domingo, 27 de fevereiro de 2011

Os Paradoxos do Sentido Sobremoderno – O Jogo da Luz Equívoca

“… as contradições em que nos achamos, a infelicidade de um pensamento que não tem nada por onde começar e que se dissipa de um infinito a outro, essa ambiguidade em que nos disseminamos, não permanecendo, indo e vindo sem cessar, sempre aqui e lá, e no entanto em parte alguma, curiosos a respeito de tudo a fim de não nos determos em nada, mundo em que nada está presente ou ausente, onde não há nem proximidade nem distância, onde tudo nos escapa deixando-nos a ilusão de tudo ter, é a consequência de uma obscuridade dispersa, difundida e como que errante, que não tivemos a força de fixar” (Maurice Blanchot)

Segundo Aristóteles, uma das características das palavras é a de serem equívocas, ou seja, possuírem diversos significados, podendo inviabilizar, portanto, o raciocínio lógico em seu processo de determinação das identidades fixas das coisas. Daí o esforço do Estagirita, ao longo de seu Órganon, em estabelecer regras que pudessem evitar que a equivocidade das palavras furtasse do pensamento a clareza, a precisão e a verdade. Tal método pressupõe-se imprescindível ao ato de combinar palavras, expressões e frases, de forma que os vários sentidos que se abrem diante dos termos de uma proposição sejam esclarecidos, a-priori, com vistas a se determinar critérios de verificação da sua verdade ou falsidade. Estabelece-se, assim, uma propedêutica do pensamento através da formulação de regras para a linguagem.

Na perspectiva da Lógica Aristotélica como orientação necessária à linguagem, vislumbramos um pensamento originalmente portador da ordem, que tem na clareza dos seus termos uma exigência capaz de demarcar os sentidos, a partir da adequação entre as palavras, seus significados e as coisas. Se o pensamento lógico tem como propedêutica o conjunto de regras capazes de evitar a equivocidade da linguagem, uma linha subterrânea e subversiva pode ser traçada ao longo de todo o processo de consolidação do pensamento ocidental moderno, que se propunha a libertar, nesta equivocidade, uma potência que resgatasse os paradoxos dos sentidos. Para trafegar neste submundo, espaço outro ou (não) lugar, é mister que se mergulhe no universo da ambiguidade e da contradição, movendo-nos de um termo a outro sem que careçamos de uma partida ou de uma chegada, claudicando por entre um corolário de oposições sem qualquer sentido fixo. Mistura indissociável de verdadeiro e falso, que desvela sentidos e orbita entre os choques de significados infinitamente incertos, reunindo, no ponto de partida, absolutas certezas e absolutas incertezas. “O devir-louco, o devir-ilimitado não é mais um fundo que murmura, mas sobe à superfície das coisas e se torna impassível” (Gilles Deleuze – Lógica do Sentido, p. 8).

O pensamento, assim,  depara-se com os velhos paradoxos, contudo, estes deixam de ser subterrâneos e passam a se mover na superfície de um devir que instala-se no limiar entre as coisas e as palavras, como afirmava Deleuze, no “tênue vapor” ou “película sem volume” que os envolve. Todo este processo constituiu-se em uma transmutação nas formas de falar as coisas, uma vez que já não mais se fazia necessário resguardar o pensamento da equivocidade, ao contrário, era fundamental libertá-la, a fim de que os paradoxos pudessem subir à superfície. Nesta superfície, a tensão entre os diversos sentidos  não mais necessitaria de qualquer superação. Havia de se descartar qualquer tentativa que pretendesse fixar  um sentido universal, ou mesmo, qualquer solução dialética que  superasse a contradição dos termos a partir de  sínteses dadas em um terceiro termo.  A relação que se instaura passa por uma agonística que não carece da morte de nenhum dos elementos em conflito. Ao contrário, ela se desenrola através da afirmação da natureza dos opostos, que estão livres para coexistir, cada qual, em  sua máxima potência.

Se num primeiro momento admitir este conflito permitiria que todos os valores, regras ou critérios pudessem ser confrontados, bem como contestados, a assunção da equivocidade trouxe com ela um espaço não localizável, móvel e sem espessura, palco ou superfície, que se instaurou a partir da multiplicação do devir-louco das oposições, uma vez que os encontros passaram a se dar em um espaço e tempo infinitesimais, onde tudo gira, dobra, aparece e some, como que num delírio, onde a velocidade com que as coisas surgem, misturam-se e sobrepõe-se, está elevada a enésima potência. Este movimento desemboca numa perspectiva relativista de tempo e espaço, uma vez perdidas as referências da sucessão temporal e das distâncias geofísicas, imprimindo uma dimensão de instantaneidade que substituirá esta perda definitiva por uma realidade microfísica e virtual. Esta é a dimensão do acontecimento como devir-ilimitado, evento único  abarcando as reviravoltas que lhe são próprias,  no eternamente  que acaba de passar e no eternamente que vai se passar ainda. E é nesse espaço, (não) lugar, película sem volume ou tênue vapor, que está posta a trama sobremoderna. Trama onde os pontos, todos em fuga, carregam os acontecimentos. “Aí, os acontecimentos, na sua diferença radical em relação às coisas, não são mais em absoluto procurados em profundidade, mas na superfície, neste tênue vapor incorporal que se desprende dos corpos, película sem volume que os envolve, espelho que os reflete, tabuleiro que os torna planos” (Gilles Deleuze – Lógica do Sentido, p. 10).

O acontecimento sobremoderno se dá no intervalo infinitesimal do já e do ainda não, onde tal paradoxo, de ameaça, transforma-se em motor do fluxo de um devir-louco. Fluxo incapaz de ser fixado, uma vez que, para dar cabo desta tarefa, seria fundamental contar com as dimensões de um espaço perspectivo e de um tempo cronológico. Assim o espaço com o qual se trabalha na sobremodernidade é o espaço da interface; intervalo magro onde se movem os objetos sem peso, densidade ou espessura, e o tempo é o tempo real; ausência infinitesimal de duração, fruto da velocidade vertiginosa dos deslocamentos, sobre a qual nos falava Virilio: “ A velocidade do novo meio eletro-óptico e acústico torna-se o último vazio (o vazio da rapidez), um vazio que não depende já de um intervalo entre os lugares, as coisas, entre a própria extensão do mundo, mas do interface de uma transmissão instantânea das aparências longínquas, de uma retenção geográfica e geométrica onde desaparece todo o volume, todo relevo”( Paul Virilio – A Velocidade de Libertação, p. 60). E é a partir desta alteração do sentido do espaço e do tempo que o jogo sobremoderno irá constituir a dimensão na qual a equivocidade encontrará sua definitiva redenção: a dimensão da virtualização.

Segundo Pierre Lévy, a virtualização “fluidifica as distinções instituídas, aumenta os graus de liberdade e cria um vazio motor” (Pierre Lévy - O que é o Virtual? – p. 18). Isto porque, segundo ele, o virtual seria um complexo problemático, nó de tendências ou forças, que acompanham os acontecimentos, antes que estes sejam atualizados no espaço e no tempo próprio de suas respostas. Assim, a virtualização de um acontecimento consistiria em desfazer as linhas de sua trama, sem, contudo, desvinculá-las de suas forças constitutivas e, desta forma, fazer  de suas coordenadas espaço-temporais um problema sempre repensado e não uma solução fixa. Além disso, a virtualização  dos acontecimentos permitiria que os complexos problemáticos pudessem se situar em um (não) lugar de onde fossem redistribuídos a partir de coordenadas desprovidas de inércia. Estes habitantes ubíquos, vetores desterritorializados que trafegam e se cruzam sem parar,  por recortarem o espaço-tempo clássico, escapam dos lugares comuns a partir de sua ubiquidade, simultaneidade, distribuição irradiada e duração descontínua. Assim as tramas dos acontecimentos sobremodernos são desmanchadas e refeitas em novas unidades, sem a necessidade de se fixar os seus sentidos no espaço e no tempo, pois em qualquer lugar podem  ser sincronizadas e conectadas a qualquer tempo. “A sincronização substitui a unidade de lugar, e a interconexão, a unidade de tempo” (ibdem, p. 21). Desta maneira, a virtualização,  como dimensão libertadora da equivocidade, desfaz os territórios dos sentidos fixos, abrindo espaços-tempos alternantes. Nestes (não) lugares, lugares e tempos se misturam, e as fronteiras nítidas dão lugar às películas sem volume, por onde, em milionésimos de segundos, fundem-se e desfazem-se os corpos e os enunciados. Este limiar, onde a passagem do interior ao exterior e do exterior para o interior gera um efeito Moebius, põe em cheque o conceito de identidade clássica, bem como o pensamento apoiado em definições universais e suas determinações fixas.

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O processo de acolhimento da alteridade desemboca na sobremodernidade e nela se intensifica através das descobertas de novas velocidades. A partir daí, novas dimensões de espaço e de tempo passam a coexistir, e, com elas, os paradoxos dos sentidos. Cada novo agenciamento acrescenta um espaço-tempo em uma trama, na qual os fios se recobrem, se deformam e se conectam, em que as durações se opõem, interferem e se respondem. A velocidade vertiginosa dos fluxos sobremodernos lança uma luz equívoca que se propaga como ondas e partículas, cuja própria dualidade do seu caráter propõe uma linguagem capaz de dar conta do pouco espaço e tempo, no qual se processa a reversibilidade  entre os múltiplos sentidos. Diante disto, a extensão e a duração de acontecimentos, cada vez mais evasivos,  suscita a emergência de uma assistência que consiga adaptar sua visão à espessura ótica da transparência das aparências instantâneas.

“À estética do aparecimento dos objetos ou das pessoas que se destacam no horizonte aparentemente da unidade de tempo e de lugar da perspectiva clássica, junta-se agora a estética do desaparecimento de personagens longínquas que surgem sobre a ausência de horizonte de um ecrã catódico, em que a unidade de tempo ultrapassa a do lugar do encontro: sendo definitivamente suplantados os resultados da pequena ótica da perspectiva do espaço real pela perspectiva do tempo real da grande ótica; o ponto de fuga da focalização dos raios luminosos cede a primazia à fuga de todos os pontos…” (Paul Virilio – A Velocidade De Libertação, p. 63)

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