domingo, 27 de fevereiro de 2011

Os Inventores de Mundos

Assistimos a  mais uma crise de um  modelo de mundo; privilégio daqueles que não acreditam na origem do mundo. Digo “origem” significando um lugar ou ponto original do qual todas as coisas brotam e passam a existir. Não existe origem no mundo dos homens. Coloco “origem” no mesmo sentido  adotado por Nietzsche ao opô-la a  “invenção”. Erfindeung ao invés de Urprung, invenção no lugar de origem. Os mundos, assim como os modelos, são inventados pelos homens.

Voltemos a questão da crise do modelo a partir da qual nos sentimos privilegiados em sermos espectadores. Circunscreve-lo no tempo irá requerer um esforço que nos permita enxerga-lo de fora, quase com a pretensão de externalidade necessária para que ser forme qualquer discurso sobre um objeto. Falemos então do modelo moderno liberal e capitalista, em sua vertente sustentada pelas estruturas de um sistema financeiro,  o qual é invenção da civilização ocidental que se estabeleceu na Europa e que expandiu seu modelo como um conjunto de práticas mundialmente aceitas a partir do Séc. XVII. Este sistema mundial assistiu uma enormidade de crises ao longo dos últimos seis séculos de história, onde variações de práticas comuns eram inventadas e sobrepujadas por novas invenções, sem modificar contudo  as forças produtivas do modelo original.

As “forças produtivas” do processo da civilização moderna, da mesma forma como ocorreu em outros processos civilizatórios, estão ligadas a capacidade da fixação e estabilização do fluxo caótico da natureza que insiste em afirmar sua potência destrutiva, ao longo da história, da qual se tem registro, do indivíduo, dito humano, sobre o globo terrestre. Através de uma ordem universalizada de caráter global e perseguida com afinco, a civilização ocidental moderna experimenta o resultado de dispositivos que se afirmaram a partir de sua capacidade de resguardar a civilização do fluxo destrutivo da natureza, administrando o potencial desagregador e caótico de um caldeirão de diversidade e diferentes forças em jogo, mantidas sob controle a partir da hegemonia de um modelo científico, econômico e político de mundo.

A aventura dos Estados Nacionais que se estabeleceram na Europa a partir do séc XVI, em oposição as sociedades sem estado,  carregava um potencial subversivo que vez por outra carecia de uma reconfiguração, para mantê-lo alinhado aos códigos e os arranjos de uma civilização que vingou as custas da capacidade estabilizadora de suas invenções. Através de novos arranjos de convivência, materializados em invenções sucessivas,  esta civilização tenta banir do seu seio toda e qualquer força que ameaçasse sua estabilidade, mantendo-as no exílio ou sob interdição. Contudo a instabilidade potencial acabaria fazendo parte do próprio modelo que prevaleceu e torna-se-ia o motor do desenvolvimento deste sistema mundial. O processo de constituição da sociedade dos homens modernos compartilha com os demais ciclos históricos e  processos envolvendo outras espécies, a possibilidade de ser afetado pelo jogo que se estabelece  aleatoriamente entre as forças circulantes, que afeta todos os agentes de cada processo, se não na mesma medida mais, seguramente, a partir da mesma potência. Ao assumir configurações diversas no fluxo de sua materialização no espaço e no tempo o jogo da civilização humana pode, no máximo, ser seguido no rastro de seu desenrolar histórico.

Seguindo o rastro das forças atuantes nos conteúdos deste modelo de civilização ao qual chamamos de modelo liberal capitalista  financeiro, encontramos na grafia dos conteúdos responsáveis pelo processo de estabelecimento das bases da civilização ocidental durante o início do Séc. XV., uma potência que se bifurca e funciona, ao mesmo tempo, como motor de desenvolvimento e de fixação das estruturas do modelo e  potencial subversivo que dissolve os fundamentos desta civilização. Esta potência é simultaneamente poder constitutivo e força subversiva que age na medida em que sua mobilidade é dada pela capacidade infinita de desterritorialização e territorialização de suas estruturas.

A capacidade de fazer circular é o principal mote da civilização moderna. Através do comércio e da distribuição dos conteúdos mercantis os “signos e as coisas”  cruzam o espaço e o tempo. No rastro deste movimento que empurra os conteúdos para além das fronteiras identificamos o potencial das formas voláteis que estão na base da economia monetária moderna, onde os fluxos financeiros assumiram a dianteira como potencia de volatilidade que empurra o homem moderno além dos limites de seu mundo. É a partir desta dimensão de volatilidade que gostaríamos de acompanhar o desenrolar histórico  dos fluxos da civilização moderna ao longo dos últimos séculos.

As trocas entre os agentes econômicos, a princípio habitantes das cidades-estados e posteriormente dos Estados Nacionais, assume a necessidade de uma unidade de valor que pudesse eliminar a diferença entre os conteúdos em troca e as distâncias geográficas de sua circulação. A invenção de uma sociedade onde os conteúdos pudessem circular sem barreiras demandava um modelo onde os valores de cada conteúdo pudessem ser capturados e expressos de forma a relacionar seus elementos aos de suas contrapartes comerciais. Uma vez que a diferença entre os conteúdos inviabilizava a exata medida das partes excedentes e seu maior ou menor valor de troca, havia de se constituir um conteúdo que contivesse a exata medida deste valor, mesmo que atribuída por fatores externos a ele. Surgem, então, as moedas.

           

Segundo Neal Ferguson, em a “Ascensão do Dinheiro”, as moedas mais antigas que se conhecem datam de 600 A.C e foram encontradas por arqueólogos no templo de Artemis de Éfeso. Contudo é a partir do Séc. XVII que o elemento virtual da conversibilidade monetária como articulador da diferença e da repetição dos conteúdos assume o viés que irá determinar as trocas na economia moderna. Os dispositivos que conseguissem reunir em conteúdos únicos a unidade de valores, desejos, interesses e deveres, teria a capacidade de impulsionar, sobremaneira, a troca entre os agentes. Se além disso estes dispositivos não reivindicassem às características fundantes da moeda – durabilidade, fungibilidade e portabilidade, ele libertaria, definitivamente, as virtualidades do dinheiro como unidade cambiante, onde a conversibilidade assumiria o status de única dimensão relacionada a atualização das trocas. Esta dimensão onde as formas materiais da solução monetária perdem relevância para a caracterização da realidade da moeda e sua eficácia,  potencializa os elementos das estruturas comerciais de um sistema que desembocará nos complexos instrumentos financeiros que, em última estância, foram responsáveis, ao mesmo tempo, pela ultima grande crise do modelo bem como representam o motor da engrenagem que empurra os agentes, nesta nova configuração da ordem econômica mundial.

O modelo da civilização moderna carrega o germe da virtualização das formas determinadas. Se a atualização das formas se relaciona a um processo onde o virtual, como um nó de tendências, encontra-se com circunstâncias específicas de um acontecimento e atualiza-se em uma forma determinada, o processo de virtualização, que acelerou as trocas e a circulação dos conteúdos da modernidade, consiste na elevação de uma forma atual qualquer a uma potência que extrairá dela vetores indeterminados que serão articulados em um novo complexo problemático. A sofisticação dos instrumentos financeiros aliou-se as novas capacidades da tecnologia da informação, viabilizando a aceleração das trocas dos conteúdos, encurtando a distâncias e imprimindo uma maior velocidade a circulação das forças em jogo. Bens, capitais, empresas e trabalhadores passam a cruzar as fronteiras de seus países num fluxo e num ritmo que caracteriza a flexibilidade da nova ordem mundial, em diferentes direções que acabaram alterando as formas originais das trocas.

No lugar do fundamento metálico que conferia aos conteúdos monetários um lastro potencial para a efetivação das trocas, o processo de virtualização financeira remete o valor do dinheiro a um campo onde a capacidade de fazer os conteúdos circularem, em  velocidades crescentes, garantirá eficácia do modelo. A capacidade de realizar as trocas num espaço-tempo infinitesimal permite que os conteúdos monetários circulem numa velocidade capaz de desdobra-los infinitamente, desde que eles não parem de circular. Se nas últimas três décadas do Séc XX o sistema monetário desvinculou-se, definitivamente, do padrão  ouro como lastro de suas reservas de valor, o início do Séc XXI é marcado pelo desenvolvimento das tecnologias do silício que viabilizaram a potencialização dos conteúdos monetários em um processo de virtualização onde a volatilidade assumira um papel fundamental nas trocas entre os agentes econômicos. A capacidade de  registrar os conteúdos e as transações como bits em sistemas de computadores, permitiu que mais trocas fossem efetuadas em um espaço e tempo menor. Assim o resultado acumulado destas trocas acaba sendo a diferença entre o numero de transações realizadas e o numero de conteúdos transacionados. O aumento da velocidade das transações permite que os mesmos conteúdos sejam negociados, quase que simultaneamente, entre diferentes agentes. Eis o milagre da multiplicação, dos conteúdos materializados diariamente nas telas  interconectadas ao redor do globo. Chamamos esta diferença de diferença excedente e acreditamos que é a partir dela que se direcionará o fluxo circulante deste novo modelo de mundo o qual chamados de modelo sobremoderno.

Nenhum comentário:

Postar um comentário