domingo, 27 de fevereiro de 2011

A Virtualização dos conteúdos voláteis

Como identificar os conteúdos moventes no  espaço da sobremodernidade, onde os fluxos transitam numa velocidade vertiginosa?

Um fluxo pressupõe um movimento contínuo. A evolução do movente sobremoderno só pode ser capturada  através de cortes ou interrupções virtuais, que geram as “extremidades de intervalos” onde se inscrevem, então, as grafias que pretendem traduzir o deslocamento dos conteúdos no espaço.  Quando se aumenta a velocidade deste fluxo e o encontro destas múltiplas formas circulantes desemboca em novos arranjos, realidades e mundos, torna-se mais difícil grafar o rastro de sua duração.

Ao tentar capturar este exato instante  onde o movente se localiza no fluxo, a impermanência que caracteriza seu movimento precipita a perda dos suportes  e seus elementos de convenção, pois a possibilidade de mensurar sua passagem, através de virtuais pontos de captura, dada a velocidade do fluxo, dificulta a grafia do seu rastro. Assim, uma atitude que se sugere para lidar com uma duração, que poderíamos chamar, como Bergson já o fez, de “duração pura”, seria a de espectadores de um tempo, que foge numa dimensão de “jorro ininterrupto da novidade”.

Para se apreender esta duração, o pensamento deve se libertar da expectativa de tentar medi-la, optando por vê-la, senti-la e vivê-la no instante contínuo.

Este exercício prevê a disposição para trabalhar com um conceito de instante, como movimento que se afaste numa ausência continua e que se abra numa única dimensão, ausência esta que atrai os conteúdos, não podendo, assim, ser representada por um espaço definido ou por um lugar que pudesse reuni-los. Na verdade, ela se insinua na “brancura de sua ausência”, e desta forma, não possui alguma positividade ou determinação que possa funcionar como causa da atração destes conteúdos. Sobra, então, uma atração que confira, no vazio do movimento sem fim e sem causa, uma potência condutora que aponta para a própria ausência que se abre e que se apresenta como um “não-lugar”. Um espaço de vertigem, onde o olhar se perde, indefinidamente, no vazio de pés fora do chão.

E os conteúdos da sobremodernidade se definem a partir de sua capacidade de se movimentarem livremente em um mundo cada vez mais sem barreiras. O tráfego dos conteúdos já não mais se orientam a partir de uma condução determinada, onde o movimento representa a ação sobre o movente deslocado, que parece assumir o princípio da automotividade. Este sentido de mobilidade se realiza na potência de deslocamento carregada pelos conteúdos. O movimento dos conteúdos não depende mais de uma espécie qualquer de matéria inferida que, mesmo sem ser observada, supostamente exerceria forte influência gravitacional sobre ele. A matéria escura [1] foi deslocada para o interior do movimento dos conteúdos de forma a garantir a possibilidade de movimento dos fluxos, a partir da idéia da automotividade.

Este movimento é garantido a partir da própria característica volátil dos conteúdos, marcados pela fluidez, capacidade de partilhamento e anonimidade, princípios básicos da circulação. Como “nós flutuantes de acontecimentos que se interfaceiam e se envolvem reciprocamente” [2] os conteúdos perseguem a grafia do seu próprio movimento como rastros de uma “chegada generalizada” e de uma “partida sem origem”, uma vez que as transmissões instantâneas e a consequênte alteração das dimensões de espaço e tempo abole a noção de partida, substituindo-a pelo sentido de acontecimento virtual. Estes rastros funcionam como marcações de um tempo real, sempre presente, e de um espaço cuja extensão foi eliminada, a partir da fuga de todos os pontos, que passam a se organizar como “pixels”e “bites” em uma rede de encontro dos conteúdos.

Em substituição a esta ordem hierárquica ou de filiação, os rastros deixados pelo movimento dos conteúdos automotivos são as grafias que formam, em última instância, o plano de traficância que orienta o fluxo do devir em redes absolutamente fragmentadas.

Estes planos podem ser exemplificados a partir da multidão de imagens gráficas que povoam os broadcasts das mesas de operações das grandes corretoras de valores mobiliários, ou mesmo as telas dos computadores de agentes do mercado financeiro e dos usuários das redes mundiais de relacionamento. Nelas, a virtualidade dos conteúdos voláteis é capturada através de pontos, distribuídos de forma a orientar os investidores em suas decisões de compra e venda, ou os usuários na aprovação de um “request”. Análises gráficas e atualizações instantâneas na avaliação de “profiles” são fundamentais para determinação do potencial ou da expectativa da posição relativa dos conteúdos no fluxo de seu movimento, cujo rastro serve para a configurar seu plano de traficância.

A leitura do plano de traficância indica a posição dos conteúdos no interior do movimento, a partir da captura de sua emergência irruptiva, relativizando a tradicional forma de se fixar os pontos do fluxo. O deslocamento aqui não é visto através de uma linha que objetive mensurar os limites do tempo e do espaço, mas sim, como um movimento que se alimenta do indecidível que habita as conexões dos conteúdos materiais, tornando-as possíveis, sem contudo se deixar compreender por elas ou, através delas, vir a constituir um outro.

E esta leitura só é possível, se compreendermos as transformações instantâneas às quais os conteúdos são submetidos, quando da luta das forças que se chocam no interior do movimento. Os códigos de expressões especulativas conferem a estes instantes um status de “unidades de simulacro” que não se deixam mais compreender na oposição binária da conexão dos conteúdos, e que, entretanto, “habitam-na, opõe-lhe resistência, desorganizam-na mas sem nunca constituírem um terceiro termo, sem nunca dar lugar a uma solução na forma da dialética especulativa”. [3]


[1] Espécie de matéria que não absorver nem emite luz ou qualquer faixa de radiação eletromagnética, mas exerce uma forte influência gravitacional sobre uma estrela, podendo assim ser inferida e não observada.

[2] Pierre Lévy, O que é o virtual?  - Ed 34, p.135

[3] Jacques Derrida, Gramatologia  -  Ed Perspectiva, p. 49

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