidades virtuais, onde a interface substitui o intervalo de tempo da propagação, cuja trajetória é definida pela instantaneidade simultânea que suprime as partidas e as chegadas.O deslocamento contínuo em velocidades vertiginosas e as formas irregulares em dimensões flutuantes e fractais, compõe as matizes da nova imagem circulante. Esta imagem exibe as múltiplas faces, num processo contínuo de mutação e é capaz de expressar o estado latente, difuso e incorpóreo destas transformações em curso.

Uma nova arquitetura da visão erige-se sobe o princípio da mobilidade, onde o sujeito só é capaz de reconhecer e ser reconhecido através do deslocamento, num infinito jogo de significações. Este movimento,  contínuo e inesgotável, abole qualquer possibilidade de um significado fixo ou transcendental e reivindica a existência de espaços complexos e tempos múltiplos. Assim, o olhar sobremoderno constata  que qualquer elaboração conceitual é sobremaneira provisória, instável e incompleta, libertando na visão as potências do imponderável e do indecidível. Tais potências são os ritmos que percorrem os movimentos do sujeito em seus processos de abertura, desdobramento e contração sobre os objetos sensíveis. Como nos fala Deleuze, este ritmo é " diástole-sístole: o mundo que me pega fechando-se sobre mim, o eu que se abre para o mundo e também o abre" (Francis Bacon: Lógica da Sensação, p. 50). Neste jogo são intercambiados os corpos visíveis e as potências do invisível que estão por trás das imagens, como suportes das superfícies e dos contornos das figuras.

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Do discorrer precisa aposta 

Acomodada, urgente e exausta

Vem desvelar o espaço em jogo

Seu percorrer por entre os rastros

De um vazio sem linha ou portas

A outra parte do tempo encosta

Em limiares da imagem à mostra  

 

"A imagem não é mas projetada, mas ejetada pelo real, com força bastante para que se liberte do campo de atração do Real e da Representação. A realidade que a imagem numérica dá a ver é uma outra realidade: uma realidade sintetizada, artificial, sem substrato material além da nuvem eletrônica de bilhões de mircro-impulsos que percorrem os circuitos eletrônicos do computador, uma realidade cuja única realidade é virtual" (Edmond Couchot - Da Representação à Simulação)

Mas como apelar para suportes se o que se descreve, justamente, é a ausência de qualquer base ou centro, uma vez que o deslocamento contínuo nos lega, apenas, rastros de passagens? Se a revolução digital,  ao desmontar a arquitetura perspectiva,  liberta a imagem de qualquer suporte material - entenda-se aqui materialidade como a presença de corpos sólidos distribuídos num suposto espaço extensivo - ela provoca, de fato, o rompimento com um modelo de realidade de matriz cartesiana e positivista, que se funda em uma equação espaço-temporal que trabalha com a distribuições de figuras em um espaço físico homogêneo num tempo cronológico regular, quantificados através de processos lineares e sucessivos.

Ao retirar da imagem seu suporte na realidade objetiva, os processos digitais passam a se apoiar em suportes invisíveis, resultado das combinações  processadas velozmente através de programas que organizam, numericamente,  a localização de cada ponto constitutivo daquilo que passa a ser visto. E é a partir desta nova ordem visual que se pode afirmar: se alguma coisa preexiste à imagem sobremoderna é o programa. A diferença fundamental do suporte da imagem sobremoderna não reside na sua ausência de materialidade extensiva, mas sim na mobilidade dos pontos de apoio que faz com que os limites e as margens das imagens estejam sempre em movimento. Este trânsito de informações entre os diversos suportes, que são interfaces transdutoras dos dados de entrada e saída, faz surgir o fenômeno da imagem numérica, deslocada e relocalizada em múltiplos suportes pela comutação instantânea.

Assim , a arquitetura da visão sobremoderna, a partir das novas máquinas de visão, ao contrário de corrigir o olhar  reconstrói a realidade. Esta realidade, cada vez mais instável e deslocalizada, segue num movimento de múltiplas transformações, desprendendo-se da regularidade do movimento em um espaço retilíneo e uniforme. Uma realidade que sintetiza e hibridiza sujeito, imagem e objeto, num (não)lugar, onde cada um, simultaneamente, interpenetram-se nas suas transparências virtuais, em toques, saltos e rupturas, no espaço que se abre a partir dos seus deslocamentos contínuos e onde são inscritos os rastros de inesgotáveis significações.

 

Ordenando os velhos versos

vai-se em busca

do cansado gaguejar palavras frouxas

bocas fora de lugar a todo tempo

 

Aportando em certos votos

linha reta

tem-se os temas todos novos tais poemas

deste estilo de um ladrão de pensamentos

 

Decepando os vultos caros

fortes crenças

faz-se o novo já medido em certas trenas

liberdade do sagrado sacripanta

 

Posto que a produção

não tem certezas

no vazio do mover se fica quieto

repassando o desejar em sua audiência

 

Tanto zelo só se vale

de uns instantes

na distância que se torna negligência

abertura pro vestígio eterno mantra

 

Irrompendo do silêncio

o encantamento

vem no mundo visitar suas avenças

num passeio em que desfila suas promessas

de um contínuo escrutinar secretos ventos

 

 

 

 

 

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