domingo, 27 de fevereiro de 2011

Humano Demasiadamente Humano – Bárbaros e Civilizados

Nietzsche                                                                            

Acabo de chegar de uma sessão de “Avatar”, de James Cameron, quatro dias depois do terremoto que assolou o Haiti. Não foi difícil perceber a evolução da abordagem do tema  “revolução digital”, sobretudo comparando o filme a “Matrix”, um daqueles clássicos que representam um divisor de águas na aproximação  de questões que explicitam o espírito de uma época. Isto porque “Avatar” já pega carona nos reflexos de uma visão que tenta alinhar o desenvolvimento tecnológico à tarefa de preservação da natureza e do meio ambiente, como única forma viável de perpetuação de uma espécie que se afirmou como soberana nos quatro cantos do universo civilizado do qual se  tem notícias: a espécie humana.

Embora fique tentado a aprofundar os comentários sobre o filme e sua temática socioambiental, admito que eles ganhariam relevância se fosse possível  relacioná-los  à recente “tragédia” que se abateu sobre o Haiti, que mobiliza, no mínimo, a atenção do mundo civilizado, movido pelos princípios de humanidade e convergindo ações que buscam afirmar sua solidariedade para com os habitantes do país talvez mais miserável do globo, território circunscrito sob os preceitos da civilização e habitado por indivíduos, supostamente, pertencentes  à mesma espécie, mas cujas condições de vida parecem negar este vínculo.

Paralelamente ao terremoto no Haiti, gostaria de relacionar um outro evento que vem assolando o cenário político brazuca como um terremoto: a péssima recepção, por alguns segmentos da sociedade brasileira do decreto assinado pelo presidente Lula que institui o Plano Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3), que visa a regular as relações de poder através da codificação de princípios que estejam alinhados aos direitos de todos os cidadãos brasileiros, já garantidos pela constituição do país, embora o que se veja, na prática, seja a inobservância de muitas destas prerrogativas de humanidade quando os indivíduos não se fazem representar por segmentos da sociedade civil organizada de forma que seus clamores sejam ouvidos e seus interesses atendidos.

Face a estes três acontecimentos (o filme, o terremoto no Haiti e o Decreto Presidencial), cabem as perguntas que guiarão o resto de nossa discussão. O que, de fato, define  “humanidade” ? Como se estabelecem as relações de poder entre “indivíduos e grupos humanos” que habitam o espaço da civilização (sobre)moderna e qual a linha que separa a civilização da barbárie?

Os códigos de humanidade cooperam para  o estabelecimento dos limites que protegerão a sociedade organizada sob princípios ordenadores do Estado, dos poderes constituídos e das normas codificadas em leis. Tais princípios  livram esta sociedade das forças destrutivas da natureza e dos demais indivíduos que não se submetem aos aos dispositivos estabilizantes da civilização.  A barbárie então é colocada  do lado de lá da linha.  A divisão entre bárbaros e civilizados faz-se por uma linha que separa grupos e indivíduos a partir de dispositivos de poder que estabilizam desejos e interesses e convertem-nos em direitos e deveres. Contudo, a domesticação destas forças e a constituição de uma estrutura social organizada  não se faz sem o uso da própria força que se pretende domesticar. No domínio da natureza interna e externa aos homens, as civilizações deixaram atrás de si um rastro de destruição,  ao ponto de colocar em risco a permanência da espécie humana sobre o globo, criando uma situação paradoxal que poderíamos chamar de  “projeto das civilização bárbaras”. Antes de serem domesticados pelos códigos civilizatórios, a sociedade organizada afirmou-se e se estabeleceu pela força bárbara, a mesma força que precisou ser contida, a posteriori, através de códigos estabilizantes que mantem do  “lado de lá” da linha tudo que é tido como selvagem, bárbaro ou carente de humanização e alinhamento aos interesses das sociedades organizadas.

Filhas da modernidade iluminista, as nações, grupos e indivíduos civilizados do séc.. XXI,  habitantes dos territórios globalizados e conectados em rede apresentam-se como representantes de uma civilização que teria atingido o ápice de seu grau evolutivo, livrado-se definitivamente da barbárie que dominou a idade das trevas que a precedeu. Contudo, este estado só foi atingido as custas de um desequilíbrio causado pela humanização da natureza, quer fosse pela domesticação dos instintos naturais do próprio ser humano ou de qualquer ser vivo que ameaçasse os projetos de civilização. Se em “Avatar” a ação dramática transcorre a partir do contraste entre uma civilização dominante, na tentativa de expandir seus territórios já degradados pelo “processo civilizatório evolutivo”,  e um grupo de selvagens, completamente alinhados aos seus instintos naturais e à natureza que os cerca, a ação humanitária de socorro às vítimas do Haiti traz, de forma velada neste ato solidário, a afirmação da diferença que separa os bárbaros carentes de ajuda dos civilizados capazes de mais uma vez salvá-los do caos e da barbárie. Já no caso do Plano Nacional dos Direitos Humanos, resta-nos saber quem são os bárbaros e os civilizados, pois as vozes que se levantam contra a normatização de direitos, que pretende  garantir a “humanidade” de uma minoria (não pela quantidade, mas sob o ponto de vista do poder), geralmente tratada como bárbara pela sociedade civil organizada, apelam para o expediente de levantar dúvidas  sobre a segurança e a preservação de direitos democráticos  de uma parcela majoritária (não pela quantidade, mas sob o ponto de vista do poder) da sociedade.

Os  três eventos acima se relacionam a partir de um traço que separa os agentes em ação, e os mantem em espaços antagônicos surgidos ao longo da aventura humana de auto constituição e do processo de ultrapassagem da barbárie pela civilização. Um fragmento póstumo do filósofo alemão Friedrich Nietzsche tenta descrever esta passagem da seguinte forma: 

“A “humanização” de tais bárbaros – em parte um processo involuntário que se instaura espontaneamente em seguida a uma relativa estabilização das relações de poder – é essencialmente um processo de enfraquecimento e abrandamento e se completa precisamente às custas daqueles impulsos aos quais eles deviam sua vitória e posse; e, desse modo, enquanto se apropriam de virtudes “mais humanas", talvez até com um ímpeto magnífico, de conformidade com seu “prazer pela presa” até no mais espiritual, como subjugadores de antigas culturas, artes, religiões, completa-se também, gradualmente, do lado dos oprimidos e escravizados, um processo inverso. Na medida em que estes são mantidos como mais brandos, mais humanos e, por consequência, prosperam fisicamente de modo mais profuso, desenvolve-se neles o bárbaro, o homem fortalecido, o semi-animal com a avidez da selva, o bárbaro que um dia se sente suficientemente forte para se defender de seus humanizados, isto é, enlanguescidos senhores. O jogo começa de novo: estão dados novamente os inícios de uma cultura superior e aristocrática. Pois se o ser-senhor tem seus instintos, como o ser-escravo: a “natureza” há em ambos – e também “moral” é uma parte da natureza” (Nietzsche, Fragmento Póstumo de março de 1875).

O planeta Pandora e seus  habitantes semi-animais viram chegar  máquinas de destruição carregadas de indivíduos civilizados e de suas tecnologias digitais.  Os bárbaros habitantes de Pandora não careciam de códigos que os auxiliasse na defesa dos direitos da espécie, uma vez sua natureza interna estava integrada ao resto do mundo natural que os cercava e sua relação para com este mundo não estava guiada por nenhum ideal de progresso ou evolução. Matavam seu inimigos com respeito, quer fossem eles de sua espécie ou não, o mesmo respeito que nutriam para com o espaço que ocupavam no planeta,  compartilhando com cada pedaço de chão ou habitante da mesma força que os mantinham vivo. Esta postura para com a vida deu-lhes condição de resistir ao invasor civilizado de forma a preservar o equilíbrio de suas sociedades sem Estado e da exuberante natureza em torno deles, a qual seriam reintegrados ao término de suas  existências individuais.  Diferente da utopia hollywoodiana de Avatar a aventura da espécie humana segue no seu processo de conquista das forças, internas e externas ao indivíduo humano, legitimado pelos códigos de humanidade que representam os ideais de civilização onde a destruição é o motor do progresso de cada período histórico, pois as foças de destruição são inseparáveis das de preservação da própria vida. Quando se admite a união fatal de “produtividade e destruição” num conflito entre as forças de vida e de morte, mesmo que se tente propor uma saída para este conflito, acaba expondo-se ainda mais o paradoxo de qualquer projeto de civilização que pretenda solucionar este “trade-off”,  intrínseco a espécie humana e cuja saída parece apenas residir nas quimeras de felicidade, quase sempre transportadas para um mundo supra sensível da crença, da fé ou das ideologias.

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