domingo, 27 de fevereiro de 2011

A Sacralização do Volátil

O sociólogo polonês Zygmund Bauman em suas  abordagens sobre as  novas condições da vida social, política e econômica  na modernidade, cunhou um conceito que passou a refletir os novos aspectos da vida humana em sociedade. Este novo momento se afirmaria  a partir do maior dinamismo e maior velocidade das trocas entre os agentes, num processo de integração global, com grandes consequências para a experiência individual humana e sua história conjunta.

Assim, uma análise preliminar é capaz de revelar que o principal fundamento do  pensamento de Bauman se apóia numa das características físicas dos líquidos e gases: a fluidez.

O que mais nos desperta a atenção no todo da argumentação baumaniana é sua tentativa de caracterizar o novo estágio da civilização moderna, através de metáforas sempre ligadas aos principais princípios da fluidez. Daí a sua abordagem ter desembocado em obras com títulos sugestivos como: Modernidade Líquida,  Amor Líquido,  Vida Líquida e Medo Líquido.

Na base da idéia de fluidez encontra-se a idéia de mobilidade, que segundo Bauman, facilita a alteração da forma dos líquidos diferentemente dos sólidos, que "fixam o espaço e prendem o tempo".

" Os fluidos se movem facilmente. Eles fluem, escorrem, esvaem-se, respingam, transbordam, vazam, inundam, borrifam, pingam; são filtrados, destilados; diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos - contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho."  ( Modernidade Líquida - Jorge Zahar Editor, p.8)

Aproveitando a idéia de fluidez e de como a sobremodernidade se   fundamenta a  partir de  relações caracterizadas pela impermanência , transitoriedade e  liquefação dos vínculos, poderíamos ousar afirmar que o ponto alto da sociedade sobremoderna seria a  "sacralização do volátil".

Segundo Luiz Carlos Fridman (professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFRJ) a precariedade, vulnerabilidade, instabilidade e incerteza cercam a condição humana nesse estágio da modernidade avançada (vide o Pensador da sociedade desengajada -  Caderno Prosa & Verso da edição de o Globo de 23/02/08).  A instabilidade e alternância seriam as principais características nessa era , onde prevalecem " a fuga, a astúcia, o desvio e a evitação, a efetiva rejeição de qualquer confinamento territorial, com os complicados corolários de construção e manutenção da ordem" (Modernidade Líquida - Jorge Zahar editor, p.18).  Na modernidade líquida não existem mais territórios fixos. Por se moverem à velocidade do sinal eletrônico, todos estão em todo lugar e em lugar nenhum.

Partamos, então, para definir o espírito da época sobremoderna, mesmo que esta expressão seja marcada por contornos essencialistas, e o uso tão caro aos nascidos numa geração de ruptura e de descontinuidade.  Desta forma, mesmo correndo o risco de uma errônea interpretação,  a expressão "espírito de uma época"  é a que melhor se adequa  para ilustrar a forma como as pessoas se comportam num determinado estágio da sociedade humana.

Como uma tendência coletiva de pensamento e ação, o espírito da sobremodernidade não se apresenta como tentativa de retorno a um passado idealizado, alimentado pela nostalgia de uma harmonia que nunca existiu, nem como um instrumento para transformar o presente num futuro recheado de esperanças, mas numa postura que assume o transitório e o impermanente como uma própria religião. A sociedade do sec XXI sacralizou a volatilidade, e esta  passou a alimentar o processo das trocas e dos fluxos sobremodernos, como motor que conduz e sustenta o próprio movimento da trama social e dos seus agentes.

A sobremodernidade convive com o desencantamento do mundo e com o consequente desaparecimento dos heróis, vilões, mártires e algozes que retroalimentavam os projetos de futuro. Na instantaneidade das relações, o espírito sobremoderno aponta para a casualidade dos encontros e convive sem constrangimento com o verdadeiro, a todo tempo, tornando-se falso em plebiscito, numa velocidade surpreendente. Cada plebiscito seria o resultado de um tratamento dos fatos e as questões a partir dos diversos novos elementos que compõem a abordagem, conectados e imbricados na teias da trama social, permitindo-nos substituí-los e seguir em frente quase que instantaneamente.

Porém, o ponto fundamental para a "Sacralização do Volátil" é a  falta da obrigatoriedade de coerência com qualquer projeto de mundo, quer seja ele de direita ou de esquerda, alinhado ou revolucionário, a favor ou contra o status-quo. É estar em todos os lugares e , simultaneamente, em lugar nenhum, sem o embasamento de grupos de referências.  Não existe um compromisso de construção de uma ordem nova e melhor, em substituição de uma velha ordem defeituosa. A tarefa se limita a garantir o contínuo movimento universal, onde os conteúdos  são reunidos e reclassificados a todo o tempo, dada a velocidade, fluidez e alternância da  natureza de seu fluxo, que não assume um forma fixa nem estável.

Assim, com a " Sacralização do Volátil" o escopo do movimento é tomado na   perspectiva de garantir o fluxo dos acontecimentos, através da construção de conteúdos que se flexionem e se torçam a partir dos seus encontros e dos acontecimentos que se cruzam e se chocam no meio da trama social.

" A crise de um espaço substancial, homogêneo, herdado da geometria grega arcaica, em proveito de um espaço acidental, heterogêneo, onde as partes, as frações, se tornam essenciais, atomização, desintegração de figuras, marcas visíveis que favorecem todas as transmigrações..." (Paul Virilio - O espaço crítico)

 

 

 

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