domingo, 27 de fevereiro de 2011

As Afinidades Eletivas e os Ecos do Indizível

Contato mínimo

a parte mais escura de fato

corpo vazio

sem órgãos

mãos ou tato

 

Fronteiras invisíveis

espaço sem lugar enquanto o canto

já partiu

e ainda se ouve

os ecos do hiato

 

Espaço neutro

Onde o ente se move mas parou

de correr

no tempo

e assim empaca o ato

 

Ausência de centro

falta de origem 

de um sem destino

que já partiu pra nunca chegar

nas vias de fato

 

"É preciso ver agirem diante dos próprios olhos esses seres aparentemente mortos, mas internamente sempre prontos para a ação, e observar com atenção como eles se procuram uns aos outros, como se atraem, se juntam, se destroem, se devoram, se consomem, ressurgindo depois da reunião mais íntima numa forma revigorada, nova e inesperada; só então lhes atribuímos uma vida eterna, até mesmo sentido e raciocínio, pois percebemos que nossos sentidos mal conseguem observá-los corretamente, e nossa razão mal basta para compreendê-los". (Johann Wolfgang von Goethe - Afinidades Eletivas, p.47)

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Quando não se consegue exprimir com palavras o indizível, sobram os gemidos ou  o silêncio. Tal limitação surge quando o discurso constituinte da maioridade do homem ocidental não é mais capaz de dar conta da tarefa de representar a realidade do mundo de forma a expugnar a ambiguidade,  o paradoxo ou a possibilidade de dúvida. A linguagem, então, não consegue mais tecer o precioso manto com o qual protege o pensamento da desconcertante experiência do limítrofe da indencidibilidade ou da impossibilidade da adequação entre suas produções e as "singularidades móveis, ladras e voadoras, que passam de um a outro, que arrombam, que formam anarquias coroadas, que habitam um espaço nômade" (Entrevista feita com Gilles Deleuze por Jeannette Colombel, La Quinzaine littéraire, nº 68, 1-5 de março de 1969, p. 18-19, tradução de de Luiz Benedicto Lacerda Orlandi)

O espaço nômade é o palco das atrações, das repulsões, das destruições e das ressurreições dos conteúdos e das expressões; onde se torna impossível uma relação transparente, unívoca, linear e imediata entre a realidade e sua representação através da linguagem. Estes movimentos e alternâncias de conteúdos e expressões engendram uma complexa trama de aproximações e repulsões, de afinidades e interditos, de movimentos, de convergências, de atrações recíprocas, de combinações e fusões em múltiplas escalas e temporalidades. E foi na tentativa de descrever a ambiguidade destas tramas que Goethe utilizou-se do conceito de "afinidades eletivas" , no contexto do romantismo alemão do início do sec XIX,  através do relato de  chagas abertas pelo desejo que não tem limites e não admite se ver interditado, nem mesmo pela voz mais alta das convenções e das conformidades. As afinidades eletivas para  Goethe  existem quando dois seres ou elementos buscam-se um ao outro, atraem-se, ligam-se um ao outro e a seguir ressurgem dessa união íntima numa forma  renovada e imprevista. 

Ao se mapear estes encontros constata-se a impossibilidade que retirarmos daí noções exatas, quantitativas ou equacionais, e por isso toda apreensão destas imagens não passa pela mediação de rigores estatísticos ou de modelos que se constituam a partir das rígidas leis da matemática euclidiana. Nos diria Deleuze: "Há noções exatas por natureza, quantitativas, equacionais, e que não têm sentido senão por sua exatidão: delas um filósofo ou um escritor não pode se servir senão por metáforas,  e isto é muito ruim, porque elas pertencem às ciências exatas. Mas há também  noções fundamentalmente inexatas e entretanto absolutamente rigorosas, das quais os cientistas não podem abster-se, e que pertencem ao mesmo tempo aos cientistas, aos filósofos, aos artistas" ( Mil Platôs não formam uma montanha, eles abrem mil caminhos filosóficos - Gilles Deleuze debate com Christian Decamps, Didier Eribon e Robert Maggiori - Jornal Liberation em 23.10.1980, traduzido por Ivana Bentes). Assim sobram as interação entre os conteúdos materiais, uma mistura de corpos que compreende todas as atrações, as repulsões, as simpatias, as antipatias, as alterações, as alianças, as penetrações e as expansões  que afetam os conteúdos, uns em relações aos outros. Segundo Deleuze: “dos códigos do DNA, aos braços que empunham armas”. E nas lacunas das conexões destes conteúdos, surge a possibilidade do registro do rastro do movimento, quer seja através da metáfora do silêncio ou do gemido. A literatura, definitivamente, é marcada por esta tentativa.

Em "Afinidades Eletivas" (do alemão Wahlverwandtschaften),  livro da maturidade de Goethe, escrito em 1809, sob os ecos do racionalidade iluminista da representação, aponta-se a possibilidade de um movimento que não obedece uma relação causal ou os princípios da física moderna, mas onde dois seres ou elementos que buscam-se um ao outro, atraem-se, ligam-se um ao outro, possam, seguir e ressurgir  dessa união íntima numa forma renovada e imprevista. Da combinação original do quatrilho que se formou na trama, onde o casal Eduard e Charlotte passam a contar com a presença do Capitão e de Otillie em sua casa, surge um filho oriundo de uma noite de amor entre o casal, mas que carrega em suas características físicas traços dos outros dois, que habitavam o desejo de cada um dos cônjuges no ato de sua concepção. "Terminada a cerimônia, Ottilie levou um pequeno susto ao olhar carinhosamente para a criança em seus braços, pois nos seus olhos abertos, julgou ver seus próprios olhos; tal semelhança iria surpreender a todos. Mittler, o próximo a receber a criança, ficou igualmente perplexo, ao notar nos seus traços uma semelhança tão evidente com os do Capitão, pois nunca havia visto nada igual"  (Afinidades Eletivas, p. 162).

Como dizer algo sobre resultados inusitados e fora do esquemas racionais que recortam a realidade a partir de modelos que privilegiam a linearidade entre a causa e o efeito?  Como ler nas lacunas as possibilidades dos fenômenos de natureza complexa e de imprevisível desfecho?  Mais que propor uma resposta, o que  importa aqui é destacar o quanto o conceito de afinidade eletiva, no contexto da sobremodernidade, abre possibilidades para a compreensão de realidades complexas, de relações complexas, pela superação do “reducionismo correlacionista”. Em última instância, a proposta se define como uma tentativa de mapear o processo interativo entre o “homem” e o “mundo”, a partir dos contornos “sobremodernos” de seu novo “rosto”, no século da hipercomputação, da biotecnologia e da neurociência. Esta situação requer um esforço que transcenda a quietude do espaço da verdade que se abre de forma perene e amigável. Como dizia Foucault, um espaço não mais de reflexão mais de esquecimento, não mais de contradição mais de refutação, não mais da conquista laboriosa da unidade, mais da erosão indefinida, não mais da verdade resplandecendo sempre no fim, mais da angústia de uma linguagem sempre recomeçada. “Não mais uma palavra, apenas um murmúrio, apenas um calafrio, menos do que o silêncio, menos que o abismo do vazio; a plenitude do vazio, algo que não se pode fazer calar, que ocupa todo o espaço, o ininterrupto, o incessante, um calafrio e ato seguido de um murmúrio, não um murmúrio, mas uma palavra, e não uma palavra qualquer, mas distinta, justa, ao meu alcance” ( Michel Foucault, O Pensamento do Exterior,  p.28).

Na sobremodernidade as ligações entre causas e efeitos são multiplicadas num sem número de possibilidades, não permitindo precisar o nexo ou a relação entre os conjuntos das modificações corpóreas ou das transformações incorpóreas, onde os elementos se misturam, se atraem, se tocam, se fundem ou se separam. O aumento da velocidade com que os conteúdos se movimentam abre espaços de possibilidades infinitas, em uma rede de trocas e conexões rizomáticas. Estes espaços são fronteiras invisíveis, palco de uma ação onde não se tem a visibilidade a não ser pro "frames" que carregam os conteúdos,  cruzando-se tão rapidamente que não é possível acompanhá-los, a não ser na tentativa de seguir os rastros de sua passagem. Por séculos esta potência movente viu-se domesticada nos subterrâneos de uma realidade domesticada pela razão ordenadora e representada pelos modernos modelos universais de um pensamento instrumental, capaz de adiar a atualização destas forças desestabilizastes ao reduzi-las a forças subversivas de uma ordem dominante, através de processos que buscavam reorientá-las ou recondizi-las às profundezas. O máximo que se assistia eram irrupções pontuais rapidamente diagnosticadas pelos códigos dos poderes organizados de disciplinas diversas, cujo objetivo era conferir a tranquilidade necessária para conduzir o processo histórico. E assim seguiu-se na tarefa de ordenar a realidade a partir dos seus duplos (vida/morte, luz/trevas/, bem/mal, alto/baixo) onde o terceiro excluído só fazia sentido como afirmação de uma certeza categórica, onde não restasse espaço para a dúvida, indeterminação ou indecidibilidade. Estas potências desorganizadoras eram expugnados para espaços simbólicos, onde não apresentasse perigo à ordem da verdade e da adequação. E são nesses espaços alternativos, onde a indeterminação das singularidades móveis encontra seu lugar de expressão, que a inexatidão do movimento dos conteúdos e a irregularidade de suas trocas e desdobramentos, encontram pouso.

Esta "realidade alternativa" possui a sua própria lógica ou ausência de, quer seja nos destinos romanescos trágicos  com os quais são marcadas  as forças subversivas, ou na liberdade absoluta que alcançam quando de sua reconciliação última na morte.

"E assim, os dois amantes descansam lado a lado. A paz paira sobre sua morada; imagens de anjos serenos, seus afins, miram-nos da cúpula; e que momento agradável aquele em que um dia despertarão juntos! "(Johann Wolfgang von Goethe - Afinidades Eletivas, p.216)

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