domingo, 27 de fevereiro de 2011

O Simulacro Sobremoderno

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"Não se trata de segredo nem de perversão na experiência <verdade>, mas de uma espécie de arrepio do real, ou de uma estética do hiper-real, arrepio de exatidão vertiginosa e falsificada, arrepio de distanciação e de ampliação ao mesmo tempo, de distorção de escala, de uma transparência excessiva...sem a distância que faz o espaço perspectivo e a nossa visão em profundidade...Gozo da simulação microscópica que faz o real passar para o hiper-real" (Jean Baudrillard - Simulacros e Simulação, p. 41).

"Reverter o platonismo significa então: fazer subir os simulacros, afirmar seus direitos entre os ícones ou as cópias. O problema não concerne mais à distinção Essência-Aparência, ou Modelo-cópia. Esta distinção opera no mundo da representação; trata-se de introduzir a subversão neste mundo, "crepúsculo dos ídolos" ( Gilles Deleuze - A Lógica do Sentido, p. 267).

Qual é a distância  que existe entre a visão e a imagem, entre o pensamento e os objetos, entre os sons e as palavras? Algum espaço determinado que pode ser percorrido na medida de um tempo de deslocamento? Talvez o espaço necessário a uma profundidade perspectiva que permita ao vidente, ao pensante e ao falante uma distância mínima, para que se opere uma diferenciação  que separe em pólos aquilo que se vê, pensa e fala, do sujeito de cada uma destas ações.

A partir daí confere-se um caráter de legitimidade aos objetos capturados pelos sentidos, bem como a mediação do pensamento que organiza e descreve a realidade percebida e descrita. Remontemos os espaços de visibilidade por onde moveram-se os atores da mediação do confronto entre os homens e a natureza, por intermédio da interface de um "logos" que se constituía como instrumento da razão ordenadora na objetivação da realidade, resgatando-a da confusão e da desordem causada pelos atributos das sensações, incapazes de penetrar na essência do real.

Se o primeiro movimento do pensamento busca resgatar a realidade das coisas mesmas a partir do deslocamento desta para um mundo ideal das essências eternas, inacessível aos sentidos, por estes estarem fadados a produzir cópias esmaecidas do que é real, o objetivo de restaurar o estatuto da verdade através do pensamento e da razão passa pela necessidade de distanciamento entre o que pensa, fala daquilo que se pensa e sobre o que é falado. Quando se perde este distanciamento a partir da contração dos pólos que guardavam entre si um espaço mínimo de sentido, entra-se num processo aleatório e indeterminado, onde já não existe diferença entre uma causa e um efeito ou entre um sujeito e um objeto.

Neste espaço sem espaço, lugar sem lugar, não é possível se constituir a ordem do discurso lógico, com sua fixidez de distribuição de conteúdos e determinação hierárquica de signos da linguagem e da razão. Sobram, então, um "condensado de coexistências, um simultâneo de acontecimentos" de um "devir-louco" (Gilles Deleuze - Lógica do Sentido, p. 268). Diríamos, então, que o devir-louco ou tudo aquilo que está associado com a impossibilidade de diferenciação entre os pólos doadores de sentido e inteligibilidade,  foram banidos  como o outro de uma linguagem e de um sentido histórico que se quis confundir com a própria racionalidade, a operar através de uma distância mínima; condição de uma visão perspectiva.

Essa distância mínima não existe no discurso do "louco" onde estão misturados as imagens, os sons e os objetos numa simulação de visões, pensamentos e palavras,  brotando a partir de um  único lugar, onde espaço e tempo se contraem ao ponto de não existir uma perspectiva que garanta a diferenciação necessária a um sentido sustentado por categorias discursivas determinadas. Este "devir louco" de imagens, objetos e sons, não obedece a linearidade das marcações de espaço e tempo, mas irrompe simultaneamente, de forma  "chapada" em uma dimensão. Esta dimensão nega a realidade e sua organização racional, uma vez que ela se constitui pela simulação ou falseamento das categorias que sustentam o sentido e o significado da razão clássica. Portanto, a ela(dimensão) é conferido um "status" de simulacro.

Se o simulacro era privado de realidade em Platão, cujo objetivo era  restaurar a ordem das realidades essenciais das idéias eternas,  o devir-louco, por sua vez, foi exilado pelo pensamento clássico do mundo iluminista, cuja tarefa consistia em ordenar um sistema de objetividade e de racionalidade universal.

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Os movimentos pós-modernos foram responsáveis por liberar o devir-louco que fervilhava no interior de um mundo que procurava expugnar qualquer instabilidade ou ameaça às bases do projeto iluminista, já a sobremodernidade "fez subir" os simulacros, afirmando seus direitos e conferindo a ele um "status" de realidade. Esta emergência só foi possível a partir da diminuição do espaço perspectivo da visão em profundidade , quando da contração dos pólos que garantiam a integridade da representação. Neste novo esquema, tempo e espaço foram contraídos através do aumento da velocidade, engendrando uma realidade onde os eventos,  atores e observadores foram chapados  em uma única dimensão, a dimensão da instantaneidade.

O mesmo "gênio maligno" que confrontava o "cogito" no processo da dúvida metódica cartesiana, capaz de tornar indiscernível a realidade exterior e as imagens do pensamento, aprisionando nesta circularidade um "eu pensante" e soberano da inteligibilidade, é trazido de volta (o gênio maligno) e liberado no devir-louco do simulacro sobremoderno, onde não há mais necessidade de distinguir exterioridade de interioridade, verdade ou ilusão, em pólos opostos ou prevalentes que garantam um distanciamento mínimo como critério de objetividade ou verdade. O simulacro sobremoderno afirma a circularidade de todos os pólos e as chegadas sem partidas, decretando, assim, o fim do espaço perspectivo, via a volatização das formas de conteúdo e expressão.  Uma única dimensão contrai o tempo e o espaço, instaurando o paradoxo de um lugar, sem lugar, onde o observador  se transforma e se deforma com seu ponto de vista e  onde transforma e deforma o visto com o seu olhar, o olhar do "tempo real".

Paul Virillio afirma que o "tempo real é o produto da aceleração da realidade que provoca uma contração espaço-temporal, a partir das novas tecnologias das telecomunicações, encurtando as distâncias e criando uma dimensão a-espacial e a-temporal que ele chama de "dromosfera". Um (não) lugar que seria o palco do confinamento das tramas do infinitamente pequeno e do infinitamente grande. "Se o espaço é aquilo que impede que tudo esteja no mesmo lugar, este confinamento brusco faz com que tudo, absolutamente tudo, retorne a este lugar, a esta localização sem localização...o esgotamento do relevo natural e das distâncias de tempo achata toda localização e posição... os locais tornam-se intercambiáveis à vontade" (Paul Virillio - O Espaço Crítico, p. 13).

As tecnologias das telecomunicações revolucionaram o tráfego dos dados,  numa velocidade que aboliu as distâncias físicas. Já as tecnologias digitais revolucionaram as formas como estes dados são transmitidos. A combinação sobremoderna das interfaces ótico-eletrônicas com as interfaces digitais determinou uma alteração radical da percepção da realidade. A convergência destas tecnologias  passaram a moldar um "espaço-tempo sintético", onde as percepções diretas e mediatizadas se confundem para construir novos agenciamentos coletivos de conteúdos e de expressões.

O simulacro sobremoderno é o lugar dos agenciamentos coletivos de corpos e enunciados, que circulam em rede e em tempo real, onde a instantaneidade das trocas produz uma única dimensão e abole o distanciamento mínimo necessário para representação do sentido. Como uma fenda ou fissura na ordem e na  sintaxe, este espaço  veicula novas linguagens, cujas sentenças se afirmam nos pontos mínimos das conexões dos bits e dos pixels, moduladas pelos fluxos simbólicos que trafegam numa velocidade estonteante; realidade virtual do sec XXI.

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