domingo, 27 de fevereiro de 2011

O Capital Fictício

Com reservas estimadas em quase 1 bilhão de toneladas de minério de ferro, cujos direitos minerários foram adquiridos por empresa brasileira que possui um projeto de investimento na ordem de US$ 2,3 bilhões, a pacata cidade de Conceição de Mato Dentro tem convivido com uma polêmica, cujo cerne é a discussão acerca do "trade-off" entre  desenvolvimento sustentável e  impacto sócio ambiental gerado pelo desenvolvimento econômico.

A população de cerca de 18 mil habitantes de Conceição de Mato Dentro, localizada no meio da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, uma das reservas de biosfera brasileira reconhecida pela ONU, convive com a exuberância de sua fauna e flora, com a riqueza de seus recursos hídricos e com tradições de  várias comunidades indígenas. Em contrapartida, a sossegada cidade mineira apresenta PIB per capita de R$ 2.770 (o brasileiro está na faixa de R$ 12.000),  ficando em 665 lugar entre 853 municípios mineiros medidos pelo Índice de Desenvolvimento Humano , com seus 0,672 de IDH (o brasileiro chegou a 0,800).

O projeto da mineradora começou a alterar a realidade do município, que  já sente os "efeitos do progresso" no custo do aluguel de seus imóveis, disputados por funcionários da mineradora que começam a chegar à região, e vem produzido máximas como: "Vai haver alguma depredação da natureza, a cidade não será mais tão tranqüila, mas é a contrapartida para o crescimento", ou: "O sossego deve acabar, mas sua caixa registradora vai funcionar mais".

Esta discussão envolve alguns princípios básicos de economia elencados na clássica  teoria de ciclos de negócios (produção real, consumo, nível de preços e investimento) , cercados pelo conceito de sustentabilidade, uma vez que é impossível nos dias atuais se prescindir de uma prática econômica socialmente responsável. Contudo, o ponto que gostaríamos de destacar surge a partir das novas variáveis típicas das "aventuras de um novo mundo" .  O exemplo da pequena cidade mineira, se de um lado ressalta questões relacionadas ao deslocamento das curvas de  demanda e oferta, índice de produtividade do capital e do trabalho, de outro ressalta a lógica especulativa que privilegia o ganho de capital oriundo de uma expectativa de valorização dos ativos no curto prazo, típico do mundo sobremoderno.

Foi a partir desta lógica que o Grupo empresarial responsável pelo projeto da referida mineradora conseguiu "abocanhar" nada menos do que R$ 1,37 bilhão  e R$ 2,1 bilhão em dois dos seus recentes IPO's e pretende "embolsar" a bagatela de R$ 2,1 bilhões através de novas ofertas em andamento, a maioria delas referentes a empresas  em fase pré-operacional, cujos projetos demandam  uma série de desdobramentos, antes de começar a gerar retorno financeiro.

Apelando para uma extrapolação da teoria da "utilidade marginal", podemos avaliar a relação entre novos empreendimentos e  o interesse dos investidores/consumidores que mantem aquecida a procura por novos  ativos de realização futura.  Esta relação pode ser medida pela eficiência da troca entre os grupos (empreendedores/investidores), a partir da dimensão do limite último que determina o valor dos ativos e o grau de satisfação dos agentes investidores. O valor aqui pode ser medido pela expectativa de valorização do ativo no curto prazo e o grau de satisfação pelo desejo de ganho do consumidor/investidor , que se move a partir de  um ponto ótimo de  troca, onde o interesse pelo ativo é despertado e se mantém,  até um limite que determina atratividade última do ativo, a partir do qual o interesse se esvai. O movimento de valorização/desvalorização dentro destes limites determinam a volatilidade do preço dos ativos, desconectados das tradicionais formas de "valuation" que pretendem determinar o seu valor presente.

A sobremodernidade tem assistido a tendência de "financeirização", marca do processo da globalização financeira pós-Breton Woods e que possui como um dos seus principais sustentáculos o "capital fictício", conceito que Marx  esboçava analisar no livro terceiro do Capital. O processo de globalização e integração dos mercados financeiros desconhece fronteiras e prescinde de referências espaciais nas economias nacionais, assumindo a forma de redes articuladas de fluxos financeiros "desterritorializados", que operam initerruptamente e em tempo real. Nos mercados financeiros globais circulam um volume crescente de riqueza monetária de caráter abstrato, financeiro e mesmo fictício.

Podemos entender como capital fictício o conjunto de ativos com diferentes graus de liquidez, denominados em diferentes moedas  e com uma mobilidade crescente, que sob o regime de taxas de câmbio flutuantes engendram oportunidades extraordinárias de ganhos especulativos, após medidas que decretaram o fim do keynesianismo e a prevalência de políticas monetaristas ao redor do mundo, que incentivou a explosão de novos instrumentos financeiros que multiplicaram os ativos financeiros decretando sua autonomia frente a produção. O capital fictício é fruto de promessas de pagamentos futuros, e está representado nos títulos, ações, dívida pública e no crédito em circulação, cujo valor é fictício na medida em que ele pode aumentar ou diminuir de forma independente do capital oriundo da economia real, medido através da geração de riqueza das nações. A natureza do capital fictício é apoiada no comércio do dinheiro e não no nível da produção e do comércio das mercadorias.

E foi com base  no livre comércio do dinheiro que o Grupo empresarial citado no início do texto conseguiu abocanhar R$ 2,1 bilhões no seu mais recente IPO, e que a nova empresa listada na Bovespa alcançou R$ 4 bilhões em valor de mercado, já tendo negociado a totalidade dos contratos de parte de sua produção futura, mas que nem de longe servem para justificar o seu atual valor de mercado.  E é este capital fictício que alimenta as bolhas em seus movimentos especulativos, num mundo em que os ativos em circulação representam 3,5 vezes o volume de riquezas medido pelo PIB mundial.  São estes mesmos ativos que o mundo tem visto "encolher" no balanço dos grandes bancos mundiais, inundados por títulos (promessas de pagamento) securitizados, lastreados em imóveis cujos preços não param de despencar.

Olhando a pequena cidade de Conceição do Mato Dentro e a  expectativa do desenvolvimento econômico que bate à sua porta, o qual supostamente permitiria  a melhora dos seus indicadores de desenvolvimento humano, a única certeza que parece se confirmar é que os ganhos financeiros  dos detentores do direito de exploração de suas reservas minerais já excederam, em muito, os quase R$ 50 milhões de seu modesto PIB.

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