domingo, 27 de fevereiro de 2011

A Destruição Criativa

“ É verdade que as ciências do homem, com seus esquemas materialistas, evolucionistas, ou mesmo dialéticos, estão em atraso em relação à riqueza e à complexidade das relações causais tal como aparecem em física ou mesmo em biologia. A física e a biologia nos colocam em presença de causalidade às avessas, sem finalidade, mas que não deixam de testemunhar uma ação do futuro sobre o presente, ou do presente sobre o passado: é o caso da onda convergente e do potencial antecipado, que implicam uma inversão do tempo. Mais que os cortes ou ziguezagues, são essas causalidades às avessas que rompem a evolução. Do mesmo modo, no campo de que nos ocupamos, não basta dizer que o Estado neolítico ou mesmo paleolítico, uma vez surgido, reage sobre o mundo circundante dos coletores-caçadores; ele já age antes de aparecer, como o limite atual que essas sociedades primitivas conjuram por sua conta, ou como ponte para o qual elas convergem, mas que não atingiram sem se aniquilarem.” ( Gilles Deleuze - Mil Platôs, Vol. 5, p.120)

A idéia acerca da destruição criativa não é nova em economia. Contudo, o conceito ganhou uma nova projeção mundial no mundo pós-moderno após Alan Greenspan,  ex-presidente do FED, passar a assumir por ela,  publicamente, sua simpatia,  assim como pelo economista que a concebeu.  Joseph Schumpeter (1883-1950), em suas análises teóricas sobre os ciclos econômicos,  levanta questões que parecem ter exercido certo fascínio sobre o ex- Chairman, sobretudo aquelas vinculadas aos conceitos de estabilidade e permanência confrontados com os processos de mudança, que carregam em si o germe da alteridade e da transitoriedade.

No início do ano de 1931, em meio a grande depressão econômica que se abateu sobre o mundo ocidental,  a partir do crash de 1929 em Wall Street, Schumpeter proferiu uma série de conferências na Universidade de Tóquio, que foram compilados em três artigos, um deles denominado: The Theory of the Business Cycle.

Em seus trabalhos ao longo de sua vida acadêmica,  o economista nascido no antigo império Austro-Húngaro procurou descrever os movimentos do modo de produção capitalista, ressaltando a importância do progresso técnico na dinâmica do desenvolvimento econômico.  Para ele, no capitalismo,  esta dinâmica estaria orientada a partir de séries que evoluem em ciclos de equilíbrio, inovações, instabilidade e rupturas, refletindo períodos de prosperidade e depressão onde os eventos se conectam e a alternância entre as fases seriam fenômenos estruturais do próprio ciclo. Contudo, para Schumpeter o progresso econômico se dá através de ondas que coexistem em diferentes níveis de flutuação que ao convergirem para um mesmo ponto geram grandes picos ou grandes desacelerações.

O ponto central da análise schumpeteriana reside na mudança qualitativa que determinadas alterações trazem para a vida econômica, ao ponto de provocarem uma ruptura no equilíbrio de um determinado fluxo, produzindo mudanças no rumo dos acontecimento que levam a economia a um novo estágio. Assim, a evolução econômica se caracterizaria por rupturas e descontinuidades com a situação vigente , a partir da introdução de novidades na maneira do sistema funcionar. As mudanças, desta forma, se originariam na maneira distinta de combinar materiais e forças. Os recursos já estariam disponíveis na sociedade, estando empregados em atividades já consolidadas num fluxo circular de equilíbrio. São as novas maneiras de combiná-los, juntamente como novas tecnologias, retirando-os dos locais onde se acham empregados e alocando-os em novas atividades, que vão produzir, então, o que Schumpeter chamou  desenvolvimento econômico.

Na idéia de Schumpter o motor do desenvolvimento econômico age através da substituição de maneiras obsoletas de se combinar os recursos por novos arranjos que se apóiam em novas tecnologias que surgem a partir da destruição do equilíbrio circular de um antigo modelo.  Assim, por  destruição criativa se entenderia o  processo de sucateamento das velhas tecnologias e das velhas maneiras de fazer as coisas para que se possa ceder o espaço ao novo, com vistas a se atingir o desenvolvimento econômico.

A sobremodernidade assiste um processo de alteração nos modelos consagrados de se pensar e fazer. Assim, a luz do conceito de destruição criativa,  a pergunta que se sugere é: Quais foram as novidades  inseridas no funcionamento do modelo econômico sobremoderno e em que tecnologia elas estão apoiadas?

O Sociólogo polonês Zygmund Bauman em suas  abordagens sobre as  novas condições da vida social, política e econômica  na modernidade, cunhou um conceito que passou a refletir os novos aspectos da vida humana na sociedade sobremoderna. Este novo momento se afirmaria  a partir do maior dinamismo e maior velocidade das trocas entre os agentes, num processo de integração global com grandes consequências para a experiência individual humana e sua história conjunta. Assim, o principal fundamento do  pensamento de Bauman se apóia numa das características físicas dos líquidos e gases: a fluidez.

O que mais nos desperta a atenção no todo da argumentação baumaniana é sua tentativa de caracterizar o novo estágio da civilização moderna através de metáforas sempre ligadas aos principais princípios da fluidez. Daí a sua abordagem ter desembocado em obras com títulos sugestivos como: Modernidade Líquida,  Amor Líquido,  Vida Líquida e Medo Líquido.

Na base da idéia de fluidez encontra-se a idéia de mobilidade, que segundo Bauman, facilita a alteração da forma dos líquidos diferentemente dos sólidos, que " fixam o espaço e prendem o tempo".

" Os fluidos se movem facilmente. Eles fluem, escorrem, esvaem-se, respingam, transbordam, vazam, inundam, borrifam, pingam; são filtrados, destilados; diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos - contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho." ( Modernidade Líquida - Jorge Zahar Editor, p.8)

Aproveitando a idéia de fluidez e de como a sobremodernidade se fundamenta, a partir de relações caracterizadas pela impermanência, transitoriedade e liquefação dos vínculos, nos permitimos propor uma análise que se apóie nestas características, a partir de uma conseqüência econômica deste novos estados de coisas, em linha ao conceito schumpeteriano de destruição criativa, a saber: a desregulamentação do capital financeiro e a base tecnológica das novas conexões globais que viabilizam as instantaneidades das trocas, num novo estágio do desenvolvimento econômico.

É a liquefação dos velhos vínculos que permite que os dados sejam reunidos e reclassificados a todo tempo, dada a velocidade, fluidez e alternância de suas naturezas, que não assumem uma forma fixa nem estável. Assim, o escopo das análises que objetivam descrever esta nova ordem global, deve ser tomado na perspectiva de se seguir o fluxo dos acontecimentos, através da formação de conceitos que se flexionem e se torçam a partir dos choques dos acontecimentos que se cruzam no meio da trama social.

Por isso, é comum chegarmos a possíveis paradoxos, que no miminho levam a constatações de que "o mundo está esquisito" (O Globo - Caderno de Economia - Panorama econômico, Míriam Leitão, 09/03/08).  O que se verifica na última sequência dos acontecimentos, vem reforçando análises que  continuam defendendo um descolamento entre as demais economias mundiais e a economia norte-americana. A  atual crise recessiva que se configura nos EUA frente a manutenção de um crescimento acelerado de países ao redor do globo,  mesmo diante de um cenário de forte globalização dos conteúdos mundiais, sugere que a economia internacional já não é a mesma dos últimos 20 anos. Assim as análises devem estar sensíveis a esta nova realidade.

O WEO (World Economic Outlook) do FMI, publicado em abr/2007 , intitulado Spillovers and Cycles in the Global Economy,  já considerava que no atual estágio da economia mundial, onde  o câmbio flutuante,  a desregulamentação dos fluxos financeiros e do fluxo de mão de obra, juntamente com as inovações das tecnologias de comunicação, que permitem a  ágil realocação de recursos através do livre fluxo de capital, seriam os principais "spillovers" para a manutenção da forte performance da economia global, a despeito da crise de crédito e da desaceleração na economia americana.

Talvez seja  errôneo se pensar num paradoxo quando se colocam juntos a constatação do atual  processo de globalização e a idéias que defendem o descolamento dos EUA. As análises deveriam reformular seus postulados para que expressões como do Ministro da Fazenda Guido Mântega de que "a crise do subprime não chegou à praia de Copacabana", pudessem  refletir, de fato, os novos arranjos do atual modelo econômico mundial. Diferentemente do que se acreditava, os espirros dos EUA já não gripam tanto assim.

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