domingo, 27 de fevereiro de 2011

Os Corpos Sobremodernos

"O cinema-tempo visa ... tornar o corpo um ESPETÁCULO, ou melhor - fazer do corpo o emanador de histórias e narrativas, ao invés do corpo ser constituído por uma narrativa" (Cláudio Ulpiano - O cinema do corpo: instante pleno e gestus, transcrição da aula de 21/09/1995).

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Acabo de assistir o filme "Faces", de John Cassavetes. Mais uma vez (refiro-me a experiência a ter assistido Shadows) pode-se perceber como Cassavetes trabalha as imagens de forma a fazer surgir na tela o acontecimento e o instante pleno, dimensão de um tempo que encerra, em si mesmo, o antes e o depois, sublime expressão da simultaneidade.

Desconectado de um meio histórico, não é percebido no espaço cênico nenhum elemento que remeta o espectador a uma referência temporal ou geográfica indenitária. Nele (no espaço) só sobram fragmentos espaciais conectados pela expressão dos corpos que irá construir a narrativa. O corpo é o senhor do espaço cênico. Fica fácil perceber como as forças que sustentam as expressões corporais, encerram a potência de um tempo que não carece de um encadeamento lógico de qualquer narrativa. Não há a necessidade de introduzir a história das personagens, sua origem ou trama psicológica. Elas (personagens) secretam um tempo puro que carrega todas as dimensões do acontecimento e por isso o instante faz-se pleno.  A duração deste instante implica um dado imediato, que não necessita da mediação de qualquer sucessão histórica de eventos. O acesso a expressão dos corpos é dada de forma direta, no coração das coisas mesmas. O expectador é colocado no cerne da narrativa através da Imagem-Tempo. A duração do instante pleno faz com que o instante presente prolongue-se ao precedente que a lembrança atualiza; por outo lado, os dois momentos se contraem e se condensam um sobre o outro, já que um não para enquanto o outro continua.

Cena de Faces de Cassavetes

"O passado e o presente não designam dois movimentos sucessivos, mas dois elementos que coexistem, um que é presente, e que não cessa de passar, outro que é passado, e que não cessa de ser, mas para os quais todos os presentes passam... Em outros termos, cada presente reenvia-se a si mesmo como passado ... A idéias de uma contemporaneireade do presente e do passado tem uma última consequência. Não somente o passado coexiste com o presente que ele foi, mas como ele se conserva em si (ao passo que o presente passa) - é o passado inteiro, integral, todo nosso passado que coexiste com cada presente" (Gilles Deleuze - Bergsonismo, p. 45 e 46).

A simultaneidade das dimensões passado e presente, é a chave para entendermos o significado que o copo assume no cinema da Imagem-Tempo.  A abertura de um espaço qualquer, não datado ou inscrito em um meio histórico, não dependente de uma ações conectadas pelo movimento dos personagens que desse sentido a narrativa, traz objetos e meios que conquistam um realidade material autônoma e que fazem-se valer por si mesmo. Através dos sentidos, efetua-se uma ligação ótica e sonora através das quais os protagonistas investem os meios e os objetos. As imagens, na verdade, passam a funcionar como fragmentos enlaçados através das atitudes corporais das personagens, que por si só secretam a história. Não há uma trama ou intriga precedente, mais os corpos em cena, teatralizados pelo gestus, reduzem as personagens às suas próprias atitudes corporais. Segundo Deleuze, o gestus seria "o desenvolvimento das atitudes nelas próprias" (Gilles Deleuze - Cinema II - A Imagem-Tempo, p.231), e nessa qualidade, efetuaria uma teatralização direta dos corpos.

  Cena De Morte em Veneza de Visconti

A essência dos corpos é potência e o acontecimento é o encontro de corpos. O acontecimento é, então, a relação de duas potências corporais e as potências são as forças que atuam nos corpos, atravessam os corpos e a eles sustentam.  Espinosa foi o filósofo que resgatou o corpo de uma posição de inferioridade e o colocou como objeto principal do pensamento e não mas como um obstáculo a este, conforme afirmava toda a tradição platônica. A partir daí pode-se considerar o corpo como algo em que o pensamento mergulha e se vê como sua parte integrante. Assim o corpo deixa de ser prisioneiro da história e assume o papel de protagonista principal, secretor de histórias e espetáculo de produção de atitudes e posturas que irão produzir o acontecimento. Este acontecimento encerra um significado que surge a partir dos encontros de corpos, que liberam potências. Esta "reversão" se deu no cinema (do corpo como prisioneiro da história para espetáculo de produção de acontecimentos) através da passagem do cinema clássico, realista,  para o moderno, que ficou conhecido como neo-realismo.  O cinema neo-realista teve alguns representantes de peso, dentre eles Antonioni, Visconti, Felini, a Noveulle Vague francesa e Cassavetes. Em todos eles o que permanece como marca dominante é a tentativa de que cada fotograma do filme, por si só, inclua o antes e o depois, ou seja, a história com todas as suas dimensões do tempo. E é através do corpo, produtor de atitudes e posturas, que ele criará espaços desconectados, lugares quaisquer dominados pelo acontecimento, onde o encadeamento formal das atitudes substitui a associação das imagens, essência do conceito deleuzeano de Imagem-Tempo que viria substituir a Imagem-Movimento.

Dito isto, podemos avançar numa questão que busca descobrir qual o papel que o corpo assumiria  na sobremodernidade, espaço da transitoriedade e da impermanência, onde as imagens trafegam através das novas tecnologias audiovisuais. A diluição da especificidade midiática, a partir da incorporação pela mídia digital de todas as mídias anteriores, pode ser o nosso ponto de partida. Em "A Atopia do Espaço Sobremoderno", esbocei o conceito de Imagem-Composição. Longe de pretender realizar uma taxonomia das imagens, a idéia parte do modelo de imagem dominante na sobremodernidade, a imagem digital.  Atrelado a ela está a idéia de simulacro. Partamos então da explicação deleziana da idéia platônica de simulacro.

Em "A lógica do Sentido" Deleuze define os simulacros platônicos como "falsos pretendentes, constituídos a partir de uma dissimilitude, implicando uma perversão, um desvio essenciais"(Gilles Deleuze - Lógica do Sentido, p. 262). Assim, segundo Deleuze, Platão define o simulacro como o lugar da dessemelhança onde as imagens assumem um caráter subversivo que distorce a Idéia original. O simulacro seria, então, uma imagem sem semelhança. "Se dizemos que o simulacro é uma cópia da cópia, um ícone infinitamente degradado, uma semelhança infinitamente afrouxada, passamos à margem do essencial...O simulacro é constituído sobre uma disparidade, sobre uma diferença, ele interioriza uma dissimilitude...há no simulacro um devir-louco, um devir ilimitado...um devir sempre outro, um devir subversivo das profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, o Mesmo ou o Semelhante". (ibidem, p. 263, 264)

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Na sobremodernidade é através das mídias digitais que ocorre a  desontologização da imagem, uma vez que elas se tornam, virtualmente, qualquer imagem possível, desconectando-se de uma substância sólida, essência ou verdade. Não há mais a necessidade de busca por um modelo, uma vez que a imagem assume, definitivamente, seu papel de simulacro. A imagem já não é uma cópia, mas adquire um dinamismo livre das condições de espaço e tempo. Além disso, as novas tecnologias digitais criam, assim, novas possibilidades de expansão exponencial do efeito de realidade, trazendo o expectador de uma posição passiva para outra mais interativa. Ao contrário da caverna de Platão, na qual o espectador é preso, os espaços sobremodernos são supervias de informação por onde o espectador trafega e determina, fundamentalmente através do seu olhar, o sentido e a realidade das imagens. A ele (espectador) cabe selecionar  e sintetizar o material audiovisual, frente a uma colcha de retalhos eletrônica que entrelaça sons e imagens num labirinto de inscrições, bem ao sentido de Derrida. "O palimpsesto de imagens e sons possibilitado pela eletrônica e pela cibernética abre as portas para um estética renovada de múltiplos canais. O sentido pode ser produzido não pelo impulso e determinação do desejo individual contido em uma narrativa linear, mas em vez disso, por um entrelaçamento de camadas reciprocamente relativizadoras de som, imagem e linguagem"(Robert Stam - Introdução a Teoria do Cinema, p.354).

A Imagem-Composição é uma imagem de corredores e caminhos infinitos. Fluidas, com múltiplos pontos de entrada, abertas a múltiplas temporalidades e perspectivas, elas se abrem num espaço onde tudo está potencialmente ao lado de todo o resto. Fundamental para o entendimento do conceito da Imagem-Composição é explicitar a relação entre o dinamismo da imagem simulacro e a interação do expectador como fonte de sentido, móvel num contínuo  deslocamento por campos fragmentados, de um texto sempre inalcançável. Neste processo relacional o corpo assume uma dimensão de superfície conectiva destes múltiplos registros, que se reagrupam em função das forças que se exercem sobre eles e que os intercruzam. Esta reagrupação dos registros no corpo que "brilha e reluz, com todos os poros estilhaçados", é fruto de um processo de conexão entre as novas formas e fluxos de velocidade crescente, que trazem vertigem, desorientação e produzem a perda da noção de escala frente a infinita fragmentação do ponto de vista. Fragmentação que desloca e descentra, o fluxo que comprime e globaliza e a conexão que desmaterializa e hibridiza. A Sobremodernidade passou a produzir imagens que não mais são representação da realidade sensível, mas a sua apresentação intempestiva a um corpo espectador que com ela interage, numa interface de tempo real que decodifica os sinais digitais.

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O corpo sobremoderno é o corpo do espectador interativo, e esta relação entre os  dados, as forças, potência e a superfície que as conectam com o sentido da apresentação da realidade sensível, destaca a visão e a audição como decodificadores dos impulsos óticos e sonoros transformados em sinais que repousarão em pixels e cuja linha só possui algum significado a partir do olhar do espectador. Este olhar, pura visão dos reflexos que multiplicam o que refletem conferem ao espectador uma participação mais intensa na realidade refletida, neste labirinto de imagens simulacro de realidades que se ausentam. No mesmo sentido dos Corpos-Linguagens de Klossowski, Os Corpos-Imagens ou a Imagem-Composição opera uma síntese disjuntiva entre os simulacros da vista e da linguagem que duplicam e denunciam o que vêm e dizem, além de multiplicar o vidente e o falante. Contudo o vidente/falante é profundamente alterado na sua capacidade de ver e falar, a partir das inúmeras possibilidades tecnológicas de transmissão e consumo das imagens, que transformam as percepções e as habilidades visiomotoras. Uma vez que as imagens sobremodernas, como simulacros, não se propõem a representar a realidade e sim apresentá-las a um olhar nelas já inserido,  passam a produzir um fluxo móvel de fragmentos que constroem o seu sentido pela impermanência de uma brancura que se ausenta a todo tempo. O mesmo simulacro demarcado por Deleuze para apresentar a linguagem klossowskiana, que ao mesmo tempo que revoga a identidade,  fala e é falado, ocupa o ver e o falar, inspira a luz e o som, funciona como o eixo de tráfego para a Imagem-Composição, que se abre à sua diferença e a todas as outras diferenças. Ela sobe  à superfície dos corpos que as decodificam, formando esta figura móvel na crista das ondas e sinais digitais, onde os corpos "gritam, ouvem e se lembram" (Michel Serres - Hominiscências, p. 192)

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