domingo, 27 de fevereiro de 2011

Os Sons do Silêncio

Visto o traço luz difusa pensamento

Traz-se o fato do vazio apontamento

Não podendo revelar os seus problemas

Tem-se o ato do sublime sentimento

Letras roucas nas palavras dissidentes

Vão compondo o indizível relevante

Na medida do silêncio equidistante

Escrutina o espaço vago e esconde o tempo

(Caíque de Moraes)

“ Assim a nova crise da razão é interna, nascida da revolta da racionalidade contra a racionalização. Traz subitamente à luz, no cerne da racionalização, a presença ora acompanhante, ora dominadora, ora tornando-se ébria, louca e destrutiva, da desrazão” (Edgar Morin)

Nunca soube onde ficava o norte, para que ele pudesse apontar a localização da partida ou chegada. Faltavam-me as referências; não que elas não estivesse todas ali. O problema era que este “ali” carecia, exatamente, do “norte”, o qual não tinha a mínima idéia  onde encontrar. O movimento das coisas num espaço homogêneo sempre me confundiu e ao mover-me pelo mundo que me conferiram, não demorei a perceber quão difícil era definir lados ou mesmos as direções das coisas mais simples. Talvez porque o movimento para mim sempre tenha designado,  diferentemente de uma partida ou chegada, um força tencionada e sempre em expansão. Quando associado às relações entre os significados e a realidade do mundo que estes representam, esta força motriz apontava para o conjunto de significantes circulantes que, por sua tesão, sustentava o significado de cada conteúdo que invadia minha percepção. Via que a nitidez dos contornos nunca era evocada nestes casos uma vez que as forças empurravam os contornos para longe de qualquer alcance possível, ao longo do processo de significação. Neste espaço o contorno dava lugar ao brilho de cada intensidade, revelando, no máximo, o nó de tendências das formas que iriam  materializar e  determinar os significados. O sentimento advindo deste (não) lugar, nunca me incomodou; mas sim tornou-se o único norte possível capaz de guiar o “corpo-sujeito pensante e falante” que me tornara ao longo do processo de significação dos conteúdos circulantes que me atravessavam junto com suas formas de expressão.

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Este estado de espírito  permite que seja proposta uma digressão a partir da leitura de enunciados colocados no limite da insignificação e da irracionalidade,  numa tentativa de seguir uma linha que atravesse a história da razão e da linguagem, traçando-a a partir de uma origem onde se consiga desfia-la logo após a partida e atá-la  ao percurso dos  conteúdos relacionados a diversos processos de significação (filosóficos, artísticos, científicos ou linguísticos) que ocuparam, de forma não linear,  a trajetória do pensamento racional e do processo de enunciação no ocidente.    

Já na Grécia, pelos idos do Século IV, a razão  procurava articular  diversos significados e tratava de lidar com a presença de conteúdos que insistiam em afirmar a impossibilidade de extrair ou criar sobre eles  significados exatos ou não contraditórios. A tarefa de encontrar soluções para essas contradições, aliava-se ao esforço de sempre lidar com  um significado outro que se dizia ou podia ser dito separado do significado originalmente relacionado as coisas e que, ao mesmo tempo, reivindicava sua realidade ou o seu ser. Como dizer o ser exato das coisas, se não for reivindicado para este a totalidade daquilo que estas significam quando de sua existência e que convergem a ela nesta afirmação, para que exista exatidão no que se diz. Contudo, se admitimos um outro sentido a partir desta totalidade, afirmamos que algo existe fora do todo da exatidão, o qual necessita ser preservado no ato de se dizer sem dúvida. Desde já, poderá se perceber que o pensamento há de se especializar na arte de compor e decompor a realidade através de suas similitudes, buscado através deste processo resguardar a exatidão.

Todo e parte, uno e múltiplo, claro e escuro, alto e baixo, são oposições que convergem ao espaço da semelhança a partir das formas que definem as vizinhanças, as aproximações e os encadeamentos que fornecerão ao pensamento um instrumento de fixação que viabilize o ato de enunciação. Ao dizer aquilo que é,  recorta-se tudo aquilo que sobra e que não guarda consonância com o ser exato do enunciado. Assim se deu com a “verdade” com o “belo” com a “natureza” e com todas as coisas possíveis de serem enunciadas. Ao dizer algo, supunha-se isolar o enunciado de qualquer contradição de sentido, uma vez que se erguia os limites de sua significação, onde não sobrava espaço para o inexato; para aquilo que o algo não era.

Assim os enunciados estavam aptos a traduzir a realidade dos fenômenos, a partir da delimitação de um espaço de significação ordenado e capaz de livrar o pensamento da contradição, dado o pressuposto de que algo não poderia ser e não-ser ao mesmo tempo, significar e não significar a mesma coisa; em outras palavras, não seria possível que algo reunisse o seu ser e do outro; porque se assim fosse ingressaria-se no terreno da indefinição, onde o ser e o não-ser se fundiriam, confundiriam-se e se manteriam na impossibilidade de serem separados por qualquer linha distintiva de significação, totalmente mergulhados no caos da insignificação.

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Seguir esta linha através da história do pensamento no ocidente significa uma tentativa de descrever os processos de coexistência de conteúdos individuais e coletivos que atravessaram os séculos e foram traduzidos por um sem números de formas de expressão. Esta tarefa ganharia originalidade se conseguisse se especializar em escutar o inaudível e falar o indizível que permanecia adormecido no fundo de toda insignificação e irracionalidade subjacente aos processos da vida, ameaçando  desintegra-la a partir do caos a forçar os seus limites. Daí a necessidade de uma linguagem que estaria posta por um discurso que funcionaria como uma membrana polarizada por onde passaria o aturdimento e brotaria as intensidades que não podem ser descritas pelo intelecto ou capturadas pelos sentidos, mas apenas apropriadas imediatamente como significado. Um texto onde as palavras conectadas não obedecessem os códigos ou status-quo da linguagem estabilizante, mas propusessem silenciar os significados originalmente requeridos e formatados pelas regras da gramática e da sintaxe, desvirtuando o ato tradicional do dizer.

Desta forma poderíamos falar sobre os processos subjacentes às linguagens maiores, suas rupturas, seus elementos subversivos e  sobre a potência das diversas expressões (filosóficas, artísticas, científicas ou linguísticas) que culminaram em tentativas, ora referindo-se a linguagem como uma forma fixa de dizer o imutável ou como um problema de comunicação, ora  visando descrever a produção de conteúdos, a partir da análise das estruturas significantes ou da permissão para se propor um espaço de mobilidade absoluta por onde significantes e significados pudessem circular a partir de sua  autonomia.

Porém, quando se  mantem as palavras ordenadas  e submetidas às regras de uma linguagem que vise preservar os significados e o entendimento do mundo, mesmo que  através de uma nova padronização da relação entre as palavras e as coisas, este discurso persiste em  roubar do significante a potência de dizer imediatamente as coisas, pois ao fixa-lo á um código o faz funcionar como uma fina espessura  entre os sinais legíveis do mundo das coisas e a forma de dize-lo. Como romper o círculo das similitudes de uma rede de signos instrumentais que trabalham a partir da leitura e representação das marcas assinaladas na superfície das coisas?

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O que se requer aqui é uma completa subversão das regras de significação, na tentativa de romper a mediação do texto, utilizando as palavras como mero suportes que operam no limite dos significantes, destituídos de seu lugar original. A tarefa da linguagem sobremoderna é falar a voz do caos que dorme no fundo das coisas e por trás dos signos estabilizantes.  A linguagem sobremoderna destrói o signo para libertar a intensidade dos conteúdos caóticos do aturdimento. Ela jamais será o meio através do qual reconciliam-se as marcas visíveis das coisas e as palavras que a traduzem. Ao contrário disso, ela visa dilacerar a unidade entre a natureza das coisas, a coexistência das palavras e o encadeamento que as vincula em uma “rede de signos que, de um extremo a outro, percorre o mundo”. (Michel Foucault – As palavras e as coisas, p. 40). Deparamos, então,  como uma arte, filosofia, cinema e literatura que insistem em romper com os esquemas de conhecer e representar as coisas, face a multiplicação das linhas de fugas a  explodir a estabilidade de uma razão ordenadora dos sentidos, que centralizava num mundo ideal ou no sujeito autônomo a possibilidade de manter reunidas todas as forças circulantes de uma realidade em movimento e nas formas da linguagem que, por semelhanças, pretendiam descrever as marcas visíveis depositadas sobre a superfície da terra.

A  linguagem sobremoderna subverte os códigos de uma linguagem maior, dissolvendo os extratos de fixação da língua e fazendo irromper  a intensidade dos conteúdos circulantes. A volatilização dos vínculos entre as palavras e as coisas faz surgir inúmeras linhas de fuga ao longo do encadeamento dos signos que insinuam a brancura da ausência e a palidez do vazio que se abre indefinidamente. Ao tentar dizer este lugar há de se libertar do domínio de um discurso reflexivo que visa reconciliar as coisas com as palavras, instalando-se na dimensão de um espaço que perde suas bordas. E é neste ponto que podemos seguir da linha de fuga por onde nos deparamos com as linguagem subversivas que já operavam a explosão do espaço da representação, anulando-o em detrimento de um tempo puro ou pura duração. A novidade aqui é a destruição das margens do espaço com o intuito de que se  processe sua mistura com o tempo, viabilizando uma nova dimensão onde o mergulho no aturdimento não mais represente a irrupção de uma linha de abolição da vida, mas sim sua única possibilidade; a dimensão espaço-tempo que passou a se chamar tempo real.

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De nada adianta mais se agarrar aos limites da representação, pois as bordas do espaço e do tempo foram diluídas, lançando as coisas na ubiquidade atemporal de um vazio infinito, cujos  os limites se expandem indefinidamente. Tal dimensão é operada a partir do aumento da velocidade de circulação dos conteúdos que passam a se misturar com suas expressões, numa transdução que dá origem a uma nova matéria, sempre em expansão, a qual chamamos de  corpo expressivo. É esta matéria que expande as margens do espaço e mergulha na duração pura. Ela não está em lugar algum pois passa por todos os lugares ao mesmo tempo. Sua velocidade absoluta implode os limites da sucessão espaço-temporal, quando anuncia, no menor espaço e tempo possíveis, o ponto da experiência imediata de onde  retira a potência que a mantêm em contínuo movimento.

 

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