quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Carta a um amigo de direita

 Meu amigo, seria interessante uma visita ao trabalho de Tomas Kuhn (1922 - 1996), em especial ao seu livro “A Estrutura das Revoluções Científicas”, onde ele considera próprios da ciência os aspectos históricos e sociológicos que rodeiam a atividade científica e não só os lógicos e empíricos. Isso significa que na atividade científica influi tanto interesses científicos (ex: a aplicação prática de uma teoria), como subjetivos, como por exemplo, a existência de coletividades ou grupos sociais a favor ou contra uma teoria concreta, ou a existência de problemas éticos, de tal maneira que a atividade científica vê-se influenciada pelo contexto histórico-sociológico em que se desenvolve. Khun inspirou todo um debate que se seguiu à sua obra em torno da interface entre a ciência e a sociedade, na perspectiva de se avaliar a interação entre os fatores racionais e os valores sociais. Da mesma forma é fundamental a análise de Michel Foucault (1926-1984) sobre as relações de saber e poder em uma sociedade, em especial na sua obra “ A História da Loucura”, onde ele desenvolve uma análise do surgimento da ciência psiquiátrica a partir da prática de reclusão do louco nos asilos anteriormente destinados a leprosos e como a visão da loucura como uma patologia, a elaboração de seus sintomas e os tratamentos a ela aplicados, surgem na esteira da transformação dos paradigmas científicos na modernidade. Ainda sobre esse assunto é relevante conhecermos o trabalho de Georges Canguilhem(1904-1995),  um especialista em Epistemologia e História da ciência que escreve sobre a formação da biologia como ciência e sobre medicina, que aborda em seu livro “O Normal e o Patológico”, a infinitude de possibilidades fisiológicas e contextuais no processo da vida, onde estabelecer uma norma para que se possa afirmar a existência de saúde ou doença apenas transforma estes conceitos em um tipo de ideal. 


A importância de entender essa interação ao nos debruçarmos nas praticas civilizatórias nos abre um campo de análise que não separa as formas de saber instituídas da dinâmica do processo da vida coletiva. Afinal essa deve ser a medida para aceitarmos ou não certas práticas, científicas ou sociais. Entender como elas estão imbricadas ajuda a esclarecer como essa dinâmica é responsável por produzir os saberes instituídos, desde a objetividade de um paradigma  científico aos pressupostos éticos onde eles são produzidos. O que aceito como verdade, como normal ou como patológico não está separado desse caldo produzido pelos embates civilizatórios. A própria criminalização de comportamentos e ações está ligado a esse processo. Num determinado momento uma teoria científica pôde ajudar a  justificar um comportamento,  como por exemplo na suposição duma diferenciação das raças através da eugenia. Isso legitimou uma prática de extermínio pela suposição de superioridade de uma raça sobre outra. No fim a prática foi criminalizada, com a derrocada da teoria político militar que a utilizava e a eugenia passou a ser questionada cientificamente ao ponto que os novos paradigmas científicos passaram a apoiar um movimento na civilização que começou a criminalizar o racismo. O critério definitivo que legitima ou não um comportamento está para além das “ verdades científicas” ou “morais”, mas está ligado às práticas coletivas reguladas pelas leis que estabelecem os direitos e deveres dos indivíduos. 

Fora dos limites da lei o que temos são padrões de crença, de verdades e de comportamentos,  que embora legais, devem ser analisados a partir de sua consequência para a criação de um mundo melhor para se viver. Embora não sejam uma unanimidade, esses padrões contribuem direta e definitivamente para a qualidade de vida dos indivíduos em sociedade. Isto porque, conforme afirmava Canguilhem, existe uma infinitude de possibilidades fisiológicas e contextuais no processo da vida, o que los leva a valorizar a diferença como um elemento fundamental que se contrapõe a identidade. Quando tomamos uma diferença como oposição entre dois contrários fixamos a identidade do que se quer comparar, delimitando, deste modo o espaço onde cada ser se move. O primado da identidade define o mundo da representação, onde se estabelece tudo aquilo que é essencialmente e tudo aquilo que não é. Contudo, quando problematizamos a diferença como o espaço da contínua mudança, passamos a dizer o devir como a impermanência que renova os votos de esperança por uma sempre e imprevisível novidade (isso não te lembra nossos discursos sobre o processo da salvação e novidade de vida?) O princípio da identidade está no centro da formação de um padrão. Quer em relação ao funcionamento de um gene ou órgão em relação ao organismo quer em relação a um comportamento em relação a sociedade. Os padrões respondem a uma função eficiente a partir da qual a diferença tende a ser tratada como um desvio. As formas de distribuição e classificação que utilizam modelos para comparar, identificar e ordenar pela representação, negam modos singulares de existências e percepções únicas de estados vividos. Sendo assim, as tentativas de inclusão da diferença a um modelo padrão de desenvolvimento, não devem procurar adaptar e legitimar significados e sentidos representativos, instituindo um padrão de ser no mundo. Longe disso, devem afirmar a diferença como possibilidade de transformação das práticas dominantes, gerando um espaço onde os modos de ser escapam aos padrões preestabelecidos, transbordam a normalidade, desorientam os modos de existências e os comportamentos instituídos. 

A criação rompe com a representação e com o modelo-referência, com a realidade compreendida de forma majoritária produzindo modos de existência que não se confundem com os sentidos e significados adotados como regras universais. A afirmação de formas de vida singulares passa pela abertura a um meio onde surjam encontros não determinados. Encontro de corpos, ações, paixões, afetos e as expressões mais legítimas desses encontros, liberando as diferenças dos esquemas comparativos a serviço da eficiência de um modelo hegemônico. Incluir não é negar o acesso a produção significante dominante, mas é libertar os significantes da tirania dos significados ordenadores e classificatórios. Incluir não é a adaptar ás projeções de um mundo já classificado e organizado, como forma de resgate de uma deficiência medida pela incapacidade gravada no corpo e no “espírito” de reproduzi-lo de forma eficiente. Incluir aqui, trata-se de integrar as diferenças com o seu máximo de energia potencial, na perspectiva de fazer irromper mundos inimagináveis. Incluir é resistir; resistir às formas oficiais, de dentro delas, através das criações que abrem espaços a devires minoritários, para novas articulação dos sentidos, corpos, olhares, movimentos e expressão; novos encontros que fazem fugir das formas padronizadas um elemento subversivo que afirma a novidade.


Tenho uma filha com uma diferença genética caracterizada pela trissomia no seu cromossomo 21, que ficou conhecida como “Síndrome de Down”. No passado, sua expectativa de vida estaria na faixa de 20 a 30 anos. Isso porque o mundo não estava preparado para lidar com essa diferença, pois os padrões eficientes do funcionamento de um organismo “normal”, levavam a práticas, comportamentos e procedimentos que não estavam aptos a incluir os “mongolóides” em seu seio. Hoje em dia nós temos a Maria, um indivíduo singular que se abre e reage como o mundo de sua forma específica por conta de sua diversidade funcional. Suas diferenças, longe de se submeterem a ordem de um padrão dominante acabam subvertendo tal ordem. O elemento subversivo da diferença não pode ser reduzido a uma categoria identitária que a classifique como falta ou deficiência a ser acolhida no seio das estruturas majoritárias. Ele deve provocar a desorientação dos esquemas de submissão, normalização, controle e reprodução, produzindo novas formas de se mover, pensar, enxergar, falar e ouvir. Não cabe aqui um olhar que se forme a partir do ponto de vista da normalidade e que invista suas energias na tentativa de aceitar a diferença como uma limitação acomodada no seio do espaço do mesmo. Temos que desmontar os esquemas reprodutores que consolidaram os matizes da anormalidade como defeito ou deficiência, a partir de critérios que definem o normal e eficiente. 

A normalização das características a partir dais quais se julga o diferente é uma construção que se consolidou ao longo da história dos embates das forças no mundo, construção orgânica, social, política e econômica, e visa afastar os ruídos que ameaçam atrapalhar a harmonia de um corpo funcional; espaço disposto de forma ordenada, definida e produtiva. Produção e reprodução de um corpo cujos órgãos cumprem os seus papéis no organismo, que reage a cada perturbação, através de anticorpos que eliminam os invasores ou os adaptam de forma a reestabelecer a ordem interrompida. ”(...) a questão é que, para toda a alteridade que não se pode traduzir no Mesmo da razão, no Mesmo do corpo que ouve, no Mesmo do corpo que enxerga, no Mesmo do branco, no Mesmo do ocidente, no Mesmo do heterossexual, no Mesmo do adulto etc, só é possível existir neste cenário de interioridade ou exterioridade. Ou se está dentro deste cenário - desta espacialidade em que o Mesmo é o centro e do qual, a partir dele, panopticamente, tudo é olhado e determinado - , ou se está fora, na sua margem, na sua periferia. Este único cenário que conduz a pensar apenas em termos de inclusão/exclusão produz uma localização, no mínimo, arrogante, para não dizer perversa: nesta oposição dentro/fora, a positividade está no “dentro” que, por sua vez, é o lugar (natural) da mesmidade. Portanto, se por um lado, e por oposição, estar no “fora”/excluído, significa a negatividade, ao mesmo tempo, a inclusão do outro implica a sua captura para o lugar que é inerentemente do Mesmo, da sua ordem, da sua forma de existir” (Juslane Wiacek).


Um abraço forte e fraterno