quarta-feira, 10 de outubro de 2012

De quem é o dinheiro afinal? - Parte II

Rizoma

Teoricamente, o padrão ouro funcionava a partir de um mecanismo apoiado no “modelo de fluxo de moedas metálicas”, cunhado por David Hume, no século XVIII e a partir do qual, toda vez que uma mercadoria era exportada, o exportador recebia um pagamento em ouro, que levava a casa da moeda para ser cunhado. Ao contrário, toda vez que um importador adquiria mercadorias do exterior, ele fazia o pagamento exportando outro. Segundo esse modelo teórico, os eventos autocorretivos eram responsáveis por gerar um equilíbrio monetário que dava conta dos déficits e superávits comerciais, já que um ajuste de preços compensava a diferença entre a circulação de moedas. Uma vez que determinado país apresentasse queda na quantidade de dinheiro em circulação interna, ele registrava uma queda nos preços e na medida que este contasse com mais dinheiro (moedas em ouro) em circulação no exterior,  os preços registravam uma elevação. Com o encarecimento das importações, os residentes no país reduziriam suas compras de produtos importados. Por outro lado, os estrangeiros, para que produtos importados teriam ficados mais baratos, tenderiam a comprar maiores quantidades de produtos importados. Haveria um crescimento nas exportações do país deficitário, e suas importações cairiam, até a eliminação do desequilíbrio comercial.

A medida que os mercados e as instituições financeiras começaram a forjar o fluxo de capitais internacionais através da emissão de dívidas que passaram a circular juntamente com as mercadorias, a simplicidade do mecanismo de ajuste proposto por Hume, passou a não mais dar conta do fluxo de capitais e aí, as taxas de juros assumiram uma importância que irá determinar o futuro do sistema monetário mundial. Administrar a complexidade desse fluxo requeria a figura de um agente central em cada país que desse conta de regular o nível de moeda e de dívida em circulação, e assim foram sendo constituídos os Bancos Centrais em cada um desses Estados Nacionais, que seriam responsáveis por promover os ajustes no “meio circulante”,  ofertando ou retirando moeda do mercado, dependendo da tendência observada nos meios de pagamento. O principal mecanismo utilizado pelos bancos centrais era a operação de “redesconto”, através da qual os bancos adiantavam dinheiro em troca de títulos apresentados pelos portadores, descontados os juros da transação. Desde que elegíveis, por uma série de condições estipuladas pelos bancos, o título poderia ser trocado por dinheiro, aumentando dessa forma a quantidade de moeda em circulação. Assim, toda vez que o Banco Central diminuísse a taxa de juros cobrada para redesconto do título, ele incentivaria a troca por parte de seus portadores. Ao contrário, se a taxa de redesconto fosse elevada ela inibiria a venda de títulos e diminuiria, consequentemente, a oferta monetária.

Tudo funcionaria muito bem se “as regras do jogo” estivessem claramente definidas e os interesses dos agentes e das autoridades monetárias se baseassem apenas na intenção de equilibrar o sistema monetário. Contudo, mesmo durante o período em que perdurou o padrão ouro verifica-se que as “regras” disponíveis foram várias vezes desrespeitadas e  desequilíbrios dos balanços de pagamento estabelecidos. Não esqueçamos que os bancos centrais eram, a princípio, instituições privadas e assim o nível da taxa de redesconto determinaria diretamente o seu lucro com a transação, o que  consequentemente influiria na política por ele adotada. Além disso, o surgimento de outras instituições bancárias que passaram a operar ao lado dos bancos centrais na venda e na recompra dos títulos, determinariam o nível da taxa de juros a ser praticado nas diversas operações de financiamento, o que iria definir o custo do serviço da dívida, não só dos cidadãos de um país, mas principalmente do serviço a dívida dos seus governos. Desta forma, a capacidade dos bancos centrais de defenderem a conversibilidade de suas moedas viu-se, desde sempre, afetada pelas pressões de objetivos incompatíveis com a defesa de tal política. Isto porque, era justamente na instabilidade e na assimetria entre os preços, valores das moedas e diferença nas taxas de juros, que se constituía o melhor momento de se ganhar dinheiro no mercado, mesmo que a pedra fundamental do padrão ouro, que vigorou no período anterior a Primeira Grande Guerra, tenha sido a prioridade da manutenção da conversibilidade das moedas dos países situados no centro do sistema, Grã-Bretanha, França e Alemanha.

A política monetária dos Bancos Centrais no padrão ouro desde seus primórdios mostrava-se indiferente  às questões relacionadas aos demais fundamentos do funcionamento das economias nacionais. As autoridades monetárias  estavam sempre prontas a defender a conversibilidade das moedas mesmo que para isso tivessem que sacrificar os interesses da maioria da população de um país. Caso certa  política de juros fosse responsável por afetar o nível de desemprego, a falta de representatividade política da classe trabalhadora insipiente  não dava chance para que ela pudesse se opor às decisões dos bancos centrais e, assim,  os efeitos nocivos eram ignorados desde que se conseguisse o objetivo fundamental de manter a estabilidade da moeda. Isso tranquilizava os investidores que ao contrário dos agentes que viessem a sofrer perdas a partir dessa política, aproveitavam as oportunidades geradas pelos desequilíbrios temporários para ingressar com seus recursos e aumentar seu ganho, com a garantia de que os bancos centrais agiriam no sentido de reestabelecer o equilíbrio do câmbio de um país, protegendo dessa forma o capital investido. Tal práticas geravam um clima de cooperação e de confiança entre os países que estavam no centro do sistema monetário estabelecido sobre o padrão ouro, onde seus bancos centrais se mostravam sempre prontos a intervirem em defesa da estabilidade de suas moedas e contavam com o peso do Banco da Inglaterra, que tinha se convertido, a essa altura, em um “emprestador de última instância”, sempre pronto a intervir no mercado para evitar os desequilíbrios, através de uma injeção de liquidez que garantisse a estabilidade financeira.

Porém,  os outros países localizados na periferia do sistema, cujos problemas não colocavam em risco  estabilidade sistêmica do bloco central, não contavam com a disposição dos bancos centrais europeus de saírem ao seu socorro em tempos de crise. Muitos países fora da Europa não dispunham de bancos centrais com os quais pudessem articular esse tipo de prática cooperativa e desaa forma apresentavam um sistema bancário frágil e vulnerável a perturbações que poderiam fazer desmoronar os arranjos financeiros tanto externos como domésticos de um país. Sofrendo ainda com o reflexo do modelo do “pacto colonial” tais países, caso não conseguissem o financiamento externo necessário, que privilegiava países investidores em projetos capazes de criar demanda para os bens de capitais produzidos pela Europa, conviviam com o desequilíbrio de seu balanço de pagamento que acabava por afetar a capacidade de atrair crédito suficiente para financiar o processo produtivo. Sobremaneira dependente da exportação de suas “commodities” os países da periferia viam suas receitas encolherem em tempo de crise confiança na sua capacidade de cobrir o “serviço da dívida” com suas receitas de exportação, gerando um ciclo vicioso que impactava suas contas corrente e de capital. Assim, toda vez que os investidores nesses mercados temiam a conversibilidade da moeda de um país em ouro ou a sua desvalorização, convertiam seu capital em moedas europeias para evitar prejuízos que sofreriam em ativos denominados em moedas locais. Em consequência  disso, ao longo da vigência do padrão ouro, os países “latinos” do sul da Europa e da América do Sul foram repetidamente obrigados a suspender a conversibilidade de ouro e a permitir que suas moedas fossem desvalorizadas, visando corrigir os desequilíbrios em seus mercados e melhorar a competitividade internacional.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

De quem é o dinheiro afinal? - Parte I

Trama

 

Assistimos a uma severa crise na Europa, talvez a mais grave desde que foi formada a União Européia e adotado o Euro como moeda comum. A Europa possui uma longa história no que diz respeito a interconectividade de seus mercados produtores e consumidores, bem como em relação aos ajustes necessários em seu sistema monetário para adequar os meios de pagamento ao fluxo de comércio e de capital. Assim, decidi contar um pouco desta história. O objetivo do conjunto de textos que passarão a ser produzidos aqui em formas de notas, visa compreender três períodos distintos: o primeiro deles diz respeito aos anos que se seguiram à 1879, caracterizado pelo aumento da solidariedade entre os Estados Nacionais modernos, tendo a Grã-Bretanha como nação hegemônica. Na sequência abordaremos o sistema monetário internacional após 1914 e a Primeira Grande Guerra, que vê surgir os EUA como potência mundial e vai até 1929 e a Grande Depressão. O terceiro período culmina com o acordo assinado em Breton Woods, em 1944, no meio da Segunda Grande Guerra, como parte dos esforços das nações do Bloco Central para manter estável um sistema monetário internacional, e por fim, o último período, que tem como marco divisório a assinatura por Richard Nixon, em 1973, do decreto que exime os EUA de converter suas obrigações representadas por dólares norte-americanos em poder do público ao redor do mundo em ouro. Como forma de fornecer algumas pistas para compreender a severa crise financeira que atinge os países da União Europeia bem como os EUA, nesses idos de 2012, tentaremos seguir o fio condutor das políticas dos governos desses países ao longo destes quase um século e meio de história.

Baseado na prática da cunhagem de moedas em metais preciosos desde tempos imemoriais, cujo valor de tais metais era reconhecido universalmente pelos países que os detinham em suas reservas, o metalismo ganha força na Europa a partir do século XV, como o acesso dos países europeus as reservas de metais preciosos nas suas novas colônias ao redor do mundo. O reconhecimento mútuo do valor desses metais criava um padrão monetário que sustentava as trocas comerciais bem como permitia a concessão de empréstimos entre as nações na modernidade incipiente.  A combinação de moedas de ouro, prata e cobre era a base para as compensações internacionais. Os residentes em um país, ao adquirir do exterior mais do que vendessem a países estrangeiros ou ao conceder empréstimos em um montante superior ao que houvessem tomado de empréstimos, acertavam as diferenças com dinheiro aceitável por seus credores. Esse dinheiro podia assumir a forma de outro, prata ou de outros metais preciosos e fazia a compensação dos déficits de seu balanço de pagamento .

Com a intensificação do fluxo de comércio e de capital internacionais, a partir do século XIX, a necessidade de ajustes nos diversos padrões monetários dos países visava evitar arbitragem de preços que colocasse em risco a estabilidade monetária. Como os estatutos monetários de muitos países, naquele final de século, permitiam a cunhagem e a circulação simultâneas de moedas de ouro e de prata (padrão bi metálico), se a relação entre a proporção dos dois metais na cunhagem de uma e outra moeda adotadas pela casa das moedas de um determinado país não estivesse próxima dos preços de mercado, isso detonaria a "fuga em massa" de uma dessas moedas de um determinado país para o exterior. Suponhamos que que 10 onças de prata fossem negociadas no mercado internacional por, aproximadamente, uma onça de ouro (proporção de 10 para 1) e que em um determinado país fosse possível obter oficialmente moedas cunhadas de igual valor contendo um certo montante de ouro ou um montante 9 vezes maior de prata (relação de 9 para 1). Isso geraria incentivos a arbitragem, uma vez que um interessado poderia importar 9 onças de prata e levá-las a casa da moeda para serem cunhadas. Em seguida, o especulador poderia trocar essa moeda de prata por outra contendo uma onça de ouro. Esse outro poderia ser exportado e trocado, por 10 onças de prata nos mercados externos. Esse movimento permitiria, então, não apenas recuperar o investimento como também obter uma onça extra de prata. Se essa diferença persistisse por muito tempo, os especuladores importariam prata e exportariam ouro até que todas as moedas de ouro no país tivessem sido exportadas. Esse movimento também aconteceria se a relação entre de preços entre um e outro metal no mercado estivesse significativamente abaixo da proporção de sua utilização na cunhagem das respectivas moedas, pois os especuladores importariam ouro e exportariam prata até que toda prata tivesse desaparecido de circulação.

A adoção do padrão ouro como uma prática monetária comum, no último quarto do século XIX,  pode ser atribuído ao fato da Inglaterra ter assumido uma posição hegemônica de potência financeira e comercial em um mundo que vivia seu primeiro surto de globalização e as práticas financeiras britânicas tornavam-se a alternativa mais viável para países que procuravam estabelecer relações comerciais e obter empréstimos das Ilhas Britânicas. O padrão ouro tinha sido adotado pela Inglaterra a partir de 1717, quando Isaac Newton, á época responsável pela casa da moeda britânica, fixou para a prata um preço em ouro excessivamente baixo, fazendo com que desaparecessem de circulação todas as moedas de prata.  Até que o padrão ouro viesse a ser adotado como prática monetária pelos demais países, esses conviviam com um padrão bimetálico e tinham que enfrentar desequilíbrios representados pela diferença entre a cotação dos dois metais no mercado internacional e a relação fixada internamente para a cunhagem de moedas. Sem a Inglaterra, que convidado decidiu na aderir, a Europa foi o palco da primeira união monetária que incluía, inicialmente, Bélgica, França Itália e Suíça e depois contou com a adesão da Grécia, resultado de uma conferência internacional realizada em 1865, em grande parte motivada por diversas ações da Bélgica no sentido de dar conta do fato de ter visto suas moedas, praticamente,  desaparecem de circulação no país. O acordo fixava uma base de conversão comum que padronizava as moedas nacionais de prata e foi seguido por um esforço dos membros para manter uma estabilidade monetária, engendrando posteriores acordos monetários formais que buscavam garantir a conversibilidade das moedas locais, que aquela altura já circulavam intensamente  fora de suas fronteiras. Fadado ao fracasso por conta do clima de instabilidade política que predominava no Velho Mundo, por conta dos inúmeros conflitos que envolviam o processo de estabelecimento dos Estados Nacionais, as uniões monetárias e a conversibilidade de moedas diferentes acabaram encontrando no padrão ouro internacional, uma unidade de valor que dava conta da estabilidade monetária de um sistema onde coexistiam não só diferentes padrões metálicos mas também onde já também circulava papel moeda não conversível.


E foi no rastro do Padrão Ouro que o mundo experimentou um rápido desenvolvimento do comércio internacional e da circulação do capital após 1879, período marcado pelo fim das guerras napoleônicas e tendo a Inglaterra como maior potência econômica. No início do século XX tinha surgido, então, um sistema monetário internacional baseado em ouro que deixara de fora apenas poucos países. Isso significava que nos países que tinham adotado o padrão ouro, sempre que solicitados, os governos estavam prontos para converter seu dinheiro em circulação em ouro a um preço fixo. O dinheiro em circulação, contudo, assumia formas distintas que se materializavam em ouro, papel, prata e moedas representativas. Uma vez que o fluxo comercial e de capitais tinham ganho um forte impulso como o incremento da capacidade de fazer circular, fruto dos avanços tecnológicos que passaram a interconectar os diversos mercados ao redor do globo, a composição das reservas monetárias internacionais assumia a forma de haveres monetários nos países cujas moedas eram conversíveis em ouro. Como a Inglaterra assumira a hegemonia nas trocas comerciais e de capitais, havia a possibilidade dos países manterem parte de suas reservas em títulos do Tesouro Britânico ou depósitos bancários em Londres, onde suas obrigações poderiam ser resgatadas em ouro, através da conversão das libras esterlinas em outro pelo Banco da Inglaterra. Assim países cuja sua moeda não eram conversíveis detinham em suas reservas internacionais moedas conversíveis (libra esterlinas, marcos alemães, francos franceses, suíços e belgas, coroas holandesas e dólares norte-americanos). A consolidação de um sistema monetário internacional, no início do século XX, refletia a força industrial e comercial dos países cujas moedas tornavam-se conversíveis a partir do lastro em outro que eram capazes de acumular como resultado do desempenho de suas economias. Ás vésperas da Primeira Guerra Mundial a libra esterlina predominava como  divisa nas reservas internacionais, respondendo por aproximadamente 40% do total das reservas. Em conjunto, francos franceses e marcos alemães respondiam por outros 40% das reservas. Vale ressaltar que os estatutos monetários, já naquela época, admitiam a emissão de moedas fiduciárias, ou seja, dinheiro não lastreado em reservas em outro. Essa parcela de dinheiro em circulação, em geral, tinha como colateral bônus governamentais. Isso significava que suas reservas em ouro e divisas estrangeiras conversíveis não poderiam cair abaixo de uma determinada proporção (geralmente 35% ou 40%) do dinheiro em circulação. E foi justamente o artifício da emissão fiduciária que deu flexibilidade à operação do padrão ouro durante o período que esse vigorou.