domingo, 27 de fevereiro de 2011

A Contínua Desterritorialização Sobremoderna

Há uma senhora que acredita
Que tudo o que brilha é ouro
E ela está comprando uma escadaria para o paraíso
Quando chega lá ela descobre
que se as lojas estiverem todas fechadas
com apenas uma palavra ela conseguiria o que veio buscar
E ela está comprando uma escadaria para o paraíso
Há um cartaz na parede
Mas ela quer ter certeza
Porque você sabe que às vezes as palavras
têm duplo sentido

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Em uma árvore à beira do riacho
Há um rouxinol que canta
Às vezes todos os nossos pensamentos estão errados.
Isto me faz pensar
Há algo que sinto
Quando olho para o oeste
E meu espírito chora ao partir
Em meus pensamentos tenho visto
Anéis de fumaça atravessando as árvores
E as vozes daqueles que ficam parados olhando
Isto realmente me faz pensar

Led Zeppelin - Houses Of The Holy -frontImagem016a
E um sussurro avisa que em breve
Se todos entoarmos a canção
O flautista nos levará à razão
E um novo dia irá nascer
Para aqueles que suportarem
E a floresta irá ecoar gargalhadas
Se há um alvoroço em sua horta
Não fique assustada
É apenas limpeza primaveril da rainha de maio
Sim, há dois caminhos que você pode seguir
Mas na longa estrada
Há sempre tempo de mudar o caminho que você segue

 led_zeppelin_-_houses_of_the_holy-inside  
E isso me faz pensar
Sua cabeça lateja e não vai parar
Caso você não saiba
O flautista te chama para você se juntar a ele
Querida senhora, pode ouvir o vento soprar?
E você sabia
Sua escadaria repousa no vento sussurrante
E enquanto corremos soltos pela estrada
Com nossas sombras mais altas que nossas almas
Lá caminha uma senhora que todos conhecemos
Que brilha luz branca e quer mostrar
Como tudo ainda vira ouro
E se você ouvir com atenção
A canção irá finalmente chegar a você
Quando todos são um e um é o todo
Ser uma rocha e não rolar

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"A Crise é uma noção extrema, um ponto singular alto ou baixo, ou pico de exasperação extática após a escalada brutal, ou fundo de esvaziamento, o esgotamento. Estar em crise, para nós, não significa mais um estado raro em um movimento, mas o estado corrente de nosso movimento. Donde algumas teorias para tirar-nos da tempestade são todas regressivas. Propõe que retornemos aos declives mínimos, às curvas históricas quase planas. Seria preciso, para isso, retornar aos antigos reservatórios, aos estoques gerais de circulações fracas. Em uma palavra, abandonar o fogo e a água, para reencontrar o ar e a terra: deixar a indústria e suas energias pela agricultura e suas lentas metaestabilidades. Vele e lavoura. Escolha proposta entre o movimento perpetuado, impossível sem destruição, e uma invariância perenizada. Materialmente: ou fogo ou a terra. Equilíbrio e dinâmica " (Michel Serres - O nascimento da física, p.102).

As tempestades que se abatem sobre o mundo dos homens  carregam matizes de horror, violência e destruição. Atreladas à existência humana, cuja trajetória reflete o confronto com a mobilidade arrebatadora das forças da natureza, elas obrigam os homens a perseguir o equilíbrio frente a avalanche da descontinuidade e do derretimento dos seus vínculos com a permanência. A estabilidade pode ser encontrada, então, em territórios que demarcam as relações e processos de produção; economias, línguas, sentidos, modelos e narrativas  vão preenchendo um escopo para realidade, circunscritos em um espaço de significação que protege a ação e resgata as identidades de uma existência que insiste em esvair-se.

A história está recheada de crises, alternâncias, destruição e territórios. Os territórios estabilizam as fronteiras da circulação e domesticam as linhas de fuga que insistem em ultrapassar os seus limites. A cada tempestade, os  territórios são inundados e transformados em lugares inabitáveis, sucedendo-se o fulgor dos primeiros raios de sol que se encarregam, aos poucos, de tornar aquele território de novo habitável. O caos, a turbulência do fluxo e das flutuações das torrentes que circulam arrastando os códigos de habitação dos territórios inundados, provocam um deslocamento dos sentidos anteriormente fixados, que retornam a um status de insignificação e abertura irredutível  num espaço desterritorializado.

"O sol decompõe o mar e, estancando as águas, impede às cheias o excesso sobre sua vazante. O calor cresce, o dilúvio recua. Inversamente, os fogos do universo tenderiam a devorá-lo caso os rios não trabalhassem, transbordando, para sua extinção. Esse equilíbrio é delicado, é frágil e temporário. Existe sempre um desvio, e é a ruptura, e o fim do mundo"(Ibidem, p. 104).

O território se estabelece a partir das referências indenitárias que constroem um lugar de significações onde a memória desempenha uma papel fundamental na adequação dos significantes e significados. Um cheiro, uma cor, um som, capturado pela percepção sensível remete a um conjunto de referências onde o significado garante a perenidade dos vetores de sua constituição. Neste espaço de adequação os conteúdos referentes guiam-se pelos códigos consolidados e catalogados na memória. É a partir deste acervo que a permanência se constitui e dele se torna dependente, quer seja pela tradição ou pela conformidade dos códigos  que livram o espírito da profunda anomia, quando este se confronta com a instabilidade e a transitoriedade da vida no mundo dos fenômenos e do "ser-aí". Entre as fronteiras dos territórios abrem-se fendas e rachaduras por onde os conteúdos circulam, aberturas que acabam sendo responsáveis pelo processo de desterritorialização que arrancam os códigos de suas posições originais, num ritmo que irá reorientar a evanecência dos arranjos originalmente fixados.

Os movimentos da modernidade, e aí representados pela lascividade dos anos 60 e 70, inseriram, definitivamente, um elemento subversivo no território da  estabilidade do mundo governado pelas leis do positivismo lógico e do evolucionismo biológico que alçava o mundo dos homens ao que de mais perfeito poderia se conceber, a partir de um humanismo que tinha retomado, definitivamente, o elemento clássico da cultura ocidental. Além de apontar as contradições de uma sociedade que evoluíra às custas de um rigor moral, denunciado por sua superficialidade estruturante, ela plantou um elemento de dúvida, a exemplo do metódico elemento cartesiano que se confrontara com a heteronomia  pré-moderna. Notas lisérgicas invadiram a percepção sensível, levando a alma por novos caminhos, onde a volatilidade assumia a mais suprema violência contra os territórios fixos da modernidade. As auto-imolações em praça pública se multiplicavam a cada overdose e contestação era a palavra de (des)ordem.

A sobremodernidade, por sua vez, libertou um elemento já presente nos diversos movimentos desterritorializantes que a precederam no final do sec XX: a velocidade. Ela estava presente nas transformações que se sucederam na sociedade quatrocentista, nos motores da revolução industrial e na corrida espacial da guerra fria e nos solos das guitarras psicodélicas . Definitivamente responsável pelos processos sobremodernos, ela é fruto de uma aceleração das relações espaço-temporal capturadas pelas técnicas de telecomunicações que construíram um novo território, esvaziado das dimensões temporais tradicionais, que se movimenta, continuamente, por espaços nunca os mesmos, desfazendo as fronteiras e potencializando as linhas de fuga que arrastam os significados e os lança numa contínua impermanência. O processo de desterritorialização da sobremodernidade é um continuo desprender dos velhos votos, pondo em risco qualquer possibilidade de fixa-los em um circunscrição estabilizante. É o clamor pelos sons do universo em movimento, com suas pulsações hipnóticas que remetem o ser ao instante do tempo real.

"Ao tempo que passa das mais longas durações acrescenta-se hoje, pois, um tempo que se expõe instantaneamente: o das mais curtas durações, do domínio do eletromagnetismo e da gravidade " ( Paul Vilrilio, A velocidade de Libertação, P. 25).

A menor duração possível carrega o germe da sobremodernidade, cuja instantaneidade dos acontecimentos remete a um (não) lugar de circulação que eleva a impermanência à condição de possiblidade dos espaços a serem ocupados pelos conteúdos. Eles circulam a uma velocidade extasiante, não sendo capazes de serem apreendidos em um espaço que os vincule a um código identitário. Eles aparecem e fogem no exato intervalo do tempo real, deixando para registro apenas o seu rastro. Neste espaço de circulação a memória já não exerce um papel fundamental, pois é o esquecimento que garante o potencial de movimento do fluxo no alargar-se dos territórios e em seu contínuo processo de desconstrução. Os espaços, não mais vazios, mas todos ocupados pelo tráfego dos conteúdos que se alternam na sua presença, criam a dimensão de um presente absoluto, uma vez que a substituição e as trocas se processam numa velocidade vertiginosa, e que existe a garantia de armazenamento dos registros desta traficância em uma memória virtual de capacidade cada vez mais ilimitada, tornando  a lembrança, pouco a pouco, obsoleta.

 

Dos rifes das guitarras e das barricadas das ruas, surge um território que se afirma pela sua capacidade de manter suas fendas abertas para a circulação dos conteúdos, impossíveis de serem fixados em qualquer espaço estabilizante. O verdadeiro tornado falso em plesbicito, multiplicado a velocidade absoluta das trocas pela grande rede virtual, cria um espaço a ocupar-se, que se dobra e redobra a cada movimento do espírito. Este, ao invés de carregar as essências eternas que permanecem, a despeito do movimento e da passagem do tempo, está impregnado da expugnável transitoriedade dos eventos em tempo real que funcionam como "acidentes do presente" de uma "chegada generalizada" que prescinde e se confunde, totalmente, como a partida. E na sobremodernidade esta mobilidade assume o caráter de essência de uma era, única realidade possível ou única dimensão onde os corpos se movimentam. Ao invés dos códigos sobremodernos servirem para a delimitação de um território fixo, onde os elementos constitutivos da ordem possam arranjar um limite circunscrito entre as fronteiras dos significados, eles empurram os espaços para as encruzilhadas e as fendas da traficância, onde o elemento de desconstrução se apresenta como a única possiblidade de inscrição de um método que permita traduzir o espírito da presente ordem.

Paul Virilio já descrevia este tempo, como um tempo de um "horizonte transparente", que é fruto de uma aceleração vertiginosa das trocas materiais em um espaço, cada vez mais contraído. Nele as dimensões passam e o futuro se queda frente a insuportável presença do instante, onde as longas distâncias são reduzidas a um lugar de controles remotos, e os arquivos virtuais exercem sua potência ao imprimir sociedades sem extensão e duração, sociedades "intensamente presentes" aqui e de uma vez - em outras palavras, "telepresentes no mundo inteiro", que prescindem de uma memória e por isso podem ser chamadas de "civilizações do esquecimento" ou sociedade do "ao vivo". Nestes territórios os códigos se metamorfoseiam constantemente, e relacionam conteúdos que assumem diferentes sentidos, momentâneos e temporários, não sendo possível captura-los a não ser pela leitura do seu rastro. E este rastro é empurrado para dimensões fractais na rede de circulação, espaços comprimidos que se comunicam velozmente, no menor tempo possível, interfaces onde estão localizadas as aberturas e as rotas dos significados mutantes. E é neste (ciber)espaço ou (não)lugar onde se dá a dança de significantes e significados, alternando direções e criando interatividades que são capturadas em tempo real, através das velozes conexões em rede. "...a emergência de um último horizonte de visibilidade construído pela transparência das aparências instantaneamente transmitidas à distância, não pode realizar-se senão pela superação desse constrangimento saído da força da gravidade...a perspectiva do tempo real já não é constrangida pelo peso terrestre, o horizonte transparente do ao vivo da tela televisiva, ao fundar-se na própria velocidade da luz, foge a gravitação"(Ibidem, p. 58).

A subversão pós-moderna, recolocou o movimento da desordem, do imprevisível, do local incerto e do informe fora da clausura que procurava excluir o acaso e o incontrolável. Ela privilegiava a ligação entre fluxos e não relações sólidas; um movimento do líquido que escapa e corre. Trouxe a tona um sistema aberto, " lugar ou a sede de uma troca de fluxos que nele entram e dele saem. E foi a partir da potencialização da circulação deste fluxo que a sobremodernidade pode apropriar-se deste modelo  como condição de possibilidade do movimento, e tê-lo como elemento de equilíbrio num território móvel e em contínua inundação, mas plenamente habitável e sem espaços vazios, pois os fluxos que entram vêm equilibrar os que saem. Ao invés de um desenvolvimento linear, as conexões da sobremodernidade devem ser entendidas numa perspectiva de um horizonte móvel e numa lógica errática de giros e curvas abruptas em lugar de uma racionalidade  que aponta para causas de  efeitos lineares e predeterminados. A multiplicidade de variáveis, arranjos, combinações, efeitos de sentido e de dimensões aleatórias  proliferam no processo  sobremoderno.

Na perspectiva desta multiplicidade, os dispositivos de criação e equilíbrio da ordem sobremoderna trabalham através da captura do devir e da sua distribuição fragmentária. A partir da criação de diversos mundos possíveis que se intercomunicam através de um fluxo global, com conexões cada vez mais velozes e significações cada vez mais voláteis, o princípio da mobilidade deste fluxo, que se distribui através de nichos, é a possibilidade de multiplicação da diferença. A abertura de novos nichos viabiliza o escoamento contínuo do devir, corpos e dos mundos criados, compostos de uma pluralidade de forças irredutíveis em luta, que na sua multiplicação escorrem para novos espaços, em um tempo cada vez menor. Assim, neste movimento difuso, a diferença assume o papel de motor de redistribuição das forças que se relacionam nos corpos. O aumento da velocidade das trocas e a redução dos espaços e do tempo criam diferenças de intensidade; forças não relacionadas e, portanto, excedentes. A partir da diferença, este excedente é redistribuído numa nova relação de forças, que é simultaneamente potência criadora e resultado excedente, e a esta relação chamaremos aqui de diferença excedente. A idéia desta diferença de intensidade se situa numa perspectiva do conceito de multiplicidade e precisa ser entendido aqui, não como um fragmento numérico de uma unidade perdida, mas sim, na perspectiva de multiplicidades qualitativas de duração. Aqui apelamos mais uma vez para Deleuze que, partindo do conceito bergsoniano de “duração”, cria a diferenciação entre “multiplicidades extensivas divisíveis” e “multiplicidades intensivas indivisíveis”. Segundo ele as multiplicidades intensivas “são constituídas por partículas que não se dividem sem mudar de natureza, distâncias que não variam sem entrar em outra multiplicidade, que não param de fazer-se e desfazer-se, comunicando, passando umas nas outras no interior de um limiar, ou além ou aquém. Os elementos destas últimas multiplicidades são partículas; suas correlações são distâncias; suas quantidades são intensidades, são diferenças de intensidade”( Gilles Deleuze, Mil Platôs - vol 1, p. 46).

A diferença excedente é o motor das trocas e do fluxo global pós-moderno, e pode ser considerada como a diferença que surge no processo da reduplicação da múltipla repetição dos conteúdos distribuídos, na função derivada das múltiplas forças que compõem estes conteúdos. A diferença excedente se destaca pela diferença de intensidades entre as forças que compõem os conteúdos, neste processo de relação recíproca. Desta forma, a diferença excedente pode ser entendida como o elemento genealógico, ou o princípio de produção da diferença, resultante da relação diferencial entre as forças que agem nos conteúdos. A diferença excedente assume um papel fundamental na dinâmica produtiva das trocas que se estabelecem na rede global sobremoderna, uma vez que ela viabiliza um código de expressão da multiplicidade distribuída, que é o da criação, pela reduplicação e pela repetição, de uma diferença de intensidade, por menor que ela seja, na relação de forças que agem nos corpos. Contudo, precisamos diferenciar a mistura dos corpos em suas relações diferenciais, de uma variação de sentido que esta diferença assume, a partir da ação de alguns enunciados ou formas de expressão, que intervém instantaneamente, e de forma recíproca, na relação dos agenciamentos materiais, no fluxo de trocas dos conteúdos e dos corpos.

O código de expressão desta multiplicidade distribuída insere o grau de eficiência do potencial excedente nas relações entre as forças, que permite especular, antecipadamente, esta diferença, com o intuito de criar espaços propícios onde ela possa se reduplicar e onde, através de sua condição de força não relacionada ou livre, articule-se com novos conteúdos. Desta forma, instantaneamente se é capaz de criar, via enunciados, espaços com condições validadas para acumulação deste excedente de força, transformando-os em espaços especulativos, em última instância, espaços onde são integradas as condições de captura e a capacidades de alocação dos fluxos que transitam através da rede de trocas, transformadas, instantaneamente, por formas de expressão relacionadas a um código especulativo. Nestes espaços especulativos transitam os elementos e expectativas heterogêneas que ao intercruzarem-se inscrevem o código enunciativo que permitirá prever, com um certo grau de certeza, o comportamento futuro dos fluxos e das trocas, convencionadas a partir do conjunto de expectativas que delineia o curso da ação dos conteúdos. Além disso, os próprios conteúdos trafegam em espaços que se abrem na dimensão de uma função alocativa da diferença excedente, nos quais os sucessivos encontros fazem convergir as externalidades que interagem com os corpos e estão conectadas em rede.

"Se o intervalo clássico cede o lugar a interface, a política desloca-se por sua vez unicamente para o tempo presente. A questão deixa então de ser a do global por relação como o local, ou a do transnacional por relação como o nacional, mas é antes a dessa súbita comutação temporal onde desaparecem não apenas o dentro e o exterior, a extensão do território político, mas ainda, o antes e o depois da sua duração, da sua história, em benefício unicamente de um instante real, relativamente ao qual, finalmente, ninguém se pode apoderar "( Paul Virilio - A velocidade de libertação, p. 41)

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