domingo, 27 de fevereiro de 2011

Coisas da Terra do Barack

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- Pô, o negócio ainda nem abriu!

Era mas uma pessoa chegando para fazer parte da fila que se formava na porta do consulado americano; esperançosas em obter autorização para entrar no país do Obama.. Sempre suspeitei que a orientação de chegar, pelo menos, trinta minutos antes do horário marcado para a entrevista com a autoridade consular, fazia parte da primeira etapa de uma estratégia que visava revelar os potenciais imigrantes ilegais, terroristas ou qualquer outra pessoa, do tipo que o Tio Sam quer manter longe de suas fronteiras. Sempre fiquei na dúvida, contudo, se a câmera escondida, que filmava os aplicantes ao país da fantasia, estava por traz das janelas do consulado que costeia a fila ou em alguma das barraquinhas de ambulantes armadas do outro lado da rua. Coisas da CIA. Tinha agendado a entrevista para as sete e meia e embora o site do consulado informasse que o procedimento levava, em média, uma hora e meia, confesso que estava angustiado com a possibilidade de chegar atrasado ao trabalho.

Rostos sonados, olhares distantes e envelopes pardos ou plásticos cheios de documentos; formulário de solicitação de visto, declaração de bons antecedentes, foto 5 x 7 recente, certidão de casamento, comprovante de renda, extrato de conta corrente, documento do carro, boletim da escola primária cheio de estrelinhas, enfim, tudo que pudesse comprovar que você era uma pessoa que jamais pretenderia causar algum mal ao cidadão americano e que pretenderia tornar ao seio de seu país. Juntos eles compunham o perfil da maioria dos aplicantes ao sonho americano ali presente. Muitos semblantes pareciam denunciar uma certa tensão, aliviada pelas conversas que iam, aos poucos, surgindo entre os companheiros de fila. Através delas, vamos tomando conhecimento dos motivos e das expectativas em torno da concessão do visto de entrada, já negado em mais de uma oportunidade a alguns dos que ali estão. Mas eles não desistiam, insistiam e subsistiam na certeza que ainda chegariam a América. Não importa que os EUA estejam ameaçados de perderem sua supremacia econômica e política, pouco faz diferença se o déficit público americano beire as raias de uma dívida impagável, todos querem chegar à sede do império. Finalmente, abrem-se as portas do centro de triagem.

Se ficar em pé na fila, por quase uma hora, já tinha minado um pouco do sentimento de dignidade de cidadão, ter que deixar o aparelho celular com os seguranças responsáveis por efetuar a revista, para só retira-lo na saída, foi um golpe sentido. Afinal de contas, ficar sem celular em qualquer lugar, nos dias de hoje, é sensação de impotência na certa, ainda mais em um espaço onde todas as ações destilam hostilidade. Foi aí que compreendi que tinha ingressado na segunda etapa do bem arquitetado processo de caça às potenciais personas non gratas. Já com todos os formulários exigidos nas mãos devidamente preenchidos e conferidos, os aplicantes ao “carimbo do sim” são submetidos a uma segunda fila para a retirada de senhas, que deverão ficar de posse de cada um até que seu respectivo número seja chamado por uma das muitas meninas de colete cuja inscrição em suas costas diz alguma coisa mais ou menos como “em que posso lhe ser útil?” ou “posso ajudar?”. Elas levarão os perseverantes requerentes até uma outra fila para a retirada de suas impressões digitais. Afinal de contas, “tem que ser selado, registrado, carimbado avaliado, rotulado se quiser voar”.

Depois dessa via crucis, finalmente, os candidatos ao direito de cruzar as bordas do país que levou o primeiro homem a pisar na lua chegam diante do oficial americano que irá decidir os seus destinos. A essa altura, a maioria já se encontra, no mínimo, um pouco impaciente por ter sido submetida a este longo procedimento. Para algumas delas este é o momento crucial e os ianques do consulado sabem disso. Afinal, foram minando todas as a defesas até o ponto de deixa-las sem condições de esconder seu verdadeiro caráter ameaçador e ilegais intenções. Em pé, bem diante do seu algoz, elas estarão, finalmente, prontas para a última etapa.

Evidentemente, assistia todo este filme na posição de um observador, a ponto de esquecer que também era parte do plot, até que uma voz vinda do outro lado do vidro do guichê do oficial do consulado foi capaz de me devolver a realidade de aplicante. Falando um português arrastado, o guardião da chave de acesso aos preços do Best By permitia que eu retribuísse o insuportável constrangimento de se sentir incompreendido ao final das frases mais simples, faladas sem os detalhes que eram fundamentais para a boa compreensão.

- Quanto o senhor ganha por mês ?

- Como???

Perguntei com a impressão de não ter ouvido direito, pois, por princípios, não respondia esta pergunta a ninguém, exceto ao fisco na declaração do imposto de renda.

- Qual o seu salário?

Quando percebi que, desta vez, tinha entendido corretamente, mesmo desconfortável pudemos ir adiante.

- O Senhor tem bens? Qual o valor dos seus bens?

Na minha idade e com essa fartura de crédito no mercado, parecia óbvio que eu tivesse bens, nem que fosse um “carrinho usado” comprado sem entrada. Mas quis às circunstâncias da vida que me tivesse desfeito de todos. Lembrei-me, porém, que eles ainda constavam na declaração de imposto de renda que trazia na pasta. Assim, fui em frente sustentando sua posse e passei a detalha-los e discorrer sobre o valor de cada um.

- O Senhor viajará sozinho?

- Sim, Senhor.

- O Senhor mora sozinho?

- Não, Senhor, moro com esposa e filho.

Naquela situação, achei prudente não detalhar a minha situação conjugal e resolvi assumir esta premissa também.

- Mas se o Senhor é casado, por que viajará sozinho?

Aí já era demais. Quem era ele para entrar em detalhes tão íntimos sobre as decisões que envolviam o casal. Que se danasse o visto. Que se danasse Nova Iorque; aquela cidade deslumbrante que destila cultura contemporânea, fruto de uma espetacular multiplicidade de raças, credos e opções. Que se danassem os americanos, segundo Caetano, responsáveis por grande parte da alegria deste mundo. Não estava disposto a continuar aquele interrogatório. Afinal de contas, nem iria viajar mesmo por esses dias. Contudo, lembrei, por uns instantes, do extenso formulário que tinha consumido um tempo enorme para ser preenchido na Internet, da taxa de US$ 131,00 paga no banco, enfim, de tudo que já tinha passada até chegar ali, respirei fundo e fomos em frente com a sabatina.

- Como vou ficar na casa de um amigo decidimos que seria melhor se ela não fosse.

- Esse amigo é americano?

- Não, é brasileiro.

- O que ele faz nos EUA?

- Desculpe, o senhor poderia repetir a pergunta por favor?

- Seu amigo faz o que nos EUA?

- Ele trabalha como gerente da filial de uma empresa brasileira.

Ao logo de nossa conversa notei que minha respiração não estava normal. Subitamente percebi que estava acuado, como um criminoso pronto a confessar um crime. Mas qual seria ele? Talvez o fato de ter nascido em uma colônia. Mas ele também, e no entanto está me argüindo severamente, investido de uma direito que eu mesmo lhe tinha concedido quando resolvi que queria ter meu visto renovado, just in case. Por algum instante o cara ficou mudo, digitando e olhando para as informações que surgiam na tela do computador. Mas alguns segundos e ele pergunta, com uma expressão confusa:

- Carlos Machado, você conhece algum Carlos Machado, nascido a 19/10/1944?

- Sim, conheço. Trata-se do meu pai, que faleceu há alguns anos.

- Localizei um registro de que o Senhor teria tentado imigrar para os EUA.

Boa lembrança. Como meu pai foi residente do país das maravilhas, tinha requerido meu green card junto à imigração americana, e meu pedido ainda transitava, mesmo após a sua morte e se eu tivesse alguma esperança por uma conclusão favorável ela se extinguia ali. Expliquei que tive a intenção de residir com o meu pai no período em que ele morava na terra do Burger King e por isso abrira um processo de residência permanente.

- O Senhor tem como provar isso?

As coisas pareciam estar se complicando e decidi, a partir dali, esquecer todas as diferenças e tentar obter a simpatia do meu interlocutor. Expliquei que, na verdade, acompanhava o processo via internet e que com a morte do meu pai o processo perdeu o sentido. Depois disso, a esposa que com ele tinha residido por mais de oito anos, acabou se tornando cidadã americana e continua morando na América até hoje.

- Seu visto foi concedido e o Senhor deve se dirigir ao guichê do auditório e pagar a taxa de entrega, para que o passaporte seja enviado pelo correio.

Ao deixar o consulado, logo após de ter resgatado meu aparelho celular e com ele minha dignidade de cidadão, segui caminhando pelas ruas do Rio de Janeiro a pensar porque diabos os brasileiros querem tanto viajar para o país que mais investe em tecnologia no mundo mas que não entende nada sobre como conduzir um processo de requerimento do visto para estrangeiros. Ao chegar no trabalho, já em minha mesa, o relógio marcava nove horas em ponto. Afinal de contas, eles eram americanos.

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