domingo, 27 de fevereiro de 2011

O Espaço Miragem

SONHO O POEMA DE ARQUITETURA IDEAL
CUJA PRÓPRIA NATA DE CIMENTO
ENCAIXA PALAVRA POR PALAVRA, TORNEI-ME PERITO EM EXTRAIR
FAÍSCAS DAS BRITAS E LEITE DAS PEDRAS.
ACORDO;
E O POEMA TODO SE ESFARRAPA, FIAPO POR FIAPO.
ACORDO;
O PRÉDIO, PEDRA E CAL, ESVOAÇA
COMO UM LEVE PAPEL SOLTO À MERCÊ DO VENTO E EVOLA-SE,
CINZA DE UM CORPO ESVAÍDO DE QUALQUER SENTIDO
ACORDO, E O POEMA-MIRAGEM SE DESFAZ
DESCONSTRUÍDO COMO SE NUNCA HOUVERA SIDO.
ACORDO! OS OLHOS CHUMBADOS PELO MINGAU DAS ALMAS
E OS OUVIDOS MOUCOS,
ASSIM É QUE SAIO DOS SUCESSIVOS SONOS:
VÃO-SE OS ANÉIS DE FUMO DE ÓPIO
E FICAM-ME OS DEDOS ESTARRECIDOS.
METONÍMIAS, ALITERAÇÕES, METÁFORAS, OXÍMOROS
SUMIDOS NO SORVEDOURO.
NÃO DEVE ADIANTAR GRANDE COISA PERMANECER À ESPREITA
NO TOPO FANTASMA DA TORRE DE VIGIA
NEM A SIMULAÇÃO DE SE AFUNDAR NO SONO.
NEM DORMIR DEVERAS.
POIS A QUESTÃO-CHAVE É:
SOB QUE MÁSCARA RETORNARÁ O RECALCADO?

Adriana Calcanhoto

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"Isso nos deixa como que estatelados, numa situação de perplexidade, mas essa perplexidade não vem de um descaminho, de uma falta de caminhos. Vem do excesso de riqueza, vem do amontoado de informações, do excesso...que se renova sempre e nós não podemos mais dominar tudo isso...não saber o que nos espera depois da próxima esquina"  - Gerd Bornheim

As tramas sobremodernas destacam-se pelo sem números de tessituras cruzadas em seus tecidos. Cores,  redes de signos, programas, ecrans e bits. Rizomas cuja ausência de centro é a potência que permite que os conteúdos circulem em fluxos contínuos e direções infinitas. Uma vez que o espaço de circulação não mais é tratado como o lugar envolvente de um corpo ou  aquele representado por uma visão perspectivista,  surge a necessidade de se definir esta nova espacialidade.

Um espaço acentrado, nômade, múltiplo, permanentemente desterritorializado, sem limites, interconectado simultaneamente, não contíguo , unidimensional e complexo. Espaço de diluição das fronteiras da existência física, vida e pensamento, onde a localização é a medida de uma dobra que conecta pontos dispostos em uma única dimensão e estendidos ou contraídos até o infinito. 

Como no poema Heráclito, de Borges, onde a imagem de um rio que corre, sem se saber de onde, mistura-se como o sujeito que o ver correr e que corre junto com ele, o (não) lugar sobremoderno dissolve-se junto aos conceitos de realidade, tempo, espaço, verdade e memória. Da mesma maneira que em "João  Maria",  heróis, cavalos, cawboys, alemães, reis, bedéus e juízes,  misturam-se e cruzam seus atributos a partir de um fingimento infantil,  o  faz-de-conta ficcional assume na sobremodernidade um status de realidade, quase sem provocar estranhamento. Miragem surgida num momento de vigília, onde o sonho ainda não se deu e a realidade se esvai, o espaço sobremoderno é o limiar dos velozes contatos entre formas de conteúdo e formas de expressão. Ritornelo que gira, construindo e desfazendo, erigindo e implodindo, onde o recalcado vem a superfície sem reivindicar seu afeto reprimido, pois dele já se esqueceu. 

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O espaço miragem é o (não) lugar da ausência infinitamente movente. Uma brancura que se afasta, dispersa e dissolve "o nada como lugar onde nada tem lugar" (Maurice Blanchot - O Livro por Vir, p. 244).  O movimento acelerado dos corpos, das paixões e dos enunciados, faze com que o encontro entre as formas de conteúdo e as formas de expressão aconteça sem que haja um assentamento das sínteses identitárias, uma vez que tudo se desmancha e se reconstrói numa velocidade vertiginosa nas fendas da indecidibilidade. Além de dissolver as fronteiras que separam os termos opostos, fugindo de resolver as contradições através de um terceiro termo de um molde dialético, os embates das forças que cruzam-se, a todo instante, ligam os termos destas forças numa rede de remetimentos recíprocos. Assim a diferença não assume um caráter de contradição, mas de um "espaçamento", que é o espaço excedente do movimento de diferenciação, numa operação de afastamento onde não se pode definir nenhuma identidade dos elementos constitutivos do rizoma. "...nem o remédio nem o veneno, nem o bem nem o mal, nem o fora nem o dentro, nem a fala nem a escrita; o suplemento não é nem um mais nem um menos, nem um fora nem um complemento de um dentro, nem um acidente nem uma essência...nem um significante nem um significado, nem um signo nem uma coisa, nem uma presença nem uma ausência, nem uma posição nem uma negação...o espaçamento não é nem o espaço nem o tempo" (Jacques Derrida - Posições, p. 48, 49).

Qual é a topologia deste espaço miragem? Diríamos que é o lugar de uma série de  deslocamentos e de um número cada vez maior de inscrições, onde a espectralidade da sua apresentação deve-se aos seus espaçamentos ou suas "diferenças e excedentes" entre as forças em circulação.

A sobremodernidade carrega o paradoxo que exprime uma capacidade de homogeneização e interdependência dos acontecimentos, assim como reivindicações de singularidades que trafegam em diferentes direções. A sobremodernidade carrega o germe da dissolução das fronteiras e dos entraves para a livre circulação, que, originalmente, apontava para um fluxo cujo movimento se dava do centro para as periferias. A mudança do sentido da ordem reside na compreensão de uma realidade unidimensional que figura como elemento motriz de uma circularidade difusa, onde o aumento na velocidade das trocas achatou as dimensões de espaço e tempo, permitindo que todos os conteúdos trafeguem sem uma partida, premissa de uma “chegada generalizada”. Como a velocidade das trocas sobremodernas apontam “chegadas sem partidas”, retirando do espaço a extensão que requeria um tempo encadeado numa perspectiva sucessória, os (não) lugares (des) legitimam os discursos (des) localizados, uma vez  que os espaços se fenderam, face aos pontos de fuga torcidos pela potência dos ritornelos que empurram os conteúdos para longe de um centro. Os enunciados flutuam e se cruzam em espaços  infinito, numa velocidade vertiginosa, encontrando corpos que se relacionam através da ação de forças alternantes, em territórios que se desfazem e se recriam num menor espaço e tempo possível, espaçamentos onde surgem e dissolvem-se as forças e onde trafegam as diferenças excedentes.

O princípio da mobilidade deste fluxo é a possibilidade de multiplicação da diferença. A abertura de novos espaçamentos viabiliza o escoamento contínuo do devir; corpos e  mundos, compostos de uma pluralidade de forças irredutíveis em luta, que na sua multiplicação escorrem para novos espaços, em um tempo cada vez menor. Assim, neste movimento difuso, a diferença assume o papel de motor de redistribuição das forças que se relacionam nos corpos. O aumento da velocidade das trocas e a redução dos espaços e do tempo criam diferenças de intensidade; forças não relacionadas e, portanto, excedentes. A partir da diferença, este excedente é redistribuído numa nova relação de forças, que é simultaneamente potência criadora e resultado excedente, e a esta relação chamaremos aqui de diferença excedente. A idéia desta diferença de intensidade se situa numa perspectiva do conceito de multiplicidade e precisa ser entendida aqui, não como um fragmento numérico de uma unidade perdida, mas sim, na perspectiva de multiplicidades qualitativas de duração. Aqui apelamos mais uma vez para Deleuze que, partindo do conceito bergsoniano de “duração”, cria a diferenciação entre “multiplicidades extensivas divisíveis” e “multiplicidades intensivas indivisíveis”. Segundo ele as multiplicidades intensivas “são constituídas por partículas que não se dividem sem mudar de natureza, distâncias que não variam sem entrar em outra multiplicidade, que não param de fazer-se e desfazer-se, comunicando, passando umas nas outras no interior de um limiar, ou além ou aquém. Os elementos destas últimas multiplicidades são partículas; suas correlações são distâncias; suas quantidades são intensidades, são diferenças de intensidade” ( Gilles Deleuze -  Mil Platôs – Vol 1 – p.46).

Sobram-nos, rastros, pistas dos “fiapos” que temos que cruzar e tecer, para suprimir os valores práticos dos intervalos de espaço e de tempo que viabilizaram a cultura moderna, em proveito do intervalo de velocidade, que está na base da instantaneidade, sem necessidade de qualquer deslocamento físico. Liberdade afinal? Melhor seria: bem vindos a sobremodernidade.

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