domingo, 27 de fevereiro de 2011

Os Duplos Descontruídos: Palavras e Imagens

 DSC00373DSC00392

"Quando precisa cortar alguma coisa, a maior parte dos animais o faz com a parte direita do corpo, enquanto segura as coisas geralmente com a parte esquerda. Mesmo a visão de cada um de nossos olhos é dividida em dois campos visuais; um à esquerda e outro à direita, um retendo e o outro recortando" ( Derrick de Kerckhove)

Ao trafegar pelas tendências ocidentais desde o Sec VI a.c, encontramos uma série de duplos, compondo a relação dos homens com a natureza,  na decomposição das cores, sons, calores e formas, que invadem os corpos, via os sentidos, e são reorganizadas e ejetadas de volta, através do pensamento e do discurso. Este processo, ele mesmo, já nos abre o primeiro duplo de uma série, a partir da distinção entre interior e exterior, tendo, pois, uma cadeia de desdobramentos que, em comum, remetem à aparente necessidade de se seguir recortando a realidade e  interpretando-a, por meio de oposições.

Do rastro deixado pelos pré-socráticos,  decupamos as imagens  da escrita de Heráclito, no cerne de sua suposta obscuridade, para seguir as trilhas de um movimento similar que aproxima dois processos em suas relações oposicionais. Esta tarefa pode ser colocada a partir da seguinte constatação:  as tecnologias numéricas permitiram à imagem aquilo que a transmutação sintática permitiu ao texto. O processo de desmaterialização das bases das palavras e das imagens, tem como vizinhanças , ou zona de indiscernibilidade, a deslocalização do sentido de realidade de suas bases materiais, e estas  compreendidas como a existência de corpos sólidos em um espaço extenso. Está posta, assim, a dupla referência, impasse ou o double blind que aponta a pista para iniciarmos um processo de desterritorialização e reterritorialização da trama de forças que agem nas imagens e nas palavras. Caberia cruzar os fluxos das técnicas que alteraram o quadro espacial da representação clássica, da perspectiva e suas exigências foto-geométricas, com uma escritura que pretendia não mais se colocar a serviço da palavra ou do pensamento, dito idealista, a mover-se por uma metafísica oposicional.  A libertação da palavra e das imagens em relação às coisas que elas significam ou representam, conferem um status de autonomia que remonta (((((( os duplos já presentes no pensamento de Heráclito, revestidos de  uma potência ainda maior a partir  da fluência do devir, como  rio sempre em movimento, presente na tecitura de seu texto.

Lembro-me de uma oportunidade, quando, então, assistia uma aula sobre a interpretação Deleuzeana do conceito de duração em Bergson. Fiquei tentando "representar", mentalmente, esta imagem.  A imagem que melhor serviu para efeito da representação deste infinito virtual foi a de um rio, sem margens, superfície ou fundo, e que corria infinitamente. Abismos e céus, interior e exterior, sujeito e objeto, tornaram-se fragmentos destas projeções, impregnando todos os espaços, todos os lugares.  Não havia mais “fora”, nem terceiros termos, tudo avizinhava-se num embate de forças circulantes. Ao apelarmos à Heráclito, e ao jogo de suas dualidades, assim o fazemos na perspectiva de apropriação da interpretação que Blanchot dá ao duplo, presente em sua escritura, como uma novidade que se abre a partir do seu discurso, alternando entre as palavras e as coisas, sem encerrar em qualquer dos opostos aparentes, qualquer privilégio, mas assumindo o "vai-e-vem" entre os polos. Ao igualar o ser como o não-ser, reconhecendo a natureza de ambos como distintas, o pensador de Éfeso surge como um "relâmpago divino" iluminando a contradição como elemento constitutivo da existência.

E é esse sentido paradoxal que exprime a possibilidade de mergulharmos atrás das oposições, dotadas de naturezas próprias, num rio onde a escritura flutua, alternadamente, entre cada um dos elementos, tocando em discursos que não mais necessitam de um prevalência das palavras ou das coisas que estas significam, na experiência limite da escritura desconstruída  "...por meio da qual as relações - relações de contrariedade e de diferença (mas conforme ao aproximando-se-afastando-se) - das coisas com as palavras e das palavras com as coisas se dão de tal maneira que a reviravolta seja sempre possível e que se possa começar e terminar tanto com umas quanto com outras" ( Maurice Blanchot - A Conversa Infinita   - A Experiência Limite 2, p.17). Segundo Blanchot, Heráclito consegue preservar o duplo da prevalência de qualquer um dos polos, fazendo emergir a secreta alteridade que rege a diferença, preservando-a contra qualquer coisa que anulasse a contrariedade, distinção ou separação entre as palavras e as coisas, condição de possibilidade de se permanecer "entre" os polos, "falando ele próprio com umas e com outras e, mais ainda, colocando-se entre ambas, falando - escrevendo - por esse entre ambas e a separação de ambas, que ele não imobiliza mas domina, porque está orientado para uma diferença mais essencial, para uma diferença que certamente se manifesta, mas não se esgota na distinção que nós, ligados que estamos ao dualismo do corpo e da alma, estabelecemos de maneira por demais decidida entre as palavras e aquilo que elas designam" ( ibdem, p. 18).

clip_image001 clip_image002

Esta é a escritura que tenta se manter no limite do discurso, limite esse de uma margem sempre em movimento. Não mais um discurso que utilize a palavra como unidade de representação do significado das coisas, mas portadora de uma realidade em si, deslocada da perspectiva da verdade e da falsidade, passando a situar-se no "entre" das oposições significado/significante, coisa/signo, presença/ausência e assumindo este paradoxo  sem apelar  à negatividade dos esquemas dialéticos e suas soluções para as contradições estabelecidas. O conflito torna-se potência positiva, a partir da incursão pela topologia do espaçamento,  movimento contínuo de passagem do rio de Heráclito, onde os modos heterogêneos da conflitualidade estão ligados em uma cadeia de remetimentos circulares. Sem fundo, margens ou superfície, este rio percorre e é percorrido por seus elementos, numa "conversa infinita" ou "labirinto de inscrições" onde as coisas falam, as palavras se calam e a língua é arrastada pela correnteza "para fora dos seus sulcos costumeiros". Esta é a escritura do devir, que atravessa portas e encadeia-se num contínuo processo de vir-a-ser, espaçamento entre o ser e o não-ser. Daí o  sentido de indecidibilidade e incompletude. A escritura, deste modo, passa a não mais reivindicar uma forma, movendo-se pelas zonas de indiscernibilidade, onde as coisas assumem formas temporárias e seguem transformando-se.

Voltamos a Deleuze e ao seu conceito de "agenciamentos coletivos de enunciação". A escritura como "forma de expressão" de um "agenciamento coletivo de enunciação" assume uma natureza própria, independente das "formas de conteúdo". Expressões e conteúdos, conjunto das modificações incorpóreas e corpóreas, seguem no jogo da intervenção recíproca, legitimando a libertação da escritura de sua base material e  inscrevendo-a em  cruzamentos, onde o grau de desterritorialização determina os pontos de inserção, os buracos de passagem e o ritmo do movimento. Ao nos colocarmos nos buracos de passagem dos agenciamentos, acessamos as cores e a sonoridade das pinturas e músicas próprias da escritura, vemos e ouvimos os efeitos que estão entre as palavras. Valoriza-se desta forma o significante e processa-se o apagamento da distância entre ele e o significado, não mais relacionado ao estatuto de verdade estática, mas ao jogo de sentidos móveis da escritura. Esta ação subversiva do deslocamento da essência formal do significado, libertou o significante de sua dependência ou derivação de qualquer conceito de verdade ou elemento primeiro. A escritura seria, desta forma, liberta da necessidade de transcrever qualquer sentido ou significado original. Assim ela assume a potência  dual de significado e significante, na dança de suas palavras e signos.

Neste ponto, passamos a seguir as forças da transmutação sintática e desembocamos na escritura das matemáticas teóricas,  que revolucionaram as práticas da informação, através das tecnologias numéricas, ampliando imensamente as possibilidades da mensagem, a partir do que  Derrida descreveu como "conjunção não fortuita da cibernética e das ciências humanas da escritura" (Jacques Derrida - Gramatologia, p.12). A escritura ultrapassa a designação de um gesto físico, inscricional e pictográfico, assumindo a face dupla de significante e significado dos agenciamentos coletivos de corpos e de enunciação, não apenas como um sistema de notação que se anexa secundariamente a este processo, mas como conteúdo desses agenciamentos. A linguagem cibernética, como campo da escritura, abre a possibilidade de que a produção fonética e seu conjunto de significados, possam permanecer sendo falados, mesmo sem a presença do sujeito falante. Através dos programas de códigos de fonte, a linguagem cibernética viabilizou o fluxo de mensagens que carregam palavras, sentidos, sons, imagens, significantes e significados. Pontos sem dimensão e instantes sem duração, controlados digitalmente por algoritmos de uma linguagem codificada.

A linguagem das tecnologias numéricas, capazes de articular enunciados e criar significados no espaço de tempo do nano-segundo, deslocou, definitivamente, o dualismo clássico que mantinha os elementos afastados em polos irreconciliáveis. A partir de um "achatamento" dos polos em uma só dimensão de realidade, os agenciamentos maquínicos cruzam corpos e enunciados sem dissolver suas realidades próprias, a partir da articulação de campos de opinião, pensamento, imagem, afectos e narratividade. O programa como suporte operacional das máquinas, através de sua linguagem informacional, remete à  produção de uma realidade auto-referente, que se desvincula da base material do espaço extenso abrigando corpos duros. As máquinas de produção da subjetividade sobremoderna, máquinas de pensar, máquinas de visão, máquinas de interpretação, assumem  papel definitivo na ruptura dos esquemas clássicos do pensamento. Como uma língua menor, fragmentária, a linguagem cibernética aparece como ponto de convergência do movimento de uma escrita que libera a frase assintática que se "estira ou lança travessões como intervalos espaço-temporais..frase quase louca , com suas mudanças de direção, suas bifurcações, rupturas e saltos, seus estiramentos, germinações, parênteses" (Gilles Deleuze - Crítica e Clínica p.69).

A escritura de frases assintáticas e auto referentes, e a imagem autônoma portadora da realidade em si mesma, levam à extremo a ambiguidade dos duplos que elas compõem - significante, significado, sujeito, objeto, simulacro, realidade - estabelecendo uma zona de indiscernibilidade entre os polos, atingindo os espaçamentos de cada diferenciação, num deslizamento entre os termos, onde o que se cogita não é a mimese mas o devir, rápido demais para o olho e para a lingua. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário