domingo, 27 de fevereiro de 2011

A Atopia do Espaço Sobremoderno

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"Se o espaço é aquilo que impede que tudo esteja no mesmo lugar, este confinamento brusco faz com que tudo, absolutamente tudo, retorne a este lugar, a esta localização sem localização...o esgotamento do relevo natural e das distâncias de tempo achata toda localização e posição. Assim como os acontecimentos retransmitidos ao vivo, os locais tornam-se intercambiáveis à vontade. A instantaneidade da ubiquidade resulta na atopia de uma interface única". ( Paul Virilio - O Espaço Crítico, p. 13)

 

 

Retomando algumas idéias de Deleuze sobre cinema,  partamos em busca da localização do espaço sobremoderno como local onde se atualizam as tramas e trajetórias de uma sociedade unidimensional, cujos registros e imagens encontram-se midiatizados pela interface do tempo real, resultando na atopia de um espaço onde circulam trocas, em velocidades absolutas, de fragmentos e agenciamentos. Para tanto, nos fixemos, a priori, no suposto abalo do mundo como organicidade ou totalidade apontado pelo filósofo da Imagem-Tempo.

A imagens para Deleuze são matérias fluentes que agem e reagem umas sobre as outras em todas as suas faces, num conjunto infinito, que se refletem e rebatem na opacidade de nossa consciência e percepção sensível. Inventariando os diversos tipos de imagem, ele chega a dois grandes grupos: Imagem-Movimento e Imagem-Tempo. A Imagem-Movimento, que teria permeado o cinema de um realismo clássico, necessita de um meio histórico  e de sua representação orgânica , onde a ação dos personagens e seus esquemas sensoriomotor possam construir um sentido. Ali a representação do tempo é indireta, através da sucessão das imagens-ação, dos movimentos e sua unidade.

Já a Imagem-Tempo, segundo Deleuze, marca do cinema moderno, é a imagem que se reflete além de qualquer organismo e encadeamento das ações das personagens; imagens-afecção que perambulam num espaço qualquer, indefinido, onde surgem encadeamentos fracos entre situações de uma realidade dispersiva, através da qual o tempo é apresentado em seu "estado puro". Cabe ressaltar que tempo aqui não deve ser entendido numa perspectiva cronológica, mas como uma transversalidade de todos os espaços possíveis, inclusive  dos espaços de tempo. Liberta do jugo do movimento, rejeita a noção de sucessão, baseada no encadeamento das dimensões de presente e passado,  onde o presente atual reduz a virtualidade do passado que se apresenta como um presente que se foi ao invés de um passado "em si". Alcançando a liberdade em relação ao atual e o seu encadeamento de presentes, a Imagem-Tempo expõe a virtualidade pura descolada de qualquer conjunto de ações encadeadas em uma linha histórica do movimento. Ela revela as incongruências de uma temporalidade onde as ligações se dão de maneiras transversais e na forma muitas vezes incompreensíveis de estados oníricos, alucinatórios e delirantes, onde a ruptura do esquema sensoriomotor permite que o virtual exploda, com toda a sua potência, a objetividade do meio histórico.

"A verdade é que, na Europa, o período do pós-guerra intensificou significativamente as situações às quais não sabemos mais como reagir, em espaços que não sabemos mais como descrever...[Essas] situações podem ser situações-limite, ou, ao contrário, as banalidades do dia-a-dia, ou ambas a um só tempo: o que tende a desmoronar é o esquema sensoriomotor que constituía a Imagem-Ação do antigo cinema. E, graças a esse afrouxamento...é o tempo, um punhado de tempo em estado puro, que emerge na superfície da tela. O tempo deixa de ser derivado do movimento, ele aparece em si mesmo. (Gilles Deleuze - Cinema II: A Imagem-Tempo, p. 11).

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Se Deleuze apontava uma transição entre uma representação indireta do tempo para um aparecimento que não mais seria derivado do movimento, uma vez que os lugares e a ação deixavam de ser  requeridos para sua manifestação, Virilio chama a nossa atenção para a crise de um espaço substancial, homogêneo, onde a trama dos corpos se dava em uma dimensão de profundidade de campo da topologia. Através da transmissão e retransmissão instantânea dos dados verifica-se a decupagem dimensional da geometria arcaica, fixando a dimensão de um espaço acidental, descontínuo e heterogêneo, onde o tempo continua a assumir seu estado puro, e se manifesta  através da instantaneidade com que  trafegam os corpos e enunciados, abrindo a dimensão de uma ausência infinitesimal de duração. "Nada de demoras, nada de relevo, o volume já não é a realidade das coisas, esta dissimula-se no achatamento das figuras". ( Paul Virilio - A Velocidade de Libertação, p. 52). Na Imagem-Tempo deleuzeana a desvinculação do tempo em relação ao movimento se daria através da substituição do plano-sequência pelo plano-fixo, onde podia-se absorver o tempo em estado puro ou como aquilo que permanece através da sucessão dos estados mutantes. Já nas  fórmulas das transparências de Virilio,  a desintegração das figuras e dos referenciais visíveis se dá a partir dos contatos infinitesimais de superfícies-limites, onde acontece a comunicação instantânea entre os meios e as substâncias, destacando uma espessura sem espessura, um volume sem volume, uma quantidade imperceptível que traduz-se em transparência. A partir daí poderíamos sugerir a dimensão de uma Imagem-Composição, cuja única duração possível seria a da persistência retiniana que transpassa as maiores distâncias e os mais vastos espaços, buscando numa superfície transparente os pixels que traduzirão transmissões instantâneas e decodificando-as em tempo real.

Assim, surge a constatação que a Imagem-Composição, construídas pelas tecnologias digitalizadas e retransmitidas instantaneamente, ponto por ponto, secreta um tempo que é o da sensibilização de uma linha, igual a um (N)ésimo do tempo de composição da imagem formada por (N) linhas, mas que é determinado pela fisiologia do sistema ocular e sua frequência de integração das sensações luminosas que incidem sobre ele. Desta forma, a velocidade assume a hegemonia como vetor da representação eletrônica, tanto no interior dos microprocessadores que digitalizam a Imagem-Composição, quanto na sua inscrição terminal que sucede seu suporte material,  o tempo de sensibilização a partir da persistência retiniana.  A partir  daí tem-se o espaço sobremoderno como um (não) lugar onde a transparência  pode ser entendida como o campo de visão, formado pelas tecnologias visuais e noções do visual, que não mais carecem de um esquema geométrico e  sua dimensão espacial, mas tornam-se possíveis em qualquer lugar, em todos os lugares ou em lugar nenhum, sendo instantaneamente acessíveis, quaisquer que sejam as distâncias geográficas. Fundamentada na tecnologia que produz um vertiginoso delírio protético, a retina já não é uma senhora iludida da imagem, mas a sua habitante. Este espaço pode ser descrito como um cronotopo onde os encontros se fazem numa velocidade vertiginosa.

"É aqui que terminam e desaparecem a profundidade de espaço, a profundidade de campo das superfícies expostas à observação (direta) em benefício da profundidade de tempo da gravação (indireto) dos dados numéricos: pixel correspondendo ao ponto luminoso da imagem sintética do planejamento computadorizado ou pixel representando meio-hectare de território na varredura multiespectral do satélite-espião, a mesma indiferença em relação ao campo, à extensão real ou simulada das superfícies teledetectadas...A linha, a superfície e o volume aqui são apenas efeitos da projetividade do ponto e da instantaneidade da transmissão" (Paul Verilio - O Espaço Crítico, p. 26).

Michel Serres denominou esta realidade sobremoderna de "lugar de puro deslocamento". Abordando a etimologia da palavra endereço, que origina-se de rei ( o rectus se transforma em rex) que, ao reinar, delimitaria os lugares, direções e fronteiras locais de seu poder, ele conclui que a falta de lugares fixos impossibilitam sua existência (do endereço). A partir das novas tecnologias móveis, cujo telefone celular é o principal exemplo, o endereço teria sido desenraizado desses lugares. Esta mobilidade contínua ressalta o trajeto em detrimento da partida ou da chegada. "Sem lugar, sem raízes locais não podemos mais responder às velhas questões: Onde você está, de onde você está falando? "(Michel Serres -Hominescências, p.211). A perspectiva do espaço real é substituída pela do tempo real e a unidade do tempo ultrapassa a unidade do encontro.  Esta revolução das transmissões instantâneas criam um fluxo generalizado de dados, quer sejam eles imagem ou sons, que escapa do espaço real. "Ao ponto de fuga da primeira perspectiva (ótica geométrica) do espaço real do Qatrocento, sucede a fuga de todos os pontos (os pixels, os bits de informação) na segunda perspectiva (ótica ondulatória) do tempo real do Novecento" (Paul Virilio - A Velocidade da Libertação, p.96).

É nesse espaço, em que os corpos se deslocam continuamente, que os corpos-imagem e os corpos-som se cruzam com os corpos-visão e os corpos-audição,   agenciamentos que se traduzem em encontros mínimos, num tempo infinitesimal projetado pelas tecnologias das tele-transmissões, criando transparências sem espessura ou localização espacial fixa, por onde trafegam e se decodificam os dados da comunicação instantânea. Bem vindo a atopia do espaço sobremoderno.

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