domingo, 27 de fevereiro de 2011

Promessas de Pagamento - Mais uma turbulência

"Em 1722, o valor médio da ação da Mares do Sul era de apenas $ 92. O dano institucional, porém, foi muito menor na Inglaterra. Na França, tanto a Companhia das Índias quanto o Banque de Royale foram dissolvidos; além disso, uma enorme parcela das ações e do dinheiro emitidos  - com valor nominal estimado em cerca de 4 bilhões de libras francesas - foi simplesmente rechaçada: apenas 1,6 bilhão foi reconhecido pela comissão liquidante (conhecida como Visa) e convertido em títulos do governo, com juros de apenas 2 a 2,5%. Na Inglaterra, ao contrário, o Banco da Inglaterra e a libra esterlina - cujo valor fora fixado em ouro apenas três anos antes - nada sofreram, e as perdas dos que haviam investido em ações dos Mares do Sul foram toleráveis. As autoridades convieram que a Companhia era grande demais para naufragar, as suas dívidas foram parcialmente assumidas pelo parlamento, e 4,2 milhões de libras do capital nominal (que totalizava mais  de  38 milhões de libras) foram adquiridos à vista pelo Banco da Inglaterra e convertidos em títulos com rendimento de 5%. Em 1723 - ocasião em que as ações da Companhia já estavam de volta acima do par -  metade do capital foi convertida em títulos. Quem havia trocado anuidades vitalícias (que não raro rendiam até 14%) por ações da Mares do Sul sem dúvida se deu mal, e também os que haviam especulado comprando ações durante a bolha. Mas a escala de perdas foi muito menor do que na França, onde muitos investidores e credores foram à garra". (A lógica do dinheiro - Ed. Record, p. 140)

A dívida privada remonta historicamente ao segundo milênio A.C, enquanto a dívida pública, um fenômeno relativamente mais recente, floresceu juntamente com a idade moderna. Um breve estudo sobre o desenvolvimento dos sistemas de dívida, seus mecanismos e estruturas dos títulos que começavam a circular, mostra que  desde os primórdios os agentes conviveram com as bolhas de crescimento, crises de liquidez e calotes a investidores. Em seu livro "A lógica do dinheiro - Riqueza e  Poder no Mundo Moderno"  Niall Ferguson, dentre os muitos episódios que marcaram a história dos títulos e das instituições financeiras do mundo moderno, aponta diversos momentos de "exuberância irracional" que geraram altas, colapsos e crises financeiras na Grã-Bretanha e os EUA, cujos sistemas financeiros padronizaram, cada um a seu tempo, a estrutura de crédito e do sistema de administração financeira hegemônico ao redor do globo.

A história econômica mundial está recheada de episódios onde supostos interesses públicos justificam a ação de Autoridades monetárias, Governos, Bancos  e outros Agentes  do sistema financeiro, mesmo que para isso gerem ônus para a sociedade e possam  levantar discussões em torno de questões de   moral hazard. As últimas notícias que circulam em meio a mais uma crise  que se estabeleceu a partir das perdas registradas nos balanços dos grandes bancos internacionais, por conta de créditos de difícil liquidação, nos dão conta de um movimento destes mesmos bancos, no sentido da criação de um plano de socorro para as seguradoras de títulos. Originalmente criadas para segurar títulos emitidos por autoridades municipais americanas, que por não serem fortes o suficiente para alcançar ratings AAA, prescindem das "monolines"(termo como são conhecidas no mercados tais seguradoras) para diminuir o custo de sua captação, estas entidades acabaram por se mover na direção dos CDA's, como forma de diversificar seu portfólio.

Dependentes da condição de "emprestar" o seu risco para títulos que não contam com a mesma avaliação, tais seguradoras tem sofrido com as perdas da crise sub-prime. Ameaçadas de  rebaixamento na classificação pelas agências de rating,  o que representaria um golpe fatal no cerne dos seus negócios, elas estariam impossibilitadas de reclassificar diversos títulos, obrigando   investidores a vendê-los, provocando assim uma reação em cadeia que agravaria a crise.

O efeito  no mercado causado pelo anúncio do socorro dos bancos às seguradoras, muito mais efetivo do que o corte  de 0,5 ponto percentual da taxa de juros pelo FED, reforça a teoria de que a crise atual é muito mais do que uma crise do mercado imobiliário americano e sim uma forte ameaça de solvência, originada no estouro da bolha do crédito, alimentada pela  ciranda de ativos fabricados por complexos sistemas e instrumentos de securitização, vedetes da  atual era do capitalismo financista, que retirou, do dia pra noite, US$ 7 trilhões do mapa e causou uma perda financeira já estimada em U$ 265 bilhões nos balanços de grandes bancos internacionais.

Quando se tenta evitar que a crise do crédito contamine a economia global - desde o socorro direto do Banco da Inglaterra ao Northern Rock (quinto maior banco de empréstimos hipotecários da Grã-Bretanha), com empréstimos de cerca de US$ 50 bilhões, que poderão ser convertidos em bonds garantidos pelo Estado,  passando pelos aportes de capital realizado em bancos como Citi,  Morgan Stanley e Merrill Liynch por fundos soberanos e governos da Ásia e do Oriente Médio, até a proposta de socorro de US$ 150 bilhões que Bush enviou ao congresso norte-americano - as  ações, sempre acompanhadas pela desconfiança de que no fundo é  o dinheiro dos contribuintes  que está sendo usado na tentativa de evitar a crise de confiança, refletem uma parcela de sacrifício historicamente exigida em tempos de crise no crédito, para que ele possa ressurgir, mais a frente, tão exuberante como antes, minimizando as perdas dos que investem em títulos mas não sem levantar críticas e oposições daquele que pagam impostos.

Se tentarmos comparar a crise atual às diversas outras que se acumulam das digressões históricas dos analistas econômicos, ressaltaríamos dentre algumas diferenças e semelhanças, duas das características que nos parecem fundamentais para apontarmos os movimentos que devem se seguir no atual cenário:  a grande liquidez internacional e a disposição dos agentes de Estado em socorrer o mercado em caso de um colapso, sem a mínima preocupação de estar se envolvendo  em uma questão de risco moral ( moral harzd ), ambas fruto de um novo paradigma mundial.

Alan Greenspan, não perde a chance de comentar o quanto a "queda dos muros" e o fim da guerra fria contribuiu para a pujança do capitalismo dos últimos tempos, de suas economias e mercados. Nos sentimos obrigados a concordar com esta análise, principalmente porque ela levanta a  questão  da isomorfia dos sistemas econômicos. Independente dos regimes, políticas ou governos, os Estados pós-modernos se diferenciam pelo fim da oposição ideológica que o capitalismo, enquanto sistema econômico, sofria nos períodos que precederam outras grandes crises mundiais. Da China comunista, aos regimes imperiais do oriente médio, passando pelas democracias latino-americanas (frágeis ou não) ao presidencialismo centralista de Putin na Rússia, o modelo econômico capitalista, de fato assumiu uma unidimensionalidade. Não existe resistência fora desta única dimensão de mercados interconectados através do fluxo de mercadorias, trabalhadores e capitais que transitam como um nível de liberdade nunca antes presenciado.

A política monetária que tem orientado os países ao redor do globo nestes últimos dez anos, com pequenas diferenças, parece ter saído da mesma cartilha. Isto gerou uma oferta monetária num ritmo cada vez mais acelerado, que aliada a um círculo virtuoso de crescimento econômico, expansão do crédito e crescimento do mercado de ações, gerou um efeito riqueza sem precedentes. A desaceleração econômica ou o início do processo recessivo que já se aponta na economia norte-americana, a partir da crise no crédito que tanto estimulou o consumo nos EUA nos últimos 8 anos, conta com um "colchão de liquidez" mundial, que parece garantir que o pouso forçado da maior economia do planeta espalhe menos estragos ao seu redor.

A economia dos países emergentes continua aquecida pelo consumo interno, tendência que deverá se confirmar para os próximos meses, mesmo como reflexo do forte crescimento de 2007. O crash no preço dos ativos que tem atingido investidores ao redor do mundo,  tornando-os mais seletivos e  mais avessos à riscos, acontece num contexto de empresas capitalizadas e menos dependentes de crédito fácil para financiar a manutenção de seu crescimento. Além disso, o intenso ritmo de circulação do capital  e a grande disposição dos agentes em garantir a solvência e o equilíbrio do mercado financeiro, sem a culpa do risco moral, apontam para uma turbulência de consequências não tão desastrosas para a economia global.  Mesmo que uma grande parte deste capital seja fictício e virtual, e que esteja ameaçado de encolher nos portfólios de créditos de liquidação duvidosa, a sobra de capital, que continua ávido por melhores remunerações,  tem se mostrado suficiente para garantir a liquidez e  solvência das instituições financeiras que estão no centro da crise e acabaram se tornando uma bargain para os investidores.

Assim, assumindo o risco de uma posição monetarista, acredito que para  o aparente colapso do mercado de ações  configurado nos últimos meses realmente se constituir como uma crise financeira de proporções globais, seria preciso uma real contração da oferta monetária, sobretudo se  conjugada com reais problemas de solvência bancária, o que dificilmente parece se avizinhar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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