domingo, 27 de fevereiro de 2011

As Coisas não têm Paz

"Não é este o fogo Cristão que condena. E sim, o fogo roubado de Zeus por Prometheus e manipulado por Hefesto; senhor dos minérios e fazedor de armas. É o fogo da paixão que assombra e enternece, conduzindo a humanidade à destruição e ao progresso." (ABCEM Revista – Edição 81 )  http://www.abcem.com.br/revista_materia.php?Codigo=437

O músico e compositor Arnaldo Antunes,  escreve na Letra de "As coisas", musicada por  Gilberto Gil, que embora as coisas tenham "... peso, massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor, posição, textura, duração, densidade, cheiro, valor, consistência, profundidade, contorno, temperatura, função, aparência, preço, destino, idade, sentido" elas "... não têm paz". Esta "ausência de paz nas coisas", que chamaremos aqui de "furor",  pode ser tomada como  princípio da infinita impermanência que habita o mundo dos viventes;  "o fogo da paixão que assombra e enternece", que  garante a transitoriedade de arranjos instituídos em permanente transformação, através do movimento gerado pela  inquietude.

Quando nos deparamos com o confronto entre as forças da natureza e os agrupamentos humanos organizados em sociedades, nas suas sucessivas transições, encaramos a coexistência de multiplicidades transversais e intercomunicantes, onde populações heterogêneas de "coisas sem paz" movimentam-se continuamente, empurradas pelo seu próprio furor em infinitas direções. A forma como se organizam  e os pontos de inflexão destes movimento dificulta a antecipação e o mapeamento dos  instantes específicos onde direções são alteradas, arranjos desfeitos e relações combinadas. Os agenciamentos de multiplicidades heterogêneas se sucedem, movidos por uma potência que é puro devir.

  Desta forma, a impermanência pode ser entendida como fluxo de um devir,  intransitivo e sem códigos de filiação, semelhanças ou equivalências,  assumido como uma "duração pura", onde os intervalos seriam apenas o resultado da captura e do registro, em um determinado plano ou território, de um movimento infinito. Nestes territórios  específicos os agenciamentos são constituídos e se dissolvem, aparecem e desaparecem, organizam-se e se desmontam, reunindo "...animais, vegetais, microorganismos, partículas loucas, toda uma galáxia".  Assim, seria arriscado acreditar numa ordem lógica que permitisse a apropriação ou antecipação desta passagem pelos planos, apontando direções para suas inúmeras possibilidades, através da leitura objetiva dos seus registros grafados nos instantes do movimento.

Toda tentativa de previsão das alternâncias dos movimentos que produzem a desterritorialização de determinados agenciamentos é inútil, uma vez que a busca de semelhanças com outros intervalos mostra-se infrutífera, já que os registros disponíveis limitam-se a apontar algumas possibilidades, meramente estatísticas que, de forma alguma, contam com algum princípio de certeza nas suas atualizações presentes. A partir dos agenciamentos  traçam-se diversas transversalidades por onde escoam um sem números de seres e mundos, que não se deixam compreender por um esquema de  filiação, mas sim, como um movimento que apenas nos permite reconhecer  a posição destes mundos,  ou o conjunto das posições de seus seres inquietos, fervilhantes, marulhantes e espumosos, uns em relação aos outros, em toda sua multiplicidade.

Contudo, este alto componente de imprevisibilidade presente no fluxo do devir que atravessa a realidade dos nossos arranjos sociais, ao invés de instaurar um clima de total desconfiança, que iniba qualquer avaliação descricionista, deve inspirar um esforço do pensamento para o seu aprofundamento nas regiões de um devir habitado por "ondas inomináveis e partículas inencontráveis". Deve inspirar uma tentativa de traçar pontos de fuga por onde seja permitido visualizar estes conteúdos que se alternam continuamente, em uma empreitada  que acompanhe estas mudanças de natureza e por onde estas passagens não sejam interrompidas, mas sim perseguidas nas bordas de cada território onde se dão os arranjos das múltiplas e heterogêneos partículas.

"É que ninguém, nem mesmo Deus, pode dizer de antemão se duas bordas irão enfileirar-se ou fazer fibra, se tal multiplicidade passará ou não a outra, ou se tais elementos heterogêneos entrarão em simbiose, farão um multiplicidade consistente ou de co-fundamento, apta à transformação. Ninguém pode dizer onde passará a linha de fuga" (Gilles Deleuze - Mil Platôs)

Diante da imprevisibilidade dos movimentos e  impermanência dos arranjos, onde tudo que é sólido se desmancha no ar, como conseguir traduzir estes movimentos sem incorrer no risco de produzir registros que estejam sempre localizados no passado, uma vez que a velocidade das partículas arranjadas em uma configuração qualquer "não para de dividir o que acontece num já-aí e um ainda-não-aí, num tarde-demais e num cedo demais simultâneos, num algo que ao mesmo tempo vai se passar e acaba de se passar" (Gilles Deleuze - Mil Platôs) . Este intento não será possível  a não ser que se constitua um espaço, um campo ou um plano,  onde as coisas saiam do seu estado caótico ou de total insignificação. Onde o pensamento consiga tocar as visibilidades que se sucedem num ritmo frenético de uma velocidade absoluta. Plano onde se permita descrever, em termos conceituais, os sentidos que chegam às portas da percepção sensível, cuja possibilidade se apresenta, a princípio e até então,  como prerrogativa das formas estéticas de representações pictóricas, plano este que interponha-se  ao movimento na forma de um limiar ou uma borda por onde fluam o devir e as multiplicidades.

Diria que o espaço das bordas seria o melhor lugar (ou talvez um não- lugar) para se acompanhar a passagem dos conteúdos, caso este espaço assuma uma dimensão  de  estabilidade temporária. Local onde se emerge uma dimensão máxima provisória entre os conteúdos que não param de se transformar, e onde estes serão recortados de forma a serem lidos em suas interseções, dissolvendo-se em seguida para assumir uma nova natureza.  Este espaço transitório ou espaço de circulação não funciona a partir de qualquer expectativa de reconhecimento ou  princípio indenitário. Ele não remete a um conjunto de semelhanças  através do qual se possa seguir as sequências que estejam conectadas por parentesco, descendência ou filiação. Ao contrário, é o espaço  por onde o fluxo do devir assume seu caráter de contínua impermanência, e através do qual pode-se, ao máximo, estender linhas de fuga por onde se consiga grafar o registro de sua passagem. É o local onde tudo se torna imperceptível mas onde o imperceptível é visto e ouvido.

Tomando emprestado a expressão de Gilles Deleuze, chamaremos este espaço de "plano de consistência".

"É preciso pensar esse mundo onde o mesmo plano fixo, que chamaremos de imobilidade ou de movimento absoluto, encontra-se percorrido por elementos informais de velocidade relativa, entrando neste ou naquele agenciamento individuado, de acordo com seus graus de velocidade e de lentidão. Plano de consistência povoado por uma matéria anônima, parcelas infinitas de uma matéria impalpável que entram em conexões variáveis". (Gilles Deleuze - Mil Platôs)

E é através deste plano de consistência que poderemos observar os últimos movimentos do mundo sobremoderno no seu corpo econômico, que vem despertando uma série de avaliações, previsões e palpites, como diagnósticos de seu movimento pregresso (já-aí)  e receitas para seu desenvolvimento futuro (ainda-não-aí). E a definição de tais movimentos não deverá se dar através das formas, substâncias ou funções que os agentes exercem na trama social, mas sim pelo conjunto de elementos materiais que lhe pertencem nas suas relações de movimento e repouso de velocidade e lentidão.

Uma das mais conhecidas propostas deleuzianas foi a da aproximação do capitalismo a esquizofrenia. Sem querer reduzir a potência desta comparação, mas com objetivo de recortar o elemento de maior  potência aproximativa dos dois universos, diríamos que as linhas de fugas que acabam convergindo em ambos os arranjos, seria a da inadaptação a qualquer configuração essencial, que venha estabilizar a progressão em velocidade diferencial de suas partículas. A falta de paz dos elementos constitutivos destas duas progressões se caracterizam por um alto grau de mobilidade, que permite a reconstrução de arranjos que se sucedem de forma descontínua, ao ponto de se supor um corpo sem órgãos onde as funções são substituídas pelo grau de mobilidade de seus elementos em relação.

" Isto funciona por toda a parte: umas vezes sem parar, outras descontinuamente. Isto respira, isto aquece, isto come. Isto caga, isto fode. Mas que asneira ter dito o isto. O que há por toda a parte são máquinas, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com as suas ligações e conexões. Uma máquina-órgão está ligada a uma máquina-origem: um emite o fluxo que a outra corta. O seio é uma máquina de produzir leite e a boca uma máquina que se liga com ela. A boca no anoréxico hesita entre uma máquina de comer, uma máquina de falar, uma máquina de respirar". (Giles Delleuze - O antí-édipo - capitalismo e esquizofrenia)

A sociedade capitalista sobremoderna, enquanto agenciamento econômico-social, abre-se ao plano de consistência com todas as sua linhas de fugas que, a exemplo da esquizofrenia , carregam uma potência subversiva que coloca em crise o espaço substancial, homogêneo, herdado da geometria grega arcaica, em proveito de um espaço acidental, heterogêneo, onde as partes, as frações, se tornam atomização, desintegração, marcas visíveis que favorecem todas as transmigrações das funções, que são substituídas pelo arranjo dos conteúdos em progressão contínua, a partir de suas velocidades diferenciais.  Tempo e espaço são engolidos pela velocidade, criando uma desorientação física. A passagem de uma situação, e de um ambiente para outro não está subordinada a alguma continuidade ou relação espacial evidente. O deslocamento por áreas externas é composto por uma multiplicidade de   eixos variados que se atropelam em um ritmo alucinante. Assim como na esquizofrenia, onde há uma fragmentação da estrutura básica dos processos de pensamento, o capitalismo sobremoderno e suas invenções  são o reflexo deste processo de fragmentação. Introduzindo os fragmentos em uma fragmentação sempre nova, através do  aumento da velocidade do tráfego dos conteúdos por espaços  de  circulação ou não-lugares, cria espaços onde é impossível apelar para as sínteses indenitárias que remetam a associações por analogia. Nestes não-lugares  novos agenciamentos surgem e desfazem-se quase que instantaneamente, grafando apenas o rastro de sua rápida passagem.

Assim, o código de registro das tramas sobremodernas aproxima-se cada  vez mais dos códigos delirantes da esquizofrenia. Em sua fluidez, os códigos sobremodernos passam de um a outro registro, num veloz deslizar,  não dando nunca duas vezes seguidas a mesma explicação, não invocando nunca a mesma genealogia e não registrando nunca do mesmo modo o mesmo acontecimento. A sobremodernidade convive com a falta de paz nas coisas e suas disjunções múltiplas não mais como um quadro patológico  que necessita ser domesticado, mas sim, como o cerne de sua própria constituição. A partir daí impõe-se que o seus registros sejam lidos através  de um plano de consistência que se componha do movimento e do repouso dos conteúdos, de sua velocidade e lentidão relativa, as quais permitirão que as partículas cheguem  rápido, ou não, para operar uma passagem, um devir ou um salto. O fracasso dos arranjos faz parte do próprio plano, junto com as inúmeras composições das relações dos conteúdos nos agenciamentos e nas tramas, e não deve ser alardeado como um prognóstico de uma nova ordem a partir de uma referência de filiação evolucionista, uma vez que as linhas flutuantes dos agenciamentos são capazes de dobrar os devires em uma nova relação de  seus elementos e materiais, que dançam, fundem-se e dissolvem-se eternamente na natureza das coisas e do mundo.

"Plano fixo da vida, onde tudo mexe, atrasa ou se precipita. Um só Animal abstrato para todos os agenciamentos que o efetuam. Um só e mesmo plano de consistência ou de composição para o cefalópode e o vertebrado, pois bastaria o vertebrado dobrar-se em dois suficientemente rápido para soldar os elementos das metades de suas costas, aproximar sua bacia de sua nuca, e juntar seus membros a uma das extremidades do corpo, tornando-se assim Polvo ou Sépia, tal um saltimbanco que joga seus ombros e sua cabeça para trás para andar sobre sua cabeça e suas mãos".(Gilles Deleuze - Mil Platôs)

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