domingo, 27 de fevereiro de 2011

1929 - Um desastre muito mais que monetário - Parte I

"Uma Alice confusa e um tanto desconfiada fez à liderança republicana algumas perguntas simples:

- A impressão e venda de mais ações e títulos, a construção de novas fábricas e o aumento da eficiência não produziriam mais mercadorias do que poderíamos comprar?

- Não - gritou Humpty Dumpty. - Quanto mais produzirmos, mais poderemos comprar.

- E se produzirmos em excesso?

- Veja, poderemos vender para os estrangeiros.

- Como os estrangeiros pagariam por eles?

- Nós emprestaremos dinheiro.

Entendo - disse a pequena Alice. - Eles vão comprar o nosso excedente com o nosso dinheiro? Claro, os estrangeiros irão nos pagar de volta com a venda dos produtos deles.

- Ah, de forma alguma - disse Humpty Dumpty. - Nós construiremos um muro alto chamado tarifa.

- E - disse por fim Alice - como os estrangeiros irão nos devolver esses empréstimos?

- Isso é fácil - disse Humpty Dumpty. - Você já ouviu falar em moratória?

E assim, meus amigos, chegamos ao coração da fórmula mágica de 1928."(O Capitalismo Global - História econômica e política do século XX - Jeffry A. Frieden)

Se hoje já seria lugar comum não considerar sustentável   supor que a causa  da  "Depressão" de 1929  repousaria, isoladamente,  num único fator, seria de muita utilidade para os analistas da crise das hipotecas americanas um aprofundamento na compreensão do cenário econômico mundial na década de 1920, bem como da estrutura do seu sistema monetário, no intuito de se demarcar as diferenças entre os contextos de ambas as crises: a de 1929 e a de 2007.

A despeito das crises experimentadas no seu decorrer, o período de 1871 a 1913 pode ser considerado como um marco na perspectiva de uma integração econômica global.

Sem grandes conflitos geopolíticos entre as grandes potências mundiais, dentre as quais a Grã-Bretanha destacava-se pela hegemonia de sua economia, o  fluxo comercial liberalizado permitia a integração dos mercados mundiais.  Aliado a novas tecnologias que abria espaço para um mercado verdadeiramente internacional e com um padrão monetário baseado no ouro, as autoridades monetárias se comprometiam com a manutenção da conversibilidade, através de uma intensa cooperação internacional. Os mercados mundiais de produtos e capitais estavam ligados mais fortemente do que nunca, neste interlúdio de excepcional estabilidade econômica.

" O padrão ouro, o livre comércio e os novos meios de transporte criaram um mercado global conveniente, acessível e previsível ". (O Capitalismo Global )

Contudo, esta nova ordem global convivia com constantes ameaças. O livre comércio propiciava a invasão de produtos agrícolas baratos no "Novo Mundo", derrubando os preços e devastando muitas áreas rurais do "Velho Mundo".  As novas tecnologias, se por um lado aumentavam a renda agregada, por outro, desempregavam milhões de trabalhadores. Além disso, o crescimento econômico se dava em velocidades diferentes, o que gerava abismos tecnológicos e industrias entre nações pobres e ricas.  Apesar do mundo estar experimentando sua maior revolução econômica, a maior parte dele continuava "opressivamente pobre".

Por volta da virada do século, a hegemonia da economia britânica estava ameaçada pelo ritmo mais acelerado do crescimento e do desenvolvimento financeiro em outros países do Globo. O EUA, embora ainda com um perfil acentuadamente agrícola, já figurava como a maior economia mundial e juntamente com outras potências mundiais engajaram-se numa batalha comercial, cuja proteção de seus mercados domésticos era fundamental, questionando, assim, o livre comércio, que foi o motor do crescimento da Grã-Bretanha. Além disso, foi na última década do período que  iniciou-se  uma nova rodada de expansões coloniais na busca por novos mercados, despertando atritos "adormecidos" e embalados pela "Pax Britânica", minando a solidariedade na qual a cooperação financeira se baseara até então.

O conflito de interesses entre as grandes potências mundiais e as tensões geopolíticas, naquele ponto generalizadas , culminaram na Primeira Guerra Mundial, em 1914. Quando a guerra terminou, em 1918, dentre suas conseqüências destacaríamos duas delas, que seriam determinantes para o curso da economia global, até os eventos que iriam desembocar na grande depressão de 1929: a falência do padrão ouro juntamente com o afrouxamento da solidariedade entre as nações, que garantia, em última instância o seu sucesso e a posição hegemônica dos Estados Unidos como exportador de capital e líder da reconstrução da ordem mundial, cuja política internacional e diplomacia econômica em muito se afastava da Grã-Bretanha dos "clássicos anos dourados".

Após a guerra, dentre todas as moedas importantes, apenas o dólar manteve sua conversibilidade em ouro. A guerra minou, dramaticamente, a capacidade dos governos em relação à conversibilidade de suas moedas domésticas. Os Estados Unidos chegavam ao fim da guerra com suas reservas abarrotadas de ouro, num momento em que o mundo se via em meio a um processo hiperinflacionário generalizado. Uma política deflacionária e a respectiva manutenção de um câmbio desvalorizado garantiria às nações o restabelecimento da conversibilidade em ouro de suas moedas. Assim, o padrão ouro retornou ao mundo da década de 1920, contudo, mostrava-se insatisfatório em sua missão de equilibrar  os balanços de pagamento das nações e o volume das reservas mundiais. Com  um desequilíbrio do volume das reservas entre os diversos países, muitos deles  experimentaram uma profunda contração dos meios de pagamento dos seus bancos centrais e uma grande dificuldade de equilibrar suas contas externas. Assim, qualquer perturbação no sistema fazia com que o capital financeiro, que nos "clássicos anos dourados" fluíra em direções estabilizadoras, empreendesse grandes fugas, o que transformava qualquer perturbação limitada numa crise econômica e política.

E foi neste ambiente que irrompeu o hiperaquecimento das atividades econômicas internacionais, no período de 1925 a 1929, alimentado pelo capital e pelos mercados norte-americanos. Nesta altura, Wall Street  já tinha substituído Londres como o centro financeiro internacional e as empresas norte-americanas inundavam o mundo com milhares de filiais. "O centro financeiro do mundo, que precisou de milhares de anos para viajar do Eufrates ao Tâmisa e ao Sena, passou por Hudson entre a alvorada e o anoitecer"(America's Stake in International Investments - Cleona Lews). Com os Estados Unidos no centro, o mundo assistia a um novo boom que redundou em um forte crescimento ao redor do globo. Economias se modernizaram, a classe média crescia, trabalhadores organizados se tornavam politicamente mais influentes e regimes democráticos se estabilizavam. Contudo, a nova ordem mundial carecia de um regente confiável e de uma orquestra harmoniosa.

Num mundo cindido pela lembrança das trincheiras, o novo regente claudicava entre o apoio a livre exposição à economia mundial dos emprestadores de Wall Street e o protecionismo da cúpula de seus líderes econômicos.  Enquanto o novo regente da economia mundial atingia a impressionante marca de 45% do estoque mundial de ouro em suas reservas, em 1926, os demais países alternavam-se em severas crises de pagamento, que exigiam de seus bancos centrais  um aperto monetário na defesa de suas reservas cada vez mais precárias. Contudo, a fartura de liquidez alimentada pelo forte crescimento da economia norte-americana, que muito incentivou o "boom" dos últimos anos ao redor do mundo, seria um dos fatores da crise que estava por vir.

Com seu balanço de pagamentos fortalecido, os Estados Unidos exportavam cada vez mais capital, que iria financiar o déficit em conta corrente dos demais países. As altas taxas de retorno, geradas pela escassez de capital ao redor do globo, faziam com que o capital norte-americano fluísse, cada vez de forma mais intensa, através do Atlântico. Os bônus denominados em dólares no final da década de 1920, em nome de governos e empresas estrangeiras, haviam quintuplicado, tornando o mundo cada vez mais dependente da importação do capital dos Estados Unidos. Contudo, o superávit  norte-americano alimentava também o crescimento explosivo de Wall Street.  Ao longo de 1927, a partir da preocupação de que os recursos produtivos estivessem sendo desviados para o mercado acionário, que vinha crescendo de forma ininterrupta, e frente ao temor provocado pelo crescimento maior dos estoques de moeda e crédito do que o das suas reservas de ouro, o FED elevou suas taxas de juros. Esta medida teve a imediata consequência de atrair "de volta para casa" o capital dos Estados Unidos, que naquela altura, financiava o resto do mundo, um duro golpe sentido pelos países que muito dependiam das importações de capital norte-americano. O aumento dos juros também comprometia a credibilidade financeira dos países fortemente endividados, aumentado o custo de suas dívidas.

Na segunda metade do ano de 1928 ,os empréstimos norte-americanos ao exterior caíram a quase zero. Com a interrupção do fluxo de capital para os países deles dependentes, começou a queda de sua demanda ,com a consequência queda do preços dos bens por eles produzidos. O aperto monetário do governo dos Estados Unidos já podia ser sentido no início de 1929,  não só pela queda no preço das ações, mas também com a desaceleração de sua produção industrial e na queda do preço das commodities norte-americanas.  Com a restrição do fluxo de capitais norte-americanos para os países em desenvolvimento, sobravam para os mesmos duas opções: usar suas receitas remanescentes em moeda estrangeira, para continuar honrando o serviço de suas obrigações externas, ou poupar as reservas de seus bancos centrais e defender a conversibilidade de suas moedas.

Assim, os países da periferia optaram por modificar as regras de conversibilidade e permitiram a desvalorização de suas moedas no segundo semestre de 1929 e na primeira metade de 1930, o que representou um significativo dano ao sistema monetário internacional, comprometendo a estabilidade nos países centrais, que nesta altura, já experimentavam o colapso de sua atividade industrial. Logo os agentes do novo padrão ouro perceberam que este não mais funcionava como na "era dourada". Já não era mais possível confirmar nos fluxos de capital estabilizadores, que no passado, haviam financiado os déficits em conta corrente dos países industrializados.

Com a queda dos preços nos mercados periféricos, ficou mais difícil para os tomadores de empréstimos junto ao sistema bancário, honrar seus compromissos, e os bancos credores, por sua vez, ficaram hesitantes em relação a rolar os empréstimos ou conceder novos financiamentos. Esta restrição no crédito reduziu o ritmo da atividade econômica e as perspectivas das empresas em concretizar seus projetos de crescimento.  Os Bancos centrais, por sua vez, desencorajados de intervir em benefício do sistema bancário em virtude da prioridade que atribuíam ao cambio fixo, associado ao padrão ouro, evitaram uma injeção de liquidez que pudesse permitir uma desvalorização da moeda, pois esta poderia acirrar o clima de desconfiança, que vinha provocando um resgate em massa de depósitos, uma vez que os investidores procuravam evitar as perdas de capital decorrentes da desvalorização. Neste cenário a intervenção dos bancos centrais torna-se-ia uma tarefa das mais difíceis, uma vez que corriam o risco de serem contraproducentes. A depressão era, então, inevitável.

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