domingo, 27 de fevereiro de 2011

Transracionalidade

 

Dizem que sou humano, mentira que diz sou eu !!!

 

Está no cerne da razão a capacidade de elevar o ente  “lançado no mundo”acima da natureza, à um lugar de onde este torna-se-ia capaz de investir contra as forças caóticas que insistem em reintegrá-lo às espécies e coisas de si não dissociadas. A história da razão ocidental pode ser seguida através do rastro de uma investida do ser, “dito humano”, contra a natureza interna e externa a si. 

A partir do momento que se declara “animal racional”, o homem se diz separado da natureza, sendo a razão o fundamento desta separação. Porém, sua “animalidade” permanece como elo de contato com esta realidade contra qual ele passa a investir por intermédio de sua racionalidade, elemento que o permite se dizer separado dos demais animais e coisas. A partir daí inventa-se um caminho por onde trafegam os grupamentos de animais racionais, através de ritornelos, saltos e desvios. Nas esquinas e cruzamentos destas trilhas foram edificadas as formas de cultura e seus saberes diversos, que misturadas as conquistas territoriais, entronização de soberanos, revoluções e reformas deixaram as pegadas de várias civilizações. Elas cruzaram planícies e oceanos, riscaram os céus com suas máquinas maravilhosas e vez por outra eram instadas a encarar a marcha impassível da natureza que parecia insensível aos seus apelos, parecendo escarnecer de seus esforços.

Como falar de um mundo, onde só posso presumir que o sol nascerá, que o vento soprará  onde quiser e onde ao tentar apreender algum significado, mergulharia num rio sem margem superfície ou fundo?

A separação operada pela razão que coloca o ente pensante do lado de fora do espaço da natureza é dada por uma linha, ou limite, traçada de forma a separar o humano de tudo aquilo que não o é, distinguindo-o de todo o resto, através de sua capacidade de representar a si fora do todo a que pertence, de onde poderia pensar a si separado do espaço comum que compartilharia com as outras coisas, transcendendo-as  e colocando-se à parte, através do pensamento de si e daquilo que dele se difere. A ação da razão humana implica, então,  um movimento de preensão em relação a natureza, no intuito de expelir, trazendo para fora o ente humano do espaço que o dilui, no qual ele está mergulhado e dissolvido em todo o resto que de si não se diferencia. Porém, não conseguindo alcançar os pontos que se elevam, aparentemente, ao infinito, isso porque eles se levantam tão alto, deixando atrás de si a sensação de uma distância sem fim, o máximo que o ente dito humano consegue é ater-se a um ponto que trafega sem direção e portanto não cumpre, a todo o tempo, o papel de dizer o cerne das coisas que fogem.

Querendo, de fato, enxergar a diferença entre as coisas, e a partir daí construindo teoremas e postulados, escrevendo axiomas  pela necessidade da adequação à experiência do possível, o homem prossegue na tarefa de reter o que o transpassa. Mudam-se as estratégias e  prossegue-se nas alternâncias que, em centro ponto,  dão a ilusão de se ter apropriado algum centro ou lugar comum de um pensamento autônomo. Imediatamente outro salto; ao ponto de não conseguir estabelecer nenhuma constância na fugaz sensação de que algo novo foi dado a conhecer.

Porém ele insiste e não desiste. E nesta busca existe a percorrer o espaço vazio, sempre novo, na insustentável certeza de que nada tem, a não ser a representação de seu mundo. Quando pensa que  alcançou o centro de onde se possa fixar tudo que passa, mesmo que minimamente, percebe que tudo escapa. Não por entre os dedos mas por entre os poros e através dos pontos de contato, que como buracos derramam para dentro de si os sentidos, e já não há mais nenhum significado que  reste pois todos esparramam-se por entre as várias possibilidades que se abrem neste fundo, onde nada resta, senão a parte mais longínqua do silêncio; e dele se farta fazendo deste instante um traço que não leva, ademais, a que se faça uma acordo ou se esboce um destrato.

 

Asfalto Não Faz Falta 001_0001 VTS_01_2 120_0001 DSC00394

Se a razão desde o inicio funcionava como elemento de elevação do animal humano para fora do meio natural e do conjunto de coisas distintas de si, foi no século XVII que esta encontrou condições de possibilidade, a partir da qual foi capaz de formular um modelo de conhecimento cuja forma implicava na aporia de um  ente humano na posição de sujeito empírico, que se encontra no mundo, como objeto em meio de outros objetos e na posição de um sujeito transcendental, diante do mundo em seu todo que ele próprio constituiu como a totalidade dos objetos da experiência possível. Esta forma de saber aponta para a necessidade de reconhecimento dos limites da racionalidade, os quais não se deve ultrapassar, limite que separa as forças infinitas das forças finitas e de onde se pode assumir as limitações das finitas faculdades do conhecimento humano como condição transcendental de um conhecimento que deveria progredir ao infinito. “A modernidade começa com essa idéia inacreditável e em última análise inexplorável de um ser que é soberano precisamente por ser escravizado, um ser que em virtude de sua verdadeira finitude, toma o lugar de Deus” (J. Habermas – O Discurso Filosófico da Modernidade, p. 366).

Daí nasceram as categorias do saber moderno como base da compreensão do lugar do homem no mundo, sua filosofia, ciência, teoria moral e jurídica, literatura e arte. As categorias do saber moderno relacionam os conteúdos pensáveis como suportes positivos do conhecimento, cujos critérios de validade estavam vinculados à capacidade da razão seguir os encadeamentos dos conteúdos representados através de uma linguagem pronta a reproduzir as regularidades do mundo apreendido pelos sentidos. A modernidade resgatara, então, o gênio grego que era “filosófico, claro e lógico”.

Entretanto, a partir da metade do final do século XIX algo se quebrou e a tarefa do pensamento dito moderno parece ter sofrido uma ruptura definitiva. Foucault costuma situar a modernidade como uma série de relações que se estabeleceram entre os limiares dos séculos XVII e XIX. Se tentarmos estabelecer uma cronologia, mesmo que apenas para situar os sujeitos que obtiveram uma notoriedade no círculo de filósofos, cientistas ou escritores, percebemos que os principais representantes desta “quebra” que se verificou nas categorias que representavam o lugar do ente humano no mundo das coisas com ele compartilhadas, nasceram, viveram e morreram entre os meados do século XIX e os meados do século XX. Este período foi, sobremaneira, marcado pela constatação que a racionalidade “clássica” não mais era capaz de operar a síntese entre pensamento e mundo, frente a multiplicação das linhas de fugas a insistir em explodir a estabilidade de uma razão ordenadora dos sentidos, que centralizava no sujeito autônomo a possibilidade de manter reunidas todas as forças circulantes de um mundo em movimento.

Estas linhas de fuga delinearam os tons da cores de uma época, na brancura de um espaço ocupado pelo sujeito da razão, fechado na clausura de si e impotente na tarefa de seguir as marcas de um preenchimento que empurravam os conteúdos para longe de qualquer ponto de partida. Surge, então, uma nova racionalidade como novo desejo de confrontar a natureza das coisas nas quais o sujeito da razão se vê imerso, a partir de um centro do que não se pretende descrever como sentido, fora do que se possa dizer ou interpretar como preciso, mas na face de um presente que é a única dimensão do tempo. Como algo que seja possível elevar até que se alcance  um mínimo contato que o faça parte daquilo que sem saber se é a face mais profunda de um ser. Inicia-se, portanto, a espera na certeza que não se tem de algo ter,  como aquilo que sobra como destino de ser tão só.

Em Nietzsche este destino, cumprido na medida em que vagueia solitário pelas zonas de indiscernibilidade de onde anuncia a chegada de uma nova era, irá ferir mortalmente a razão ocidental. A partir de uma ontologia que vem se colocar como potência impessoal e disjuntiva, para afirmar a impossibilidade de se seguir o encadeamento dos conteúdos a partir da cifragem distribuída que os classifica e distingue, através das categorias fixas da razão. Com Nietzsche o pensamento é deslocado para um lugar “além do bem e do mal”, do uno e do múltiplo, da identidade e da diferença, do tempo e da eternidade, do verdadeiro e do falso. A topologia deste “além” situa o sentido no exato instante da inflexão dos devires e dos pontos de fuga, onde os movimentos são pensados em termos dos pontos de trocas; afastamentos e comutações situados na indiscernibilidade do instante. Este local de inflexão passa ser o palco das trocas entre o virtual e o atual, onde as territorialidades em fuga se movimentam abruptamente e são interrompidas, tocam-se e distanciam-se, assumindo o status de uma potência impessoal neutra não vinculada a qualquer conteúdo em circulação mas posicionada no domínio do ‘”já e do ainda não”, menor espaço e tempo possível.

 

Olhar colírico
Lirios plásticos do campo e do contracampo
Telástico cinemascope teu sorriso tudo isso
Tudo ido e lido e lindo e vindo do vivido
Na minha adolescidade
Idade de pedra e paz

Teu sorriso quieto no meu canto

Ainda canto o ido o tido o dito
O dado o consumido
O consumado
Ato
Do amor morto motor da saudade

Diluído na grandicidade
Idade de pedra ainda
Canto quieto o que conheço
Quero o que não mereço
O começo
Quero canto de vinda
Divindade do duro totem futuro total
Tal qual quero canto
Por enquanto apenas mino o campo ver-te
Acre e lírico o sorvete
Acrilíco Santo Amargo da Putrificação

(Caetano Veloso/Rogério Duprat)

 

O que veio a seguir foi e está sendo a tentativa de dizer algo que jorra como um fluxo ininterrupto; rio sem margem superfície ou fundo que corre. Este fluxo não consiste apenas nas pulsões de vida e morte já descritas por Freud, nem no pensamento do fora dito por Foucault, tampouco no centro móvel de Derrida, embora contenha tudo isso. Até porque qualquer localização espacial, mesmo que provisória, apelaria para o seu negativo, ainda que este fosse tido como um “nada” com características absolutas. Os movimentos velozes da sobremodernidade exigem do pensamento um elemento que transcende a racionalidade, tradicionalmente, estabelecida no ápice da autonomia do sujeito moderno, separado do mundo e, em última instância, dele medida. Propor uma outra racionalidade sem lançar o pensamento numa negação irracional careceria de uma nova forma de expressão que fosse capaz de se mover, sem parar e que, portanto, estivesse no limite da transição entre os conteúdos circulantes. Razão transitiva, transpositiva, transversalista…quem sabe uma “transracionalidade” que eleve o pensamento ao total imobilismo ou ao movimento absoluto.

 

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