domingo, 27 de fevereiro de 2011

A Frente do Tempo

“A natureza corre, indefinidamente, pelo curso de seus elementos pesados, para um equilíbrio. O fiel não tem mais ponto fixo. Aqui ou ali, outrora ou amanhã, estocasticamente aparecem desvios. Ou ângulos diferenciais de inclinação. Eis alguma coisa antes que nada, eis a existência, eis turbulências, espirais, volutas, todos esquemas fora do equilíbrio. Eles serão reduzidos a zero pela degradação, as ruínas e a morte. Mas, temporariamente, eles se formam. Se existem, é como desvios do equilíbrio, seu incoativo suspenso. O que se passa, na realidade, quando esse ângulo aparece ou subsiste por algum tempo? E a resposta é: Tudo isso é, a natureza, o nascimento das coisas. E a aparição da linguagem”. (Michel Serres)

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Gostaria de propor uma reflexão, partindo de conceitos que situem os estados do mundo e da vida através do relacionamento entre as possibilidades de cada evento e a atualização dessas possibilidades no espaço e no tempo, quando  dos processos de interação do sujeito humano  na ordem do mundo das coisas. Nossa aventura  terá como pano de fundo a longa história do pensamento ocidental, por onde desfilou uma série de questões já debatidas há séculos pelos primeiros filósofos na Grécia antiga e que continuam dando trabalho aos pensadores do século XXI d.C. Cada evento descrito, mais do que refletir o modelo de saber característico de sua época, deverá exprimir seus dinamismos singulares, cujos rastros pretendemos seguir. Entendemos como dinamismos singulares  a série de relações  que agem sob as formas de cada coisa e  traçam linhas invisíveis que se bifurcaram em fissuras por onde escorreram as tramas de coordenadas múltiplas que determinam cada forma individuada. A fim de seguirmos os dinamismos sob as séries seria fundamental desenrolarmos os fios por onde passam os pontos de fuga que abrem as perspectivas das tendências que se realizam nos estados a serem descritos. Tentaremos dar voz ao som das relações que se avolumam nos subterrâneos dos estados e que deixam os rastros de uma presença que só pode ser descrita a partir dos seus pontos notáveis, pontos das paradas e das ultrapassagens que vibram em sua intensidade e que  se descolam das tendências  quando da atualização de cada estado. Sigamos, então, as linhas desta virtualidade que sustentam o pulsar de todas as possibilidades.

O mundo e sua relação de eventos desde o início da história do pensamento foi objeto de observação, motivando expressões diversas contendo sua descrição. As formas de conhecimento carregam as marcas de cada maneira de lidar com a realidade dos fenômenos relacionados à matéria inerte ou a matéria viva e podem ser alinhadas por um traço comum que passa pela expressão daquilo que existe no mundo, pela apropriação da natureza das coisas e por seus processos generativos. Contudo quando o raciocínio ultrapassa o limite da coisa gerada e passa para o domínio do antes da coisa, quer seja ela uma partícula elementar da matéria, um corte que antecede o ponto geométrico ou uma complexa trama de um tecido social, nada existe a não ser um emaranhado de possibilidades que não podem ser localizadas em nenhum ponto do espaço ou do tempo. As diversas tentativas de descrever este “nada”, desde o início,  dividiram os pensadores a partir da forma como estes tentavam descrever as relações nas quais a vida humana participava como um agente ao lado das demais forças  que a constituíam, suas relações virtuais e a finalidade de suas descrições. Desde o início, as formas de descrição do mundo que procuravam repousar o processo de conhecimento apenas na capacidade de pensar a realidade dos fenômenos sem o auxílio de nenhuma autoridade que não a da voz da razão buscavam na precisão de suas construções um critério de verdade que os afastasse do erro e da obscuridade. Assim parece lógico que os diversos modelos de conhecimento que se seguiram procurassem se livrar do  peso do “nada” ou do “vazio” que não se podia definir com precisão mas apenas se intuir de forma incômoda.

Sombra Um pouco de Luz Luz

Quando tentamos seguir a linha por onde trafegou o pensamento científico desde suas origens até os dias de hoje, aportamos na Grécia dos primeiros pensadores. Nas abordagens naturalistas dos primeiros pensadores sobre o mudo dos fenômenos,  não é possível determinar  o campo de extensão de saberes diversos ao ponto de instituirmos uma separação entre as diversas aplicações a que se propunham tais estruturas de conhecimento. Encontramos ali os traços daquilo que iria se constituir como disciplinas operativas do pensamento ocidental na construção das formações sociais que se estabeleceriam na cultura clássica e  que seriam retomados na renascença no intuito de se construir um modelo de saber no qual pudesse se apoiar os ideais humanistas de um processo hegemônico da espécie.   Se a heteronomia de uma dogmática sistematizada foi capaz de sustentar um modelo de conhecimento  que prevaleceu ao longo dos séculos  que vieram depois do advento do cristianismo como divisor de águas no ocidente, a chamada revolução científica ocidental que teve lugar nos séculos XVI e XVII d.C, procurou retomar a autoridade de uma razão que se apoiava somente na sua capacidade de perscrutar as coisas, mesmo que imiscuída nas representações que ainda apelavam para a figura de um Deus que limitasse a digressão infinita do pensamento.  A própria possibilidade de digressão só aparece quando se consegue estabelecer limites para a realidade observada, a partir dos quais formula-se as dimensões de partida e chegada que tornarão possíveis os discursos históricos, através dos quais serão situados os eventos ao longo de uma linha.

Nosso século, como limiar último do processo de desenvolvimento de um modelo de pensamento que se consolidou no século XVIII d.C a partir de práticas que procuravam alcançar a verdade na realidade última das coisas que podiam ser descritas e experimentadas, acabou trazendo novamente a tona um certo tipo de ceticismo como resultado da constatação de que inútil seria avançar na tentativa de encontrar uma realidade última que pudesse servir como fundamento ou potência de tudo que veio a seguir no mundo dos fenômenos. Face à impossibilidade de se precisar os atos originais ou estados que surgirão em seguida, melhor seria considerar o acontecimento que atualiza as possibilidades como ponto de partida de qualquer análise,  pois antes disso só encontraremos tendências e propensões que não passam de instrumentos estatísticos de modelos que tentam antecipar cada evento; estruturas matemáticas que determinam a possibilidade de cada acontecimento e a probabilidade de que ele ocorra. Deixando para trás uma descrição que buscava capturar a essência imutável na base de cada fenômeno, os homens da ciência passaram a privilegiar a tentativa de encontrar as relações estatísticas entre suas possibilidades subjacentes. Cada evento passa, assim, a ser considerado como o resultado de uma série de possibilidades que não podem ser fixadas, mais sim seguidas no rastro das suas descontinuidades, assumindo esta tendência como uma espécie de realidade ou camada intermediária da realidade que estaria no meio do caminho entre a realidade maciça da matéria e a realidade intelectual da idéia. Cada modelo de saber, além de refletir as intensões originais de suas ações em direção à realidade que aborda, cria os códigos através dos quais irá definir os elementos constitutivos dos fenômenos, o grau de sua objetividade e o própria dimensão do que é objetivo. “Os códigos fundamentais de uma cultura – aqueles que regem sua linguagem, seus esquemas perceptivos, suas trocas, suas técnicas, seus valores, a hierarquia de suas práticas – fixam, logo de entrada, para cada homem, as ordens empíricas com as quais terá de lidar e nas quais se há de encontrar” ( Michel Foucault – As palavras e as coisas)

 

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Quando nos aproximamos dos discursos proferidos ao longo dos séculos XIX e XX d.C, temos a impressão de que eles carregam uma missão revisionista de um modelo de conhecimento, que depois de se considerar iluminado e  liberto da obscuridade irracional da era das trevas descambou para a ilusão de um conhecimento ideal, objetivo e completo, capaz de alcançar a essência mesma das coisas. Em cada disciplina científica sobremoderna esbarramos no esforço da reconstrução de conceitos a partir de uma consciência da limitação do um conhecimento objetivo dos fenômenos.  “Trata-se de um problema muito difícil de abordar. Quando consideramos um onda eletromagnética ou um raio luminoso que incide sobre uma placa fotográfica, o raio luminoso é a condição de que, conforme uma certa probabilidade, suceda algo que responde à questão: Forma-se um grão de prata nessa placa? O ato é o aparecimento de um grão de prata e a onda luminosa é a potência. ‘Ato’ e potência apresentam-se assim intimamente ligados e, quando procuramos a incidência da onda luminosa no ato, ou seja, o grão de prata, este surge como um a priori. Na física clássica, onde os fenômenos são objetivos, podemos empregar a linguagem tradicional da física, isto é, a linguagem quotidiana. Na física moderna, contudo, as estruturas matemáticas com que nos deparamos indicam a probabilidade de um fenômeno e não o próprio fenômeno. E, neste sentido, na física clássica, é o ato que é procurado no fenômeno, enquanto a potência deve ser correlacionada com as estruturas matemáticas” (Heisenberg – A descoberta de Planck e os problemas filosóficos da física atômica).

A revisão de conceitos outrora consolidados pelas disciplinas científicas clássicas surge como uma necessidade de lidar com escolhas múltiplas a partir de horizontes de previsibilidades limitadas. Esta explosão de possibilidades, longe de lançar o pensamento no caos da irracionalidade, apropria a própria dimensão caótica como potencial ordenador de um sistema de flutuações e instabilidades. “Desde que a instabilidade é incorporada, a significação das leis da natureza ganha um novo sentido. Doravante, elas exprimem possibilidades” (Ilya Prigonine – O fim das certezas). Nesta nova empreitada, os homens do conhecimento foram buscar, mais uma vez, a inspiração que motivou os primeiros gregos em suas descrições do universo e das coisas que nele habitam. As novas teorias sobre os elementos da matéria coincidem na perspectiva da destruição da equivalência entre o nível individual e o nível estatístico. Qualquer condição inicial não pode mais ser mais assimilada a um ponto no espaço das fases. Se as superfícies podem ser definidas como limites do volume, ou partes do espaço e as linhas como limites das superfícies, os pontos são definidos geometricamente como limites das linhas e portanto como último limite da dimensão espacial. Assim, uma formulação da dinâmica no nível estatístico descreve as condições iniciais dos fenômenos como correspondentes a uma região descrita por pura distribuição de probabilidade e portanto não localizável. 

Estas novas abordagens abriram novas possibilidades de descrição de elementos instáveis presentes na natureza sem a necessidade que eles fossem expurgados das estruturas conceituais que descrevem os sistemas naturais complexos a partir de um reducionismo teórico. Assumir a existência de eventos que não acontecem num ponto e num instante permite a formulação de conceitos que se libertem dos dois maiores limitadores teóricos da história do pensamento. Dentre todos os conceitos que se sucederam ao longo da linha da história do pensamento, dois deles se tornaram recorrentes à toda tentativa de definição de cada coisa que existe, talvez pela impossibilidade de serem tratados como coisas em si, visto parecerem ser a condição mesma para que cada coisa exista. Não é difícil imaginar um espaço ou tempo sem coisas habitando o seu interior, mas já não podemos dizer o mesmo quando tentamos pensar em uma coisa que exista fora de qualquer espaço ou de um tempo determinado. As coisas existem como que carecendo de sua delimitação espacial e das marcações temporais que situam este espaço. Daí, tempo e espaço terem sido concebidos em um dado momento da história do pensamento no ocidente como formas a priori de todos as coisas existentes ou condições formais de todos os fenômenos, que só seriam capazes de existir em um espaço e tempo determinado.

Na perspectiva da formulação do conceito de espaço e de tempo surge, paralelamente, a definição de movimento. Esta de imediato já solicita a presença do espaço para que o deslocamento dos corpos entre dois pontos localizáveis nos espaço seja possível. A partir daí o tempo surge como o período que numera este movimento através das marcação do intervalo em que o corpo se desloca. A sucessão de instantes em uma linha temporal traz consigo a idéia de intervalos de tempo nos quais o passado é o ponto da partida do corpo em movimento o presente o de sua chegada e o futuro o ponto a ser atingido. Assim, tempo e espaço seriam indissociáveis na determinação da extensão ocupada pelos corpos. Esta perspectiva impede que o pensamento atinja as coisas fora das determinações espaço-temporais. Como pensar qualquer fenômeno que seja sem apelar para a extensão do espaço e a marcação do tempo? Precisaríamos de um princípio que capturasse as coisas no conjunto de suas virtualidades, como uma experiência imediata que não solicita as formas a priori da intuição, mas se funda no acontecimento e no instante.

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Com o princípio da experiência imediata surge um tipo pensamento que tira da sucessão e da simultaneidade sua potência e substitui as formas a priori da intuição pela presença de um fluxo contínuo em expansão. A partir daí, finda-se qualquer sentido  que não o tempo presente no acontecimento e abre-se um território de ocupação onde o equilíbrio se vai distante e o instante assume um caráter de destrato a cada tempo a partir da privação de um possível a cada exemplo. Sem que se possa fixar um espaço  vão-se todas as distâncias medidas por exatos pontos, anunciando uma tendência que se coloca num lugar à frente do tempo. Usualmente utiliza-se a expressão “à frente do tempo” para eventos, situações ou indivíduos que se afirmam através da novidade trazida por suas ações ou ideias. Porém, quando pensamos a expressão “à frente do tempo” como um lugar de ultrapassagem do tempo, trazemos à cena uma descrição que tenta dar conta de um espaço que já não se constitui a partir da variação dos intervalos ou períodos de tempo utilizadas para numerar a extensão do deslocamento dos corpos em movimento. As frações ou medidas das trajetórias em cada um dos seus instantes constituem a essência do intervalo. Este sentido de intervalo sempre revelará a quantidade de tempo decorrido do ponto inicial ao limite último da marcação temporal. Contudo, para esta  descrição do tempo é fundamental que se admita o movimento enquanto o deslocamento no intervalo espaço-temporal. A única possibilidade do movimento se dar sem que haja variação entre os instantes iniciais e finais seria supor uma velocidade tal que imobilizasse o deslocamento do corpo em um intervalo a-temporal,  constituído como uma  fração do menor tempo possível para esta duração, e que esse intervalo fosse impossível de ser medido espacialmente e sim apenas pensado.

Quando o pensamento lança  a  rede de captura dos elementos que irão constituir suas imagens ele é tentado a se apropriar dos limites estabelecidos pelo espaço e pelo tempo, sob o risco de mergulhar em águas da ininteligibilidade onde seria impossível distinguir qualquer  conteúdo sequer.  Penetrar no profundo dos territórios caóticos exige uma postura que não nega a desordem e a instabilidade sua potência inteligível. Se o princípio da inteligibilidade se afirmar a partir dos conteúdos possíveis não localizáveis no espaço e no tempo das determinações individuais, fica ampliada a capacidade da razão em lidar com os fenômenos do cotidiano da vida. A vida como uma forma complexa de manifestação que ultrapassa as dimensões espaço-temporais requer do pensamento uma linguagem que seja capaz de lançá-lo em uma dimensão profunda onde ele se aproprie, imediatamente, de seus dinamismos singulares. Um dinamismo singular, mais do que escrever os eventos na ordem de sua trajetória, afirma-os enquanto conjunto de possibilidades não atualizadas em uma realidade espaço-temporal. Ainda que a individuação requeira do observador, também individuado, uma linguagem mediadora dos significados que evoluem junto com os pontos de cada fase significante, ela não deve impedir a conquista imediata de uma realidade além do tempo e do espaço, além do bem e do mal. Abre-se assim uma fenda espaço-temporal por onde as formas da virtualidade trafegam cheias de realidade, roçando  nas categoriais atuais em sistemas não-integráveis, onde as variáveis não podem ser descritas de uma forma que a energia potencial de cada partícula seja suprimida em seu processo de interação, destruindo todas as trajetórias, seja qual for a precisão da descrição.

Como encontrar essa linguagem capaz de suprimir qualquer mediação e lançar o falante no reino das dinâmicas singulares onde este poderá ver os toques antes que eles se estendam às peles?

A  dinâmicas singulares concentram-se nas relações diferenciais sob as formas e extensões qualificadas da representação. O processo de atualização dessas virtualidades se dá a partir de dois aspectos: especificação e partição, qualificação de uma espécie e organização de um extenso. O salto para a realidade atual é um ato de criação que convoca o tempo, na encarnação do prolongamento da especificação das qualidades e evoca o espaço na composição das partes extensivas das coisas. A partir daí, o falante passa a utilizar os códigos de um linguagem que procura encontrar as semelhanças ao longo de uma rede de signos que recobre cada coisa com seu significado. Falar de uma realidade que ainda não se atualizou requer uma linguagem da palavra muda e um conhecimento do pensamento cego, que, embora distintos, são obscuros, mas unicamente capazes de dizer a profundidade inextensa das relações entre as singularidades pré-individuais. Enquanto as imagens multiplicam-se na impossibilidade de seu anonimato nas formas da representação, sobram as vistas vazias sem semelhanças ou lugar comum, capazes de realçar as formas que saem de cena com o brilho de quem se lambuzara com as cores do tato. Dos tratos ficam as penas para aqueles que insistem, de fato, em sorver as delícias dos sentidos inexatos. Sobram-lhes a felicidade do tempo puro, sem acontecimento, sem projeto e sem possibilidade, como uma perpetuidade vazia que é preciso a cada instante suportar infinitamente. “A ausência de todo centro: portanto, fora de toda regularidade. A atenção é a colhida daquilo que escapa à atenção, abertura sobre o inesperado, espera que é o inesperado de toda espera” (Maurice Blanchot – A conversa infinita).

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