domingo, 27 de fevereiro de 2011

O Tamanho da Crise e o Novo Fluxo dos Dólares

Fala-se em US$ 150 bilhões, mas há quem diga que pode ser mais. A verdade é que mesmo depois do reconhecimento público por parte de algumas instituições financeiras, das perdas sofridas com os títulos lastreados em empréstimos imobiliários subprime, ninguém sabe, ao certo, dimensionar o tamanho das perdas. Enquanto os grandes bancos americanos, apoiados pelo tesouro dos EUA, articulam o lançamento de um “superfundo” para adquirir ativos de veículos de investimentos com problemas, o fluxo dos dólares assume uma curiosa direção.

Acostumados, em tempo de crise, a correr para os títulos do tesouro americano, os investidores, quem diria, frente ao dólar fraco, menor crescimento da economia norte-americana e a incerteza decorrente da crise de crédito subprime, estão reforçando sua posição de caixa nos mercados emergentes. De acordo com a Emerging Portfolio Fund Research (EPFR Global), desde o início do ano, os investidores já alocaram cerca de US$ 80 bilhões nos fundos destinados aos mercados emergentes, dos quais grande parte foram alocados depois da fase mais aguda da crise, enquanto sacaram cerca de US$ 56 bilhões dos fundos dedicados aos Estados Unidos, Europa e Japão.

As perguntas que continuam no ar são: qual é a extensão das perdas, qual o impacto que ela trará para o mundo, hoje, globalizado e para onde os investidores partirão às compras.

Quanto ao tamanho das perdas e do fôlego para resistir a elas, antes que se seja vitima de uma contaminação sistêmica, uma rápida análise nos balanços dos grandes bancos mundiais e nas reservas dos Bancos Centrais, parece indicar que o “buraco” precisaria ser muito grande para abalar a saúde financeira destes gigantes do novo capitalismo global. Na lista das 30 maiores empresas por patrimônio líquido, divulgada pela Fortune 500, estão 06 Bancos que, juntos, totalizavam US$ 481 bilhões de PL, em 2006. Analisando a lista das 50 maiores empresas, e aí sob a perspectiva dos seus ativos, a Forbes 2000 aponta a presença de 31 Bancos que totalizam US$ 26 trilhões. Os mesmos 31 bancos que em 2005 chegavam juntos à cifra de US$ 16 trilhões de ativos. E ainda que a crise resida numa momentânea falta de liquidez, os Bancos Centrais já demonstraram a disposição de evitar seu empoçamento (da liquidez), mesmo sob pena de incentivar, no futuro, as mesmas ações pouco cuidadosas que deflagraram a atual instabilidade.

Visto sob esta perspectiva, a crise do subprime parece facilmente absorvível pela grande quantidade de recursos que foram gerados nos últimos anos pelo “fator produção”, principalmente nos países emergentes, potencializada pelos agentes financeiros e suas sofisticadas engenharias que multiplicam, sobremaneira, a quantidade de moeda circulando na economia.

Paradoxo do Novo Capitalismo

A Carta ao leitor da Revista Exame, em sua edição de 07/11/07, intitulada “O Capitalismo chegou”, inspirada nas considerações do ex-presidente do Bacen, Armínio Fraga, de que o país vivia a “chegada definitiva do capitalismo” tenta convencer o leitor de que, finalmente, o Brasil atingiu parâmetros mínimos relacionados ao receituário de países ditos, de fato, Capitalistas, e portanto, passou a conviver com fenômenos tipicamente vinculados ao sistema em questão, ou pelo menos, ao seu modelo atual.

Este modelo estaria vinculado, segundo o autor da referida carta, a pelo menos três características fundamentais: um vigoroso mercado acionário, um movimento de globalização das empresas nacionais e a presença de estabilidade econômica.

O fortalecimento do mercado acionário apontaria para uma visão positiva dos investidores, em relação ao futuro das empresas e a confirmação de seus projetos de crescimento. Esta confiança faz com que sejam direcionados uma soma de recursos, nunca vistos anteriormente, para financiar estes projetos, mesmo que muito deles não possuam a menor garantia de que sairão do papel. Conjugado a este fluxo, aparentemente, inesgotável de recursos migrados para as Bolsas de Valores, está a questão da globalização dos mercados, pois grande parte destes recursos são oriundos de investidores espalhados pelo mundo, em busca de “bons projetos”. E são estes mesmos recursos, multiplicados pela ação de agentes (empresas, governos, bancos e investidores individuais) e redistribuídos em larga escala, que irão financiar projetos de expansão dos grandes conglomerados formados ao redor do mundo. Os mesmos que financiaram a maior “aquisição alavancada” já feita por uma empresa brasileira ( a aquisição da mineradora canadense Inco pela Companhia Vale do Rio Doce) e pouco tempo depois, no agravamento da crise do mercado imobiliário americano, escassearam-se e deixaram no forno vários projetos da espécie. Finalmente, chega-se a constatação de que a última característica deste suposto modelo, cujos primeiros ventos começam a soprar em nosso quintal: a tão festejada estabilidade econômica. Todo este movimento só está sendo possível a partir de um “sentimento” que cria um clima favorável para a assunção de determinados riscos, estendendo, assim, este círculo virtuoso de crescimento por um período mais longo, conferindo ao mesmo um estatuto de estabilidade.

Na mesma edição citada acima, encontramos uma matéria de título bem sugestivo que ressalta um paradoxo, a meu ver, intrínseco ao modelo produtivo instaurado na nova aldeia global. Ele aponta para um aparente descompasso entre as expectativas de crescimento não confirmadas de um determinada empresa que, mesmo assim, não para de ver o preço de suas ações subir na Bolsa de Valores de São Paulo, atingindo nos últimos 12 meses a impressionante marca de 130% de valorização. Com uma produção anual que permanece no mesmo patamar de 10 anos atrás, este exemplo vem reforçar a idéia de dominância da esfera financeira sobre a produtiva. Ou seja, esta nova lógica desvincula a atratividade de determinado ativo, neste caso específico, as ações de uma empresa privada, do incremento de sua produção ou da concretização ou não dos seus projetos de crescimento. A lógica que determina o comportamento dos agentes, famílias, empresas e instituições financeiras, doadores de recursos que movimentam o novo modelo, está cada vez mais atrelada a expectativa de variação do valor de mercado do ativo no curto prazo.

Desta maneira, torna-se cada vez mais comum depararmos com casos como o da Petrochina, companhia estatal chinesa que acaba de lançar suas ações na Bolsa de Xangai, captando US$ 8,9 bilhões e tornando-se a maior empresa do mundo em valor de mercado, superando US$ 1 trilhão. Comparando seu valor de mercado com a segunda colocada (no ranking das dez maiores por valor de mercado), a Exon, percebemos o mesmo descompasso entre o valor financeiro da empresa e seu desempenho na economia real. Enquanto a Exon, que faturou US$ 378 bilhões em 2006, alcançando um lucro líquido de US$ 39,5 bilhões, possui uma valor de mercado de US$ 488 bilhões, a sua concorrente chinesa não passou dos US$ 95 bilhões de receita e US$ 2 bilhões de lucro líquido.

É claro que esta aparente contradição ou mesmo este possível paradoxo, mais do que inspirar curiosidade, levanta interessantes questões sobre o modelo de capitalismo experimentado ao redor do mundo nos últimos anos. Tal modelo conseguiu, se não afastar de todo, pelo menos, retardar a expectativa de recessão que pairava sobre as economias (ditas desenvolvidas ou emergentes) 05 ou 06 anos atrás, e transformá-las num dos mais vigorosos ciclos de crescimento que o mundo pós-moderno tem assistido nas últimas décadas. Se não podemos aqui destacar todas as questões vinculadas a este paradoxo, uma nos parece sobremaneira confirmada: os fluxos de capitais se descolaram, definitivamente, dos fluxos de comércio e produção mundiais.

Um Novo Corolário Político

Vide esta afirmação de Frank Walter Steinmeier, ministro de Relações Exteriores e vice-primeiro-ministro da Alemanha, em um artigo publicado no jornal Valor de 20.11.07, intitulado: Por uma parceria asiático-européia.

“A ascensão da Ásia no cenário econômico e político exemplifica o fenômeno da globalização. No fim desta década, a economia chinesa será maior que a da Alemanha. Em 2040, a Ásia concentrará três das cinco maiores economias do mundo: China, Índia e Japão”.

Mesclada com manchetes sugestivas como as de um recente artigo da revista Economist, intitulado “América’s vunerable economy”, onde se perguntava: “Recession in America looks increasingly likely. Can booming emerging markets save the world economy?”, a afirmação do ministro alemão expressa, se não uma certeza , pelo menos figura como unanimidade entre os diversos analistas, de que os países emergentes tornaram-se protagonistas da nova cena econômico-política global.

Com crescimento do PIB entre 4,0% e 21,1% , alguns deles em patamares que tem se sustentado por sucessivos períodos, os “emerging markets” vêm atraindo a atenção de analistas de toda parte. Talvez por eles representarem, em alguma instância, a esperança da manutenção de uma economia global aquecida, mesmo frente às últimas turbulências que vêm atingindo os mercados financeiros ao redor do mundo, ou talvez pela sua função de catalizadores de uma mudança, verificada na circulação do fluxo de capital desta nova economia global. Contudo uma consideração merece ser feita, dado aos diversos elementos trazidos à discussão: a novas e singulares realidades políticas que não podem ser ignoradas.

Uma pesquisa realizada pelo Latinobarometro, em 18 países da América Latina, publicada pela revista Econimist e traduzida pelo jornal Valor, aponta que a maioria dos latino-americanos estão desiludidos com a economia de mercado e por isso aspiram uma presença maior do Estado com vistas a uma distribuição de renda mais justa com uma maior proteção social.

E é em nome, também, da justiça social, que o presidente venezuelano propôs o plebiscito que decidirá o rumo das reformas político-sociais em curso naquele país, cujo resultado espelhará a vontade da maioria de sua população, e que deverá ser respeitada em nome da soberania do país, independentemente das acusações de populismo que recaiam sobre o governo de Hugo Chávez.

Com suas reservas cheias de moeda forte, os emergentes têm apresentado para o mundo realidades que talvez difiram um pouco “do modelo europeu, com ênfase num arranjo justo para todos”, que Frank-Walter Steinmeier gostaria de ver disseminado, talvez pela tendência de uma economia com forte presença do Estado, como forma de assegurar uma distribuição de renda mais justa e um Estado com maior proteção social.

O que se assiste na nova cena global é a ação de países, outrora ligados a “periferia”, quando estava em discussão o fluxo de capitais na economia mundial. Tais países apresentam-se como “enriquecidos parceiros”, em grande parte por continuar detendo as principais “comodities”, que desde os antigos pactos coloniais, são fundamentais para o funcionamento da “máquina econômica global”. Além disso atingiram um certo “nível de desenvolvimento” no que diz respeito a investimentos e consumo doméstico, após terem seguido o receituário de “Breton Wods”, que os mantêm como imprescindíveis, mas com um grau de autonomia talvez nunca visto na história do desenvolvimento econômico da modernidade.

Isto inquieta os economistas, e enseja discussões em torno da dimensão do “welfare state” que supere, da melhor forma possível, o “trade-off”entre eficiência e distribuição de renda. É em nome desta mesma eficiência que Sarkozy não abre mão de implementar certas reformas na França, revertendo determinados “direitos” (para muitos conquistas e para outros privilégios) trabalhistas, que segundo alguns analistas pouco representariam em termos de retorno financeiro, mas, muito mais, atenderia a expectativa de uma “parcela da população” responsável por sua eleição.

E como representantes deste novo corolário político, à sombra dos conflitos que sempre ocuparam posição de destaque na mídia ocidental, é que surge um novo Oriente Médio o qual tem atraído a atenção, se não de uma grande massa, pelo menos de empresários que já se conscientizaram ser impossível deixá-lo de fora dos seus planos globais de crescimento. Com um crescimento econômico de ritmo acelerado, grande parte graças ao intenso fluxo dos petro-dólares, as nações do GCC (Gulf Cooperation Council) juntas, nos últimos cinco anos, receberam US$ 1.5 trilhão pela venda do seu petróleo, de acordo com o Instituto de Finanças Internacionais (IIF), que afirma ser possível em 2030, a zona do GCC tornar-se a 6ª maior do mundo em termos de crescimento econômico. Uma região onde tudo gira em torno de um “modelo próprio” de crescimento. Bem diferente do proposto pelo vice-primeiro-ministro alemão, nos Emirados Árabes Unidos a competitividade do setor privado, crescimento econômico e princípios de boa governança corporativa independem de um Estado democrático ou de eleições diretas. Isto não impede que cidades como Dubai possam expandir sua economia na casa de 16% ao ano, praticamente o dobro do crescimento chinês, o que muito bem pode ser capaz de colocar a região entre as supostas 05 maiores economias do mundo, ao lado de China, Índia e Japão. Agora resta saber, e talvez o Fuhrer alemão possa nos responder, qual seria a quinta???

Emergentes e um novo efeito de transbordamento

A recente discussão acerca da legitimidade da constituição de Fundos Soberanos por países emergentes, onde a figura de um Estado que domina a produção e a posse de matérias primas fundamentais para a manutenção das atividades de uma economia global, levanta uma questão muito interessante. Será que este reposicionamento dos países emergentes nos mercados globais representam "spillovers" que apontam para uma ruptura fundamental no capitalismo pós-moderno e a criação de um novo modelo após o colapso de Breton Woods?

Como Referência e linha de fuga para a discussão segue o artigo de Mrtin Wolf, colunista do Financial Times, publicado no Valor de 18/10/2007, intitulado " O novo capitalismo de Estado", cujo fragmento recorto a seguir.

"Minha recomendação de modo geral, portanto, é considerar o aparecimento destes fundos como parte da integração de países que aceitam um papel maior do Estado nos mercados em relação ao praticado atualmente pelos países ocidentais. Que seja. É melhor que esses países prosperem dentro do sistema de mercado a encararem-no furiosamente do lado de fora. É absurdo aceitar as exportações de petróleo de um país e não permitir que ele compre ativos em troca."

Será que o novo posicionamento dos países emergentes no fluxo da economia mundial, outrora sempre avaliado sob a perspectiva da assimetria centro x periferia, hoje representa um elemento de alteridade ou efeito de transbordamento que compõe os elementos de transformação de um novo estágio de desenvolvimento econômico mundial, bem ao sabor Schumpeteriano?

A Nova Máquina Social

Segundo muitos, estamos vivendo num novo mundo.
A nova economia global estarrece espectadores acostumados a um ciclo de acontecimentos, até certo ponto previsíveis por modelos capazes de capturar suas constantes.

Veja a citação da matéria do Valor da última quinta-feira:
“A onda de investimento nos mercados emergentes vinha em crescimento desde 2002. Agora é um tsunami. No primeiro semestre deste ano, os fluxos financeiros nesses países já superaram o total de 2006 inteiro, informa o Fundo Monetário Internacional. É um “novo mundo”, diz Jim O’Neill, diretor de análise econômica global do Goldman Sachs. “Quando foi a última vez que um grande grupo de países em desenvolvimento como esse enfrentou pressão de alta em suas moedas? Acho que nunca na história das taxas de câmbio flutuantes.”(Fluxos de Capital: Emergentes buscam saídas para um novo dilema: sobra dólar – Andrew Osborn e Joanna Slater – publicado na edição do Jornal Valor de 25/10/07 – A16)

Fluxo é a palavra de ordem.
Quer seja de capital, corpos, ou tecnologias, ele transfere de forma cada vez mais veloz e sem barreiras, conteúdos que se fundem livremente.
Assim através desta mistura de corpos que compreende todas as atrações e repulsões, as simpatias e as antipatias, as alterações, as alianças, as penetrações e as expansões que os afetam uns em relações aos outros, surge uma nova máquina social.
Mais do que um modo de produção determinado, estas formações sociais compõem-se pelos processos maquínicos que definem os aparelhos de captura que engendrarão os amálgamas e simbioses dos quais os modos de produção dependem.
Desta forma não é a máquina social que supõe um modo de produção, mas é a máquina social que faz da produção um modo.

E qual será o modo de produção desta nova máquina social, ou deste novo mundo? Capitalista Liberal, Capitalista Global, Liberal Capitalista ou Globalista Capitalizado. O fato é que nele as nações tidas como “emergentes”, “pobres”, “colonizadas”, após seguirem um receituário “pós Breton Woods” parecem que reverteram os ventos e os prognósticos que anunciavam, há alguns poucos anos, uma grande recessão sincronizada, dado o descontrole do fluxo de capitais.
“ A primeira recessão sincronizada no planeta aconteceu em 1974/75 e a segunda em 1982. Provavelmente a maior delas está a caminho, com a desaceleração econômica em países da Europa, no Japão e nos Estados Unidos, e da qual dificilmente o Brasil escapará. A previsão é do professor Luiz Gonzaga de Mello Beluzzo, do Instituto de Economia (IE) da Unicamp, que relembrou de forma didática a história econômica mundial, durante a Cientec 2001 – Mostra de Ciência de Tecnologia para o Desenvolvimento, sediada pela Universidade entre 24 de agosto e 2 de setembro”. (WANDA JORGE wandajor@zipmail.com – Efeito Dominó )
http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/jornalPDF/ju167_p5.pdf)


Parece que o “novo mundo” assiste ao espetáculo onde fica mais difícil distinguir a dita “economia real” e o dito “mercado financeiro”. Produção, especulação, ativos, empresas e derivativos, misturam-se como “sementes num grande saco”, onde coexistem em perpétua interação.
Desta mistura pode sair qualquer coisa, inclusive uma nova máquina social que reordene os conteúdos que parecem apontar para um novo papel das economias emergentes, um destino que parece inevitável.
Será???
Se depender dos nossos vizinhos não senão com um pouco de reação.

"Nações Pobres, Ricas Companhias – A velha história dos mercados emergentes falava sobre países: China, Brasil, México. A nova nos fala sobre grandes companhias emergindo destas nações e crescendo 20, 30, 40 por cento mais rápido do que as rivais do primeiro mundo...Outras blue chips dos mercados emergentes têm se transformado em agressivas “incorporadoras”. A Ranbaxy da Índia adquiriu, sozinha, nove companhias internacionais ano passado, ajudando a se transformar em uma das Top 10 fabricantes de medicamentos genéricos. Em fevereiro, Tata Steel da Índia, pagou US$ 12.1 bilhão para vencer a rival brasileira( NT. não sei porque insistem em não pronunciar o nome da CSN) no controle da Anglo-Holandesa Corus, tornando-se a 5ª. maior produtora de metais. E nos próximos 05 anos, Ratan Tata, principal dirigente da empresa, planeja uma série de fusões que levaria sua companhia para o número 02 da lista, justamente atrás da Arcelor-mittal, que é dirigida por um bilionário nascido na Índia e residente em Londres Lakshsmi Mittal. O mundo da mineração está experimentando similar consolidação, com a brasileira CVRD e algumas rivais russas, vencendo multibilionários leilões em dólares por gigantes industriais no Canadá e em outras nações ricas. Aquisições sempre povoaram as manchetes sobre a “invasão estrangeira”. Mas agora o primeiro mundo está reclamando sobre a invasão oriunda de latitudes mais pobres. “Nós já tínhamos aquisições antes, mas no passado elas vinham de empresas americanas ou européias”, diz Richard Haskayne, um ex-executivo de ponta de uma empresa de energia e fundador de uma escola de negócios em Calgary, Canadá. “Mas agora, são brasileiras, chinesas, russas e indianas. Isto muito me incomoda e eu não sei como parar isto”. (Newsweek – Edição de 08/09/2007 – The sexiest companies you’ve never heard of, p. 28 – Tradução de Carlos Machado)

Novos Paradoxos

"O Comunismo chinês pode ser capitalista, a democracia russa, um tanto leninista, o socialismo chavista pode ser católico:  o que conta é o poder."

A citação acima poderia muito bem ter sido tirada de um dos livros de Michel Foucault, quando este analisava as diversas formas de exercício do poder, em sua articulação com diferentes sistemas , instituições ou Estados. Contudo ela foi tirada de um texto de Roger Cohen, articulista do New York Times, publicado na edição do jornal O Globo de 04/12/2007 , e levanta algumas questões interessantes.

A discussão acerca da alteração e  nova distribuição do poder econômico e político que a globalização provocou na atual ordem mundial, praticamente tornou-se lugar-comum.  Ao mesmo tempo que se discute se a desaceleração da economia americana significaria o início de uma recessão de proporções mundiais, e que as autoridades daquele país  já começam a estudar medidas para minimizar os custos de uma crise recessiva para  economia norte-americana, parece consenso que o peso da maior economia do mundo no jogo do novo mercado global se alterou. Basta olhar para os dados mais recentes do Goldman Sachs, que apontam para um terceiro trimestre de 2007 onde apenas as economias dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) já deverão contribuir duas vezes mais para  a demanda global do que os Estados Unidos que, segundo os últimos números daquele banco, obteve um crescimento de 15% de suas exportações, quando comparado com o ano passado, impulsionado pelas vendas para mercados em desenvolvimento.

A questão que merece ser colocada é: por que a máxima de que "quando os Estados Unidos pegam um resfriado, o resto do mundo contrai uma pneumonia" já esta desgastada?

O fenômeno da globalização, ou seja, a integração dos países numa suposta "ordem global", não é novo. Também não é nenhuma novidade que os propulsores técnicos e econômicos das novas tecnologias da informação e comunicação aprofundaram esta realidade.  Talvez a maior novidade desta integração seja, como destacou Philip Stephens, colunista do Financial Times, em seu artigo publicado no Valor de 03/12/2007, o fato de que,  após o Consenso de Washington,  "a globalização era algo que os países ricos faziam com o resto do mundo. Agora começa a parecer que outro alguém esta fazendo com eles".

Bens, capitais, empresas e trabalhadores têm cruzado as fronteiras de seus países num fluxo e num ritmo que caracteriza a flexibilidade da nova ordem mundial, e em direções que parecem desobedecer a  lógica da antiga assimetria entre o centro e a periferia do mundo. Esta oposição sempre alimentou discursos anti-globalização por parte de governos ou setores, de países, a principio, excluídos dos benefícios gerados pela abertura dos mercados, que "na esteira da queda do Muro de Berlim",  parecia favorecer apenas as economias desenvolvidas, e jamais os frágeis agentes terceiro-mundistas.

O fato é que neste início de século 21 a integração dos mercados ao redor do mundo  fez com que a riqueza mundial fosse multiplicada em 20 vezes, em relação as últimas quatro décadas, chegando a US$ 43 trilhões, dos quais mais de 15% está sendo produzido pelas principais nações emergentes, que na década de 90 eram responsáveis por cerca de 5% do PIB mundial. A globalização pós-moderna tem propiciado o mais duradouro ciclo de expansão do pós-guerra e alterado as relações de poder ditando as regras do novo jogo social e político, uma vez que a base da produção material foi unificada sob a dinâmica da integração dos mercados e da livre circulação dos fluxos materiais.

Porém é interessante notar que esta nova ordem social ao mesmo tempo que exprime a homogeneização e a interdependência dos acontecimentos, reivindica a singularidade das identidades locais, culturais e políticas, reforçadas pela prosperidade global e pela integração econômica. Nela os  modelos tendem a fugir da fácil classificação sob o ponto de vista ideológico, e permite que sejam assumidas posturas que mesclem características antes identificadas com  máximas como capitalismo, socialismo , democracia, esquerda e direita.

Assim, o principio fundamental do funcionamento da integração global é a livre convivência de   povos,  sistemas de governos e países que fazem parte do jogo, sem a necessidade que seja assumido um modelo padrão, político ou cultural , a ser observado por todos os  agentes. Muito mais importante do que se acostumar a conviver com operadores  globais que possuem acesso a informações instantâneas e detalhadas de diferentes mercados, confortavelmente sentados com suas longas túnicas brancas, nas bolsas de valores do Kuwait ou de Dubai, é a convicção de que "os deslocamentos tectônicos abaixo do leito marinho", fez surgir um novo mundo, por onde circulam aproximadamente US$ 147 trilhões de ativos financeiros,  grande parte deles nas mãos de centenas de milhões de agentes até agora excluídos da "arena global",  não importando se o mesmo é um "capitalista da China comunista", um "democrata russo leninista" ou mesmo um "chavista católico".

O Capital Fictício

Com reservas estimadas em quase 1 bilhão de toneladas de minério de ferro, cujos direitos minerários foram adquiridos por empresa brasileira que possui um projeto de investimento na ordem de US$ 2,3 bilhões, a pacata cidade de Conceição de Mato Dentro tem convivido com uma polêmica, cujo cerne é a discussão acerca do "trade-off" entre  desenvolvimento sustentável e  impacto sócio ambiental gerado pelo desenvolvimento econômico.

A população de cerca de 18 mil habitantes de Conceição de Mato Dentro, localizada no meio da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, uma das reservas de biosfera brasileira reconhecida pela ONU, convive com a exuberância de sua fauna e flora, com a riqueza de seus recursos hídricos e com tradições de  várias comunidades indígenas. Em contrapartida, a sossegada cidade mineira apresenta PIB per capita de R$ 2.770 (o brasileiro está na faixa de R$ 12.000),  ficando em 665 lugar entre 853 municípios mineiros medidos pelo Índice de Desenvolvimento Humano , com seus 0,672 de IDH (o brasileiro chegou a 0,800).

O projeto da mineradora começou a alterar a realidade do município, que  já sente os "efeitos do progresso" no custo do aluguel de seus imóveis, disputados por funcionários da mineradora que começam a chegar à região, e vem produzido máximas como: "Vai haver alguma depredação da natureza, a cidade não será mais tão tranqüila, mas é a contrapartida para o crescimento", ou: "O sossego deve acabar, mas sua caixa registradora vai funcionar mais".

Esta discussão envolve alguns princípios básicos de economia elencados na clássica  teoria de ciclos de negócios (produção real, consumo, nível de preços e investimento) , cercados pelo conceito de sustentabilidade, uma vez que é impossível nos dias atuais se prescindir de uma prática econômica socialmente responsável. Contudo, o ponto que gostaríamos de destacar surge a partir das novas variáveis típicas das "aventuras de um novo mundo" .  O exemplo da pequena cidade mineira, se de um lado ressalta questões relacionadas ao deslocamento das curvas de  demanda e oferta, índice de produtividade do capital e do trabalho, de outro ressalta a lógica especulativa que privilegia o ganho de capital oriundo de uma expectativa de valorização dos ativos no curto prazo, típico do mundo sobremoderno.

Foi a partir desta lógica que o Grupo empresarial responsável pelo projeto da referida mineradora conseguiu "abocanhar" nada menos do que R$ 1,37 bilhão  e R$ 2,1 bilhão em dois dos seus recentes IPO's e pretende "embolsar" a bagatela de R$ 2,1 bilhões através de novas ofertas em andamento, a maioria delas referentes a empresas  em fase pré-operacional, cujos projetos demandam  uma série de desdobramentos, antes de começar a gerar retorno financeiro.

Apelando para uma extrapolação da teoria da "utilidade marginal", podemos avaliar a relação entre novos empreendimentos e  o interesse dos investidores/consumidores que mantem aquecida a procura por novos  ativos de realização futura.  Esta relação pode ser medida pela eficiência da troca entre os grupos (empreendedores/investidores), a partir da dimensão do limite último que determina o valor dos ativos e o grau de satisfação dos agentes investidores. O valor aqui pode ser medido pela expectativa de valorização do ativo no curto prazo e o grau de satisfação pelo desejo de ganho do consumidor/investidor , que se move a partir de  um ponto ótimo de  troca, onde o interesse pelo ativo é despertado e se mantém,  até um limite que determina atratividade última do ativo, a partir do qual o interesse se esvai. O movimento de valorização/desvalorização dentro destes limites determinam a volatilidade do preço dos ativos, desconectados das tradicionais formas de "valuation" que pretendem determinar o seu valor presente.

A sobremodernidade tem assistido a tendência de "financeirização", marca do processo da globalização financeira pós-Breton Woods e que possui como um dos seus principais sustentáculos o "capital fictício", conceito que Marx  esboçava analisar no livro terceiro do Capital. O processo de globalização e integração dos mercados financeiros desconhece fronteiras e prescinde de referências espaciais nas economias nacionais, assumindo a forma de redes articuladas de fluxos financeiros "desterritorializados", que operam initerruptamente e em tempo real. Nos mercados financeiros globais circulam um volume crescente de riqueza monetária de caráter abstrato, financeiro e mesmo fictício.

Podemos entender como capital fictício o conjunto de ativos com diferentes graus de liquidez, denominados em diferentes moedas  e com uma mobilidade crescente, que sob o regime de taxas de câmbio flutuantes engendram oportunidades extraordinárias de ganhos especulativos, após medidas que decretaram o fim do keynesianismo e a prevalência de políticas monetaristas ao redor do mundo, que incentivou a explosão de novos instrumentos financeiros que multiplicaram os ativos financeiros decretando sua autonomia frente a produção. O capital fictício é fruto de promessas de pagamentos futuros, e está representado nos títulos, ações, dívida pública e no crédito em circulação, cujo valor é fictício na medida em que ele pode aumentar ou diminuir de forma independente do capital oriundo da economia real, medido através da geração de riqueza das nações. A natureza do capital fictício é apoiada no comércio do dinheiro e não no nível da produção e do comércio das mercadorias.

E foi com base  no livre comércio do dinheiro que o Grupo empresarial citado no início do texto conseguiu abocanhar R$ 2,1 bilhões no seu mais recente IPO, e que a nova empresa listada na Bovespa alcançou R$ 4 bilhões em valor de mercado, já tendo negociado a totalidade dos contratos de parte de sua produção futura, mas que nem de longe servem para justificar o seu atual valor de mercado.  E é este capital fictício que alimenta as bolhas em seus movimentos especulativos, num mundo em que os ativos em circulação representam 3,5 vezes o volume de riquezas medido pelo PIB mundial.  São estes mesmos ativos que o mundo tem visto "encolher" no balanço dos grandes bancos mundiais, inundados por títulos (promessas de pagamento) securitizados, lastreados em imóveis cujos preços não param de despencar.

Olhando a pequena cidade de Conceição do Mato Dentro e a  expectativa do desenvolvimento econômico que bate à sua porta, o qual supostamente permitiria  a melhora dos seus indicadores de desenvolvimento humano, a única certeza que parece se confirmar é que os ganhos financeiros  dos detentores do direito de exploração de suas reservas minerais já excederam, em muito, os quase R$ 50 milhões de seu modesto PIB.

A Destruição Criativa

“ É verdade que as ciências do homem, com seus esquemas materialistas, evolucionistas, ou mesmo dialéticos, estão em atraso em relação à riqueza e à complexidade das relações causais tal como aparecem em física ou mesmo em biologia. A física e a biologia nos colocam em presença de causalidade às avessas, sem finalidade, mas que não deixam de testemunhar uma ação do futuro sobre o presente, ou do presente sobre o passado: é o caso da onda convergente e do potencial antecipado, que implicam uma inversão do tempo. Mais que os cortes ou ziguezagues, são essas causalidades às avessas que rompem a evolução. Do mesmo modo, no campo de que nos ocupamos, não basta dizer que o Estado neolítico ou mesmo paleolítico, uma vez surgido, reage sobre o mundo circundante dos coletores-caçadores; ele já age antes de aparecer, como o limite atual que essas sociedades primitivas conjuram por sua conta, ou como ponte para o qual elas convergem, mas que não atingiram sem se aniquilarem.” ( Gilles Deleuze - Mil Platôs, Vol. 5, p.120)

A idéia acerca da destruição criativa não é nova em economia. Contudo, o conceito ganhou uma nova projeção mundial no mundo pós-moderno após Alan Greenspan,  ex-presidente do FED, passar a assumir por ela,  publicamente, sua simpatia,  assim como pelo economista que a concebeu.  Joseph Schumpeter (1883-1950), em suas análises teóricas sobre os ciclos econômicos,  levanta questões que parecem ter exercido certo fascínio sobre o ex- Chairman, sobretudo aquelas vinculadas aos conceitos de estabilidade e permanência confrontados com os processos de mudança, que carregam em si o germe da alteridade e da transitoriedade.

No início do ano de 1931, em meio a grande depressão econômica que se abateu sobre o mundo ocidental,  a partir do crash de 1929 em Wall Street, Schumpeter proferiu uma série de conferências na Universidade de Tóquio, que foram compilados em três artigos, um deles denominado: The Theory of the Business Cycle.

Em seus trabalhos ao longo de sua vida acadêmica,  o economista nascido no antigo império Austro-Húngaro procurou descrever os movimentos do modo de produção capitalista, ressaltando a importância do progresso técnico na dinâmica do desenvolvimento econômico.  Para ele, no capitalismo,  esta dinâmica estaria orientada a partir de séries que evoluem em ciclos de equilíbrio, inovações, instabilidade e rupturas, refletindo períodos de prosperidade e depressão onde os eventos se conectam e a alternância entre as fases seriam fenômenos estruturais do próprio ciclo. Contudo, para Schumpeter o progresso econômico se dá através de ondas que coexistem em diferentes níveis de flutuação que ao convergirem para um mesmo ponto geram grandes picos ou grandes desacelerações.

O ponto central da análise schumpeteriana reside na mudança qualitativa que determinadas alterações trazem para a vida econômica, ao ponto de provocarem uma ruptura no equilíbrio de um determinado fluxo, produzindo mudanças no rumo dos acontecimento que levam a economia a um novo estágio. Assim, a evolução econômica se caracterizaria por rupturas e descontinuidades com a situação vigente , a partir da introdução de novidades na maneira do sistema funcionar. As mudanças, desta forma, se originariam na maneira distinta de combinar materiais e forças. Os recursos já estariam disponíveis na sociedade, estando empregados em atividades já consolidadas num fluxo circular de equilíbrio. São as novas maneiras de combiná-los, juntamente como novas tecnologias, retirando-os dos locais onde se acham empregados e alocando-os em novas atividades, que vão produzir, então, o que Schumpeter chamou  desenvolvimento econômico.

Na idéia de Schumpter o motor do desenvolvimento econômico age através da substituição de maneiras obsoletas de se combinar os recursos por novos arranjos que se apóiam em novas tecnologias que surgem a partir da destruição do equilíbrio circular de um antigo modelo.  Assim, por  destruição criativa se entenderia o  processo de sucateamento das velhas tecnologias e das velhas maneiras de fazer as coisas para que se possa ceder o espaço ao novo, com vistas a se atingir o desenvolvimento econômico.

A sobremodernidade assiste um processo de alteração nos modelos consagrados de se pensar e fazer. Assim, a luz do conceito de destruição criativa,  a pergunta que se sugere é: Quais foram as novidades  inseridas no funcionamento do modelo econômico sobremoderno e em que tecnologia elas estão apoiadas?

O Sociólogo polonês Zygmund Bauman em suas  abordagens sobre as  novas condições da vida social, política e econômica  na modernidade, cunhou um conceito que passou a refletir os novos aspectos da vida humana na sociedade sobremoderna. Este novo momento se afirmaria  a partir do maior dinamismo e maior velocidade das trocas entre os agentes, num processo de integração global com grandes consequências para a experiência individual humana e sua história conjunta. Assim, o principal fundamento do  pensamento de Bauman se apóia numa das características físicas dos líquidos e gases: a fluidez.

O que mais nos desperta a atenção no todo da argumentação baumaniana é sua tentativa de caracterizar o novo estágio da civilização moderna através de metáforas sempre ligadas aos principais princípios da fluidez. Daí a sua abordagem ter desembocado em obras com títulos sugestivos como: Modernidade Líquida,  Amor Líquido,  Vida Líquida e Medo Líquido.

Na base da idéia de fluidez encontra-se a idéia de mobilidade, que segundo Bauman, facilita a alteração da forma dos líquidos diferentemente dos sólidos, que " fixam o espaço e prendem o tempo".

" Os fluidos se movem facilmente. Eles fluem, escorrem, esvaem-se, respingam, transbordam, vazam, inundam, borrifam, pingam; são filtrados, destilados; diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos - contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho." ( Modernidade Líquida - Jorge Zahar Editor, p.8)

Aproveitando a idéia de fluidez e de como a sobremodernidade se fundamenta, a partir de relações caracterizadas pela impermanência, transitoriedade e liquefação dos vínculos, nos permitimos propor uma análise que se apóie nestas características, a partir de uma conseqüência econômica deste novos estados de coisas, em linha ao conceito schumpeteriano de destruição criativa, a saber: a desregulamentação do capital financeiro e a base tecnológica das novas conexões globais que viabilizam as instantaneidades das trocas, num novo estágio do desenvolvimento econômico.

É a liquefação dos velhos vínculos que permite que os dados sejam reunidos e reclassificados a todo tempo, dada a velocidade, fluidez e alternância de suas naturezas, que não assumem uma forma fixa nem estável. Assim, o escopo das análises que objetivam descrever esta nova ordem global, deve ser tomado na perspectiva de se seguir o fluxo dos acontecimentos, através da formação de conceitos que se flexionem e se torçam a partir dos choques dos acontecimentos que se cruzam no meio da trama social.

Por isso, é comum chegarmos a possíveis paradoxos, que no miminho levam a constatações de que "o mundo está esquisito" (O Globo - Caderno de Economia - Panorama econômico, Míriam Leitão, 09/03/08).  O que se verifica na última sequência dos acontecimentos, vem reforçando análises que  continuam defendendo um descolamento entre as demais economias mundiais e a economia norte-americana. A  atual crise recessiva que se configura nos EUA frente a manutenção de um crescimento acelerado de países ao redor do globo,  mesmo diante de um cenário de forte globalização dos conteúdos mundiais, sugere que a economia internacional já não é a mesma dos últimos 20 anos. Assim as análises devem estar sensíveis a esta nova realidade.

O WEO (World Economic Outlook) do FMI, publicado em abr/2007 , intitulado Spillovers and Cycles in the Global Economy,  já considerava que no atual estágio da economia mundial, onde  o câmbio flutuante,  a desregulamentação dos fluxos financeiros e do fluxo de mão de obra, juntamente com as inovações das tecnologias de comunicação, que permitem a  ágil realocação de recursos através do livre fluxo de capital, seriam os principais "spillovers" para a manutenção da forte performance da economia global, a despeito da crise de crédito e da desaceleração na economia americana.

Talvez seja  errôneo se pensar num paradoxo quando se colocam juntos a constatação do atual  processo de globalização e a idéias que defendem o descolamento dos EUA. As análises deveriam reformular seus postulados para que expressões como do Ministro da Fazenda Guido Mântega de que "a crise do subprime não chegou à praia de Copacabana", pudessem  refletir, de fato, os novos arranjos do atual modelo econômico mundial. Diferentemente do que se acreditava, os espirros dos EUA já não gripam tanto assim.

As Tramas da Nova Rede Global

"O Mundo está em crise; a sua maior economia, numa recessão. Como é possível, num quadro assim, os preços subirem?

- Nós analistas, estamos diante de um desafio maior agora. O Brasil nunca esteve tão ligado ao mundo, mas ao mesmo tempo, nunca esteve tão preparado para uma crise; mas o mundo mudou muito. Fazer análises e previsões agora é mais difícil.

 Como diz José Roberto (Mendonça de Barros), nada é simples como foi no passado. É cada dia mais desafiador entender o que está se passando no mundo e suas conexões entre as economias." (Panorama Econômico - Míriam Leitão, O Globo, Edição de 02/04/2008)

A atual crise da economia norte-americana, em contraste com a pujança e vitalidade das economias de alguns países emergentes, tem levantado uma discussão que  aponta para uma aparente contradição.  Diversos analistas têm tentado avaliar até que ponto se poderia afirmar que haveria espaço para se supor um possível descolamento que imunizasse as demais economias mundiais dos efeitos da atual turbulência enfrentada pelos Estados Unidos.

Num mundo amplamente conectado através do aprofundamento do processo de globalização, haveria de se supor a impossibilidade de um descolamento dos eventos, o que limitaria a discussão a se tentar prever quanto tempo seria necessário para que uma recessão na maior economia do planeta  contagiasse os demais agentes globais.

Esta avaliação reforça a  idéia de uma contradição entre  os fenômenos da globalização e do  descolamento. Contudo, este paradoxo  poderia ser superado se considerássemos válida a seguinte premissa:

As conexões globais da sobremodernidade se dão em forma de rede.

A noção de rede permite escapar à aparente oposição entre o local e o global  e nos fazem concluir ser possível evitar uma crise sistêmica de proporção global, mesmo estando em crise  a principal economia do globo.

O ponto de partida desta análise deve residir, ele mesmo, na diferenciação entre os conceitos de sistema e de rede, e seu impacto no atual processo de globalização econômica mundial.

Os sistemas são concebidos como  agregados mecanicistas de partes, em relações causais separadas umas das outras, o que resulta em uma concepção de causalidade linear unidirecional.  Já a noção de rede designa uma estrutura de interconexão  onde os elementos em interação formam um conjunto instável, ligados entre si, mas onde o fluxo dos conteúdos não apresenta a seqüência linear de um sistema.

Ao invés de um desenvolvimento linear, as conexões da sobremodernidade devem ser entendidas numa perspectiva de um horizonte móvel e numa lógica errática de giros e curvas abruptas em lugar de uma racionalidade  que aponta para causas de  efeitos lineares e predeterminados. A multiplicidade de variáveis, arranjos, combinações, efeitos de sentido e de dimensões aleatórias que proliferam no processo de globalização sobremoderno,  apontam para eventos que, apesar de conectados, mantêm uma certa independência  entre si. 

Este aparente quiasma entre a interconexão e a independência dos eventos pode ser explicado se nos detivermos, em  pelo menos duas das principais características do funcionamento de uma rede.

A  primeira delas é a da multiplicação da quantidade de conexões;  o sem número de possibilidades que se abrem a partir da quantidade de bifurcações encontradas pelo movimento dos conteúdos em uma rede.  Ela é capaz de imunizar o efeito das ações causais durante o fluxo dos conteúdos, isolando elementos e evidenciando a autonomia de diferentes movimentos. A possibilidade de modificação contínua das linhas conectadas de uma rede imprime novas direções, condicionando, sem contudo determinar, conexões futuras.

Para ilustrar este princípio basta imaginar o processo de pesquisa em um site de busca na internet. Muitas vezes o conteúdo original de uma busca deriva, indefinidamente, a partir da quantidade de possibilidades apontadas, ao ponto do resultado final estar completamente desconectado do primeiro elemento.

A segunda característica do funcionamento de uma rede é o multipertencimento das conexões e da origem e destino dos fluxos; qualquer ponto de uma rede pode ser conectado a qualquer outro, e deve sê-lo. Diferente de um sistema centrado, no qual existe um ponto fixo a partir do qual todas as relações se realizam, o funcionamento de uma rede pressupõe conexões  movendo-se para todos os lados e direções, que não obedecem uma ordem hierárquica ou de filiação.

Ao entendermos, pelo menos, estas duas características do funcionamento da nova rede global, não fica difícil perceber que não existe contradição entre o local e o global,  interconexão e  descolamento. Basta fazer um esforço para perceber que o grau de correlação entre os eventos da sobremodernidade está definitivamente afetado por este novo modelo, onde entre dois eventos relacionados multiplicam-se uma série de movimentos e bifurcações que praticamente os isola ou individualizam.

Assim, manchetes como: "UBS registra baixa de US$ 19 bi no trimestre, mas bolsas têm alta de 3%", são cada vez mais comuns e nos fazem crer que o descolamento dos eventos ou mesmo de economias, não só é uma possibilidade, mas sim uma característica da nova ordem global.

Diagnósticos e Prognósticos da Crise

16/09/08

Mais de US$ 16 trilhões foram apagados dos ativos globais neste ano, enquanto a maior elevação no número de inadimplência de créditos hipotecários nas últimas três décadas provocou US$ 514 bilhões de perdas e prejuízos.

Se pudéssemos resumir o diagnóstico sobre o que está acontecendo na economia americana, diríamos que ela está sofrendo a conseqüência de um longo período de aparente estabilidade e crescimento, que provocou um otimismo excessivo do mercado financeiro e de capitais, agentes financeiros e investidores, aliada a uma política monetária frouxa, particularmente a de manutenção de juros inferiores a 2% a.a, entre dezembro de 2001 e novembro de 2004, que provocou a enxurrada de liquidez que vemos evaporar rapidamente dos balanços ao redor do globo.

E caso tentássemos, sinteticamente, prever os movimentos futuros deste, hoje, mundo globalizado, frente à profunda crise na maior economia do planeta, diríamos que ao invés de uma crise sistêmica que leve o mundo a uma profunda depressão e estagnação, iremos assistir a um forte ajuste de mais um ciclo econômico que ainda não se fechou, e onde o redimensionamento de uma exagerada alavancagem se fazia necessário.

Partamos às justificativas: como a economia mundial deverá conseguir se livrar de mais esta crise que vem tirando o sono de uma parcela cada vez maior de agentes, que parecem se estarrecer a cada novo movimento do mercado, sem que uma crise sistêmica se espalhe por toda a economia global?

Primeiramente, surge a constatação que o fluxo do capital volátil não mais obedece ao antigo centro gravitacional entre centro e periferia. Cada vez mais circulante e distribuído em rede, ele é fruto, em grande parte, do desenvolvimento econômico de países localizados na, outrora, periferia econômica, mas que hoje já podem ser considerados, em grande parte, como garantidores da liquidez global, a partir do fortalecimento de sua economia, mercados e de seus sistemas bancários, antes tão vulneráveis a perturbações da espécie, capaz de fazer desmoronar seus arranjos financeiros domésticos e externos. A grande acumulação das reservas destes países e o superávit de suas contas externas, face ao significativo fluxo de investimentos diretos de longo prazo, vêm tornando-os, cada vez mais, fundamentais para a blindagem de uma contaminação sistêmica da desaceleração das economias, antes ditas centrais, enquanto durar o ajuste nos portfólios dos agentes da crise.

Aliando a boa saúde dos emergentes, verificamos a coordenada ação das autoridades monetárias centrais, em sua função de emprestadores de última instância. Dispostos a continuar garantindo a oferta monetária em tempos de crise, mesmo que se para garantir a liquidez de suas economias fosse necessário “derramar dinheiro de helicópteros”, as autoridades centrais assumiram tal responsabilidade, ao custo do sacrifício, no curto prazo, de acionistas e contribuintes, frente a um “bem maior” de médio prazo.

Então, que sejam bem vindos os ajustes, e as revisões da exacerbada confiança nas práticas de “laissez-faire”, na perspectiva de retomada do maior ciclo de crescimento global já verificado na recente história da desregulamentação “pós-brettonwoodiana”, ficando, no fim, tanto os anéis quantos os dedos.

A Sacralização do Volátil

O sociólogo polonês Zygmund Bauman em suas  abordagens sobre as  novas condições da vida social, política e econômica  na modernidade, cunhou um conceito que passou a refletir os novos aspectos da vida humana em sociedade. Este novo momento se afirmaria  a partir do maior dinamismo e maior velocidade das trocas entre os agentes, num processo de integração global, com grandes consequências para a experiência individual humana e sua história conjunta.

Assim, uma análise preliminar é capaz de revelar que o principal fundamento do  pensamento de Bauman se apóia numa das características físicas dos líquidos e gases: a fluidez.

O que mais nos desperta a atenção no todo da argumentação baumaniana é sua tentativa de caracterizar o novo estágio da civilização moderna, através de metáforas sempre ligadas aos principais princípios da fluidez. Daí a sua abordagem ter desembocado em obras com títulos sugestivos como: Modernidade Líquida,  Amor Líquido,  Vida Líquida e Medo Líquido.

Na base da idéia de fluidez encontra-se a idéia de mobilidade, que segundo Bauman, facilita a alteração da forma dos líquidos diferentemente dos sólidos, que "fixam o espaço e prendem o tempo".

" Os fluidos se movem facilmente. Eles fluem, escorrem, esvaem-se, respingam, transbordam, vazam, inundam, borrifam, pingam; são filtrados, destilados; diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos - contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho."  ( Modernidade Líquida - Jorge Zahar Editor, p.8)

Aproveitando a idéia de fluidez e de como a sobremodernidade se   fundamenta a  partir de  relações caracterizadas pela impermanência , transitoriedade e  liquefação dos vínculos, poderíamos ousar afirmar que o ponto alto da sociedade sobremoderna seria a  "sacralização do volátil".

Segundo Luiz Carlos Fridman (professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFRJ) a precariedade, vulnerabilidade, instabilidade e incerteza cercam a condição humana nesse estágio da modernidade avançada (vide o Pensador da sociedade desengajada -  Caderno Prosa & Verso da edição de o Globo de 23/02/08).  A instabilidade e alternância seriam as principais características nessa era , onde prevalecem " a fuga, a astúcia, o desvio e a evitação, a efetiva rejeição de qualquer confinamento territorial, com os complicados corolários de construção e manutenção da ordem" (Modernidade Líquida - Jorge Zahar editor, p.18).  Na modernidade líquida não existem mais territórios fixos. Por se moverem à velocidade do sinal eletrônico, todos estão em todo lugar e em lugar nenhum.

Partamos, então, para definir o espírito da época sobremoderna, mesmo que esta expressão seja marcada por contornos essencialistas, e o uso tão caro aos nascidos numa geração de ruptura e de descontinuidade.  Desta forma, mesmo correndo o risco de uma errônea interpretação,  a expressão "espírito de uma época"  é a que melhor se adequa  para ilustrar a forma como as pessoas se comportam num determinado estágio da sociedade humana.

Como uma tendência coletiva de pensamento e ação, o espírito da sobremodernidade não se apresenta como tentativa de retorno a um passado idealizado, alimentado pela nostalgia de uma harmonia que nunca existiu, nem como um instrumento para transformar o presente num futuro recheado de esperanças, mas numa postura que assume o transitório e o impermanente como uma própria religião. A sociedade do sec XXI sacralizou a volatilidade, e esta  passou a alimentar o processo das trocas e dos fluxos sobremodernos, como motor que conduz e sustenta o próprio movimento da trama social e dos seus agentes.

A sobremodernidade convive com o desencantamento do mundo e com o consequente desaparecimento dos heróis, vilões, mártires e algozes que retroalimentavam os projetos de futuro. Na instantaneidade das relações, o espírito sobremoderno aponta para a casualidade dos encontros e convive sem constrangimento com o verdadeiro, a todo tempo, tornando-se falso em plebiscito, numa velocidade surpreendente. Cada plebiscito seria o resultado de um tratamento dos fatos e as questões a partir dos diversos novos elementos que compõem a abordagem, conectados e imbricados na teias da trama social, permitindo-nos substituí-los e seguir em frente quase que instantaneamente.

Porém, o ponto fundamental para a "Sacralização do Volátil" é a  falta da obrigatoriedade de coerência com qualquer projeto de mundo, quer seja ele de direita ou de esquerda, alinhado ou revolucionário, a favor ou contra o status-quo. É estar em todos os lugares e , simultaneamente, em lugar nenhum, sem o embasamento de grupos de referências.  Não existe um compromisso de construção de uma ordem nova e melhor, em substituição de uma velha ordem defeituosa. A tarefa se limita a garantir o contínuo movimento universal, onde os conteúdos  são reunidos e reclassificados a todo o tempo, dada a velocidade, fluidez e alternância da  natureza de seu fluxo, que não assume um forma fixa nem estável.

Assim, com a " Sacralização do Volátil" o escopo do movimento é tomado na   perspectiva de garantir o fluxo dos acontecimentos, através da construção de conteúdos que se flexionem e se torçam a partir dos seus encontros e dos acontecimentos que se cruzam e se chocam no meio da trama social.

" A crise de um espaço substancial, homogêneo, herdado da geometria grega arcaica, em proveito de um espaço acidental, heterogêneo, onde as partes, as frações, se tornam essenciais, atomização, desintegração de figuras, marcas visíveis que favorecem todas as transmigrações..." (Paul Virilio - O espaço crítico)

 

 

 

1929 - Um desastre muito mais que monetário - Parte I

"Uma Alice confusa e um tanto desconfiada fez à liderança republicana algumas perguntas simples:

- A impressão e venda de mais ações e títulos, a construção de novas fábricas e o aumento da eficiência não produziriam mais mercadorias do que poderíamos comprar?

- Não - gritou Humpty Dumpty. - Quanto mais produzirmos, mais poderemos comprar.

- E se produzirmos em excesso?

- Veja, poderemos vender para os estrangeiros.

- Como os estrangeiros pagariam por eles?

- Nós emprestaremos dinheiro.

Entendo - disse a pequena Alice. - Eles vão comprar o nosso excedente com o nosso dinheiro? Claro, os estrangeiros irão nos pagar de volta com a venda dos produtos deles.

- Ah, de forma alguma - disse Humpty Dumpty. - Nós construiremos um muro alto chamado tarifa.

- E - disse por fim Alice - como os estrangeiros irão nos devolver esses empréstimos?

- Isso é fácil - disse Humpty Dumpty. - Você já ouviu falar em moratória?

E assim, meus amigos, chegamos ao coração da fórmula mágica de 1928."(O Capitalismo Global - História econômica e política do século XX - Jeffry A. Frieden)

Se hoje já seria lugar comum não considerar sustentável   supor que a causa  da  "Depressão" de 1929  repousaria, isoladamente,  num único fator, seria de muita utilidade para os analistas da crise das hipotecas americanas um aprofundamento na compreensão do cenário econômico mundial na década de 1920, bem como da estrutura do seu sistema monetário, no intuito de se demarcar as diferenças entre os contextos de ambas as crises: a de 1929 e a de 2007.

A despeito das crises experimentadas no seu decorrer, o período de 1871 a 1913 pode ser considerado como um marco na perspectiva de uma integração econômica global.

Sem grandes conflitos geopolíticos entre as grandes potências mundiais, dentre as quais a Grã-Bretanha destacava-se pela hegemonia de sua economia, o  fluxo comercial liberalizado permitia a integração dos mercados mundiais.  Aliado a novas tecnologias que abria espaço para um mercado verdadeiramente internacional e com um padrão monetário baseado no ouro, as autoridades monetárias se comprometiam com a manutenção da conversibilidade, através de uma intensa cooperação internacional. Os mercados mundiais de produtos e capitais estavam ligados mais fortemente do que nunca, neste interlúdio de excepcional estabilidade econômica.

" O padrão ouro, o livre comércio e os novos meios de transporte criaram um mercado global conveniente, acessível e previsível ". (O Capitalismo Global )

Contudo, esta nova ordem global convivia com constantes ameaças. O livre comércio propiciava a invasão de produtos agrícolas baratos no "Novo Mundo", derrubando os preços e devastando muitas áreas rurais do "Velho Mundo".  As novas tecnologias, se por um lado aumentavam a renda agregada, por outro, desempregavam milhões de trabalhadores. Além disso, o crescimento econômico se dava em velocidades diferentes, o que gerava abismos tecnológicos e industrias entre nações pobres e ricas.  Apesar do mundo estar experimentando sua maior revolução econômica, a maior parte dele continuava "opressivamente pobre".

Por volta da virada do século, a hegemonia da economia britânica estava ameaçada pelo ritmo mais acelerado do crescimento e do desenvolvimento financeiro em outros países do Globo. O EUA, embora ainda com um perfil acentuadamente agrícola, já figurava como a maior economia mundial e juntamente com outras potências mundiais engajaram-se numa batalha comercial, cuja proteção de seus mercados domésticos era fundamental, questionando, assim, o livre comércio, que foi o motor do crescimento da Grã-Bretanha. Além disso, foi na última década do período que  iniciou-se  uma nova rodada de expansões coloniais na busca por novos mercados, despertando atritos "adormecidos" e embalados pela "Pax Britânica", minando a solidariedade na qual a cooperação financeira se baseara até então.

O conflito de interesses entre as grandes potências mundiais e as tensões geopolíticas, naquele ponto generalizadas , culminaram na Primeira Guerra Mundial, em 1914. Quando a guerra terminou, em 1918, dentre suas conseqüências destacaríamos duas delas, que seriam determinantes para o curso da economia global, até os eventos que iriam desembocar na grande depressão de 1929: a falência do padrão ouro juntamente com o afrouxamento da solidariedade entre as nações, que garantia, em última instância o seu sucesso e a posição hegemônica dos Estados Unidos como exportador de capital e líder da reconstrução da ordem mundial, cuja política internacional e diplomacia econômica em muito se afastava da Grã-Bretanha dos "clássicos anos dourados".

Após a guerra, dentre todas as moedas importantes, apenas o dólar manteve sua conversibilidade em ouro. A guerra minou, dramaticamente, a capacidade dos governos em relação à conversibilidade de suas moedas domésticas. Os Estados Unidos chegavam ao fim da guerra com suas reservas abarrotadas de ouro, num momento em que o mundo se via em meio a um processo hiperinflacionário generalizado. Uma política deflacionária e a respectiva manutenção de um câmbio desvalorizado garantiria às nações o restabelecimento da conversibilidade em ouro de suas moedas. Assim, o padrão ouro retornou ao mundo da década de 1920, contudo, mostrava-se insatisfatório em sua missão de equilibrar  os balanços de pagamento das nações e o volume das reservas mundiais. Com  um desequilíbrio do volume das reservas entre os diversos países, muitos deles  experimentaram uma profunda contração dos meios de pagamento dos seus bancos centrais e uma grande dificuldade de equilibrar suas contas externas. Assim, qualquer perturbação no sistema fazia com que o capital financeiro, que nos "clássicos anos dourados" fluíra em direções estabilizadoras, empreendesse grandes fugas, o que transformava qualquer perturbação limitada numa crise econômica e política.

E foi neste ambiente que irrompeu o hiperaquecimento das atividades econômicas internacionais, no período de 1925 a 1929, alimentado pelo capital e pelos mercados norte-americanos. Nesta altura, Wall Street  já tinha substituído Londres como o centro financeiro internacional e as empresas norte-americanas inundavam o mundo com milhares de filiais. "O centro financeiro do mundo, que precisou de milhares de anos para viajar do Eufrates ao Tâmisa e ao Sena, passou por Hudson entre a alvorada e o anoitecer"(America's Stake in International Investments - Cleona Lews). Com os Estados Unidos no centro, o mundo assistia a um novo boom que redundou em um forte crescimento ao redor do globo. Economias se modernizaram, a classe média crescia, trabalhadores organizados se tornavam politicamente mais influentes e regimes democráticos se estabilizavam. Contudo, a nova ordem mundial carecia de um regente confiável e de uma orquestra harmoniosa.

Num mundo cindido pela lembrança das trincheiras, o novo regente claudicava entre o apoio a livre exposição à economia mundial dos emprestadores de Wall Street e o protecionismo da cúpula de seus líderes econômicos.  Enquanto o novo regente da economia mundial atingia a impressionante marca de 45% do estoque mundial de ouro em suas reservas, em 1926, os demais países alternavam-se em severas crises de pagamento, que exigiam de seus bancos centrais  um aperto monetário na defesa de suas reservas cada vez mais precárias. Contudo, a fartura de liquidez alimentada pelo forte crescimento da economia norte-americana, que muito incentivou o "boom" dos últimos anos ao redor do mundo, seria um dos fatores da crise que estava por vir.

Com seu balanço de pagamentos fortalecido, os Estados Unidos exportavam cada vez mais capital, que iria financiar o déficit em conta corrente dos demais países. As altas taxas de retorno, geradas pela escassez de capital ao redor do globo, faziam com que o capital norte-americano fluísse, cada vez de forma mais intensa, através do Atlântico. Os bônus denominados em dólares no final da década de 1920, em nome de governos e empresas estrangeiras, haviam quintuplicado, tornando o mundo cada vez mais dependente da importação do capital dos Estados Unidos. Contudo, o superávit  norte-americano alimentava também o crescimento explosivo de Wall Street.  Ao longo de 1927, a partir da preocupação de que os recursos produtivos estivessem sendo desviados para o mercado acionário, que vinha crescendo de forma ininterrupta, e frente ao temor provocado pelo crescimento maior dos estoques de moeda e crédito do que o das suas reservas de ouro, o FED elevou suas taxas de juros. Esta medida teve a imediata consequência de atrair "de volta para casa" o capital dos Estados Unidos, que naquela altura, financiava o resto do mundo, um duro golpe sentido pelos países que muito dependiam das importações de capital norte-americano. O aumento dos juros também comprometia a credibilidade financeira dos países fortemente endividados, aumentado o custo de suas dívidas.

Na segunda metade do ano de 1928 ,os empréstimos norte-americanos ao exterior caíram a quase zero. Com a interrupção do fluxo de capital para os países deles dependentes, começou a queda de sua demanda ,com a consequência queda do preços dos bens por eles produzidos. O aperto monetário do governo dos Estados Unidos já podia ser sentido no início de 1929,  não só pela queda no preço das ações, mas também com a desaceleração de sua produção industrial e na queda do preço das commodities norte-americanas.  Com a restrição do fluxo de capitais norte-americanos para os países em desenvolvimento, sobravam para os mesmos duas opções: usar suas receitas remanescentes em moeda estrangeira, para continuar honrando o serviço de suas obrigações externas, ou poupar as reservas de seus bancos centrais e defender a conversibilidade de suas moedas.

Assim, os países da periferia optaram por modificar as regras de conversibilidade e permitiram a desvalorização de suas moedas no segundo semestre de 1929 e na primeira metade de 1930, o que representou um significativo dano ao sistema monetário internacional, comprometendo a estabilidade nos países centrais, que nesta altura, já experimentavam o colapso de sua atividade industrial. Logo os agentes do novo padrão ouro perceberam que este não mais funcionava como na "era dourada". Já não era mais possível confirmar nos fluxos de capital estabilizadores, que no passado, haviam financiado os déficits em conta corrente dos países industrializados.

Com a queda dos preços nos mercados periféricos, ficou mais difícil para os tomadores de empréstimos junto ao sistema bancário, honrar seus compromissos, e os bancos credores, por sua vez, ficaram hesitantes em relação a rolar os empréstimos ou conceder novos financiamentos. Esta restrição no crédito reduziu o ritmo da atividade econômica e as perspectivas das empresas em concretizar seus projetos de crescimento.  Os Bancos centrais, por sua vez, desencorajados de intervir em benefício do sistema bancário em virtude da prioridade que atribuíam ao cambio fixo, associado ao padrão ouro, evitaram uma injeção de liquidez que pudesse permitir uma desvalorização da moeda, pois esta poderia acirrar o clima de desconfiança, que vinha provocando um resgate em massa de depósitos, uma vez que os investidores procuravam evitar as perdas de capital decorrentes da desvalorização. Neste cenário a intervenção dos bancos centrais torna-se-ia uma tarefa das mais difíceis, uma vez que corriam o risco de serem contraproducentes. A depressão era, então, inevitável.

O Pensamento Como Dissolução da Natureza

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" Eu vejo este significado claramente presente na terrível trindade que forma o destino de Édipo: o homem que resolve o enigma da natureza - da dupla natureza da Esfinge - deve também, como assassino de seu pai e amante de sua mãe, transgredir o sagrado código da natureza. De fato, o que o mito parece nos sussurrar é que esta sabedoria, a dionisíaca sabedoria em particular, é um abominável crime contra a natureza; qualquer um que, através de seu conhecimento, lança a natureza no abismo da destruição, deve ele mesmo experimentar a dissolução da natureza. " ( Friedrich Nietzsche - O Nascimento da Tragédia)

Cláudio Ulpiano, em uma de suas aulas (www.claudioulpiano.org) cita a descrição feita pelo músico Olivier Messiaen (www.oliviermessiaen.org)  a respeito do canto do Tordo. O Tordo seria  um pássaro o qual,  segundo Messiaen,  alternaria três tipos de canto. Dois deles, estariam a serviço da espécie e,  portanto, da natureza e dos corpos orgânicos: o canto do acasalamento, que visa atrair a fêmea  e o canto do perigo, que tem como objetivo alertar os demais membros da espécie acerca da presença de um predador.

O terceiro canto do Tordo, seria um canto desvinculado de qualquer função orgânica ou serviço à natureza. Seria o canto que surge a partir do alvorecer ou do crepúsculo. Um canto gratuito, sem objetivo, significado ou função, mas que é uma reação pura a uma essência que vem ao  encontro ao corpo do pássaro que canta: a essência do entardecer ou da aurora.

Cabe aqui colocar uma distinção fundamental para que possamos avançar em nossa articulação, que seria as diferentes visões sobre a essência das coisas, ou melhor, os diferentes sentidos sobre a idéia de essência.

Diferente da concepção platônica-aristotélica de essência, que apela para o significado e, portanto,  para a lógica, a idéia  com a qual gostaríamos de trabalhar é a  de essência enquanto potência. Potência como conjunto de forças próprias que sustentam os corpos, e nos permite reconhecer estes corpos mesmo quando eles estejam em arranjos ou composições diferentes. O significado, a partir desta visão, não residiria, portanto,  nas coisas ou suas essências em si, mas sim, no encontro das potências e em suas diferentes composições. Assim o significado seria o efeito do encontro dos corpos, suas forças e potências , sendo, portanto, secundário e não originário.

O significado do terceiro canto do Tordo surge, diferentemente, da função orgânica dos outros dois que estariam a serviço da sua natureza. O significado do terceiro canto surge a partir do encontro do corpo do Tordo e do corpo da alvorada, encontro entre as potências do canto do pássaro e as forças da natureza. Encontro de potências;  cores, ritmos, tons, melodia, temperaturas e pulsões. Libertando-se deste serviço, este canto aponta para a ultrapassagem da natureza e de seus códigos, dissolvendo-a em um sentido ou significado do devir e do agenciamento dos conteúdos.

E é neste ponto que reside o grande enigma da natureza humana. Compartilhando condições com os demais corpos que habitam o cosmos, o homem surge como uma potência que subverte os códigos da natureza comuns às demais potências, lançando a natureza no abismo da destruição, uma vez que ao extrair significados das coisas e dos corpos, ele ultrapassa as essências e fixa-se no sentido do acontecimento. Desta forma,  ao procurar os sentidos  e significados das coisas, podemos concluir que os mesmos não existem no mundo,  mas no interior do homem que ultrapassa a simples experiência física do encontro das forças dos corpos, que se dá no presente,  retroagindo-a ao passado e projetando-a para o futuro, a partir do significado de um acontecimento, liberando uma dimensão de tempo que o mundo dos corpos ou a natureza das coisas não tinha liberado até então.

Os significados localizados fora das coisas e dos corpos  " não tomam  absolutamente o lugar do sujeito, mas destituem todo sujeito em proveito de um agenciamento do tipo hecceidade, que abriga ou libera o acontecimento naquilo que ele tem de não formado, e de não efetuável por pessoas algo lhes acontece que eles não o podem restituir a não ser destituindo-se de seu poder de dizer eu ... As cadeias de expressão que ele articula são aquelas cujos conteúdos podem ser agenciados em função de um máximo de ocorrências e devires" (Gilles Deleuze - Mil Platôs)

Assim, deslocado das potências das coisas para os agenciamentos dos conteúdos, o significado lança os corpos e as forças da  natureza no abismo da destruição significante, de onde somente o acontecimento poderá resgatá-los. O acontecimento como efeito da experiência do encontro dos corpos e suas potências, que sempre se dá na dimensão presente, abre a possibilidade de ultrapassagem desta experiência, trazendo novas  dimensões de tempo que vem pousar não sobre corpo, mas sobre espírito humano, através do seu pensamento. É somente através do acontecimento, onde a conjugação dos corpos cria os significados, que o pensamento retém o passado e antecipa o futuro, ultrapassando, desta forma,  a natureza.

E não há expressão melhor que defina esta ultrapassagem do que uma com a qual  Nietzsche nos brindou em sua comparação das duas divindades da arte   que foram reconciliadas na tragédia grega:  Apolo, o deus das forças  plásticas e Dionísio, o deus das invisibilidades musicais.

"Nos ditirambos dionisíacos as faculdades simbólicas dos homens são elevadas a sua suprema intensidade: um sentimento nunca antes experimentado está lutando para exprimir-se - a destruição do véu de Maya, unidade como a força da forma e da natureza em si. A essência da natureza foi agora encontrar uma expressão simbólica. Um novo mundo de símbolos era requerido, o conjunto do simbolismo do corpo, não somente o simbolismo da boca, dos olhos, da palavra, mas o movimento rítmico de todos os órgãos do corpo no completo gesto da dança. Então, todas as outras forças simbólicas, as forças da música - ritmo, dinâmica e harmonia - encontrariam,  de repente, expressões impetuosas. Com o objetivo de atingir a liberação de todas as forças simbólicas, o homem pode já ter alcançado o ápice da auto-negação, que procura a expressão simbólica destas forças... Com que surpresa a Grécia Apolínea  o deve ter olhado! E esta surpresa teria sido intensificada pela sua combinação com o terror, no fim nem tão estranho a ele (homem), que sua consciência Apolínea sozinha, como um véu, escondeu este mundo Dionisíaco de sua vista ". ( Friedrich Nietzsche - O Nascimento da Tragédia).

O ápice da auto-negação humana se processa a partir da negação de uma essência corporal enquanto potência a serviço da natureza, do corpo que serve às forças da natureza e aos seus códigos. Esta negação libera um outro corpo  como expressão simbólica que é o corpo estético ou, como foi chamado por Artaud, o corpo sem órgãos. Um corpo que produz, a exemplo do terceiro tipo do canto do Tordo, um movimento rítmico, sempre que se encontra com as expressões impetuosas das forças da natureza. Estas, então, passam a funcionar como uma paisagem melódica para este personagem rítmico que é o espírito que pensa através do seu corpo estético ou do corpo sem órgãos, à partir das ações recíprocas e simultâneas do encontro de múltiplas formas, produzindo novas realidades e novos mundos.

As Coisas não têm Paz

"Não é este o fogo Cristão que condena. E sim, o fogo roubado de Zeus por Prometheus e manipulado por Hefesto; senhor dos minérios e fazedor de armas. É o fogo da paixão que assombra e enternece, conduzindo a humanidade à destruição e ao progresso." (ABCEM Revista – Edição 81 )  http://www.abcem.com.br/revista_materia.php?Codigo=437

O músico e compositor Arnaldo Antunes,  escreve na Letra de "As coisas", musicada por  Gilberto Gil, que embora as coisas tenham "... peso, massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor, posição, textura, duração, densidade, cheiro, valor, consistência, profundidade, contorno, temperatura, função, aparência, preço, destino, idade, sentido" elas "... não têm paz". Esta "ausência de paz nas coisas", que chamaremos aqui de "furor",  pode ser tomada como  princípio da infinita impermanência que habita o mundo dos viventes;  "o fogo da paixão que assombra e enternece", que  garante a transitoriedade de arranjos instituídos em permanente transformação, através do movimento gerado pela  inquietude.

Quando nos deparamos com o confronto entre as forças da natureza e os agrupamentos humanos organizados em sociedades, nas suas sucessivas transições, encaramos a coexistência de multiplicidades transversais e intercomunicantes, onde populações heterogêneas de "coisas sem paz" movimentam-se continuamente, empurradas pelo seu próprio furor em infinitas direções. A forma como se organizam  e os pontos de inflexão destes movimento dificulta a antecipação e o mapeamento dos  instantes específicos onde direções são alteradas, arranjos desfeitos e relações combinadas. Os agenciamentos de multiplicidades heterogêneas se sucedem, movidos por uma potência que é puro devir.

  Desta forma, a impermanência pode ser entendida como fluxo de um devir,  intransitivo e sem códigos de filiação, semelhanças ou equivalências,  assumido como uma "duração pura", onde os intervalos seriam apenas o resultado da captura e do registro, em um determinado plano ou território, de um movimento infinito. Nestes territórios  específicos os agenciamentos são constituídos e se dissolvem, aparecem e desaparecem, organizam-se e se desmontam, reunindo "...animais, vegetais, microorganismos, partículas loucas, toda uma galáxia".  Assim, seria arriscado acreditar numa ordem lógica que permitisse a apropriação ou antecipação desta passagem pelos planos, apontando direções para suas inúmeras possibilidades, através da leitura objetiva dos seus registros grafados nos instantes do movimento.

Toda tentativa de previsão das alternâncias dos movimentos que produzem a desterritorialização de determinados agenciamentos é inútil, uma vez que a busca de semelhanças com outros intervalos mostra-se infrutífera, já que os registros disponíveis limitam-se a apontar algumas possibilidades, meramente estatísticas que, de forma alguma, contam com algum princípio de certeza nas suas atualizações presentes. A partir dos agenciamentos  traçam-se diversas transversalidades por onde escoam um sem números de seres e mundos, que não se deixam compreender por um esquema de  filiação, mas sim, como um movimento que apenas nos permite reconhecer  a posição destes mundos,  ou o conjunto das posições de seus seres inquietos, fervilhantes, marulhantes e espumosos, uns em relação aos outros, em toda sua multiplicidade.

Contudo, este alto componente de imprevisibilidade presente no fluxo do devir que atravessa a realidade dos nossos arranjos sociais, ao invés de instaurar um clima de total desconfiança, que iniba qualquer avaliação descricionista, deve inspirar um esforço do pensamento para o seu aprofundamento nas regiões de um devir habitado por "ondas inomináveis e partículas inencontráveis". Deve inspirar uma tentativa de traçar pontos de fuga por onde seja permitido visualizar estes conteúdos que se alternam continuamente, em uma empreitada  que acompanhe estas mudanças de natureza e por onde estas passagens não sejam interrompidas, mas sim perseguidas nas bordas de cada território onde se dão os arranjos das múltiplas e heterogêneos partículas.

"É que ninguém, nem mesmo Deus, pode dizer de antemão se duas bordas irão enfileirar-se ou fazer fibra, se tal multiplicidade passará ou não a outra, ou se tais elementos heterogêneos entrarão em simbiose, farão um multiplicidade consistente ou de co-fundamento, apta à transformação. Ninguém pode dizer onde passará a linha de fuga" (Gilles Deleuze - Mil Platôs)

Diante da imprevisibilidade dos movimentos e  impermanência dos arranjos, onde tudo que é sólido se desmancha no ar, como conseguir traduzir estes movimentos sem incorrer no risco de produzir registros que estejam sempre localizados no passado, uma vez que a velocidade das partículas arranjadas em uma configuração qualquer "não para de dividir o que acontece num já-aí e um ainda-não-aí, num tarde-demais e num cedo demais simultâneos, num algo que ao mesmo tempo vai se passar e acaba de se passar" (Gilles Deleuze - Mil Platôs) . Este intento não será possível  a não ser que se constitua um espaço, um campo ou um plano,  onde as coisas saiam do seu estado caótico ou de total insignificação. Onde o pensamento consiga tocar as visibilidades que se sucedem num ritmo frenético de uma velocidade absoluta. Plano onde se permita descrever, em termos conceituais, os sentidos que chegam às portas da percepção sensível, cuja possibilidade se apresenta, a princípio e até então,  como prerrogativa das formas estéticas de representações pictóricas, plano este que interponha-se  ao movimento na forma de um limiar ou uma borda por onde fluam o devir e as multiplicidades.

Diria que o espaço das bordas seria o melhor lugar (ou talvez um não- lugar) para se acompanhar a passagem dos conteúdos, caso este espaço assuma uma dimensão  de  estabilidade temporária. Local onde se emerge uma dimensão máxima provisória entre os conteúdos que não param de se transformar, e onde estes serão recortados de forma a serem lidos em suas interseções, dissolvendo-se em seguida para assumir uma nova natureza.  Este espaço transitório ou espaço de circulação não funciona a partir de qualquer expectativa de reconhecimento ou  princípio indenitário. Ele não remete a um conjunto de semelhanças  através do qual se possa seguir as sequências que estejam conectadas por parentesco, descendência ou filiação. Ao contrário, é o espaço  por onde o fluxo do devir assume seu caráter de contínua impermanência, e através do qual pode-se, ao máximo, estender linhas de fuga por onde se consiga grafar o registro de sua passagem. É o local onde tudo se torna imperceptível mas onde o imperceptível é visto e ouvido.

Tomando emprestado a expressão de Gilles Deleuze, chamaremos este espaço de "plano de consistência".

"É preciso pensar esse mundo onde o mesmo plano fixo, que chamaremos de imobilidade ou de movimento absoluto, encontra-se percorrido por elementos informais de velocidade relativa, entrando neste ou naquele agenciamento individuado, de acordo com seus graus de velocidade e de lentidão. Plano de consistência povoado por uma matéria anônima, parcelas infinitas de uma matéria impalpável que entram em conexões variáveis". (Gilles Deleuze - Mil Platôs)

E é através deste plano de consistência que poderemos observar os últimos movimentos do mundo sobremoderno no seu corpo econômico, que vem despertando uma série de avaliações, previsões e palpites, como diagnósticos de seu movimento pregresso (já-aí)  e receitas para seu desenvolvimento futuro (ainda-não-aí). E a definição de tais movimentos não deverá se dar através das formas, substâncias ou funções que os agentes exercem na trama social, mas sim pelo conjunto de elementos materiais que lhe pertencem nas suas relações de movimento e repouso de velocidade e lentidão.

Uma das mais conhecidas propostas deleuzianas foi a da aproximação do capitalismo a esquizofrenia. Sem querer reduzir a potência desta comparação, mas com objetivo de recortar o elemento de maior  potência aproximativa dos dois universos, diríamos que as linhas de fugas que acabam convergindo em ambos os arranjos, seria a da inadaptação a qualquer configuração essencial, que venha estabilizar a progressão em velocidade diferencial de suas partículas. A falta de paz dos elementos constitutivos destas duas progressões se caracterizam por um alto grau de mobilidade, que permite a reconstrução de arranjos que se sucedem de forma descontínua, ao ponto de se supor um corpo sem órgãos onde as funções são substituídas pelo grau de mobilidade de seus elementos em relação.

" Isto funciona por toda a parte: umas vezes sem parar, outras descontinuamente. Isto respira, isto aquece, isto come. Isto caga, isto fode. Mas que asneira ter dito o isto. O que há por toda a parte são máquinas, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com as suas ligações e conexões. Uma máquina-órgão está ligada a uma máquina-origem: um emite o fluxo que a outra corta. O seio é uma máquina de produzir leite e a boca uma máquina que se liga com ela. A boca no anoréxico hesita entre uma máquina de comer, uma máquina de falar, uma máquina de respirar". (Giles Delleuze - O antí-édipo - capitalismo e esquizofrenia)

A sociedade capitalista sobremoderna, enquanto agenciamento econômico-social, abre-se ao plano de consistência com todas as sua linhas de fugas que, a exemplo da esquizofrenia , carregam uma potência subversiva que coloca em crise o espaço substancial, homogêneo, herdado da geometria grega arcaica, em proveito de um espaço acidental, heterogêneo, onde as partes, as frações, se tornam atomização, desintegração, marcas visíveis que favorecem todas as transmigrações das funções, que são substituídas pelo arranjo dos conteúdos em progressão contínua, a partir de suas velocidades diferenciais.  Tempo e espaço são engolidos pela velocidade, criando uma desorientação física. A passagem de uma situação, e de um ambiente para outro não está subordinada a alguma continuidade ou relação espacial evidente. O deslocamento por áreas externas é composto por uma multiplicidade de   eixos variados que se atropelam em um ritmo alucinante. Assim como na esquizofrenia, onde há uma fragmentação da estrutura básica dos processos de pensamento, o capitalismo sobremoderno e suas invenções  são o reflexo deste processo de fragmentação. Introduzindo os fragmentos em uma fragmentação sempre nova, através do  aumento da velocidade do tráfego dos conteúdos por espaços  de  circulação ou não-lugares, cria espaços onde é impossível apelar para as sínteses indenitárias que remetam a associações por analogia. Nestes não-lugares  novos agenciamentos surgem e desfazem-se quase que instantaneamente, grafando apenas o rastro de sua rápida passagem.

Assim, o código de registro das tramas sobremodernas aproxima-se cada  vez mais dos códigos delirantes da esquizofrenia. Em sua fluidez, os códigos sobremodernos passam de um a outro registro, num veloz deslizar,  não dando nunca duas vezes seguidas a mesma explicação, não invocando nunca a mesma genealogia e não registrando nunca do mesmo modo o mesmo acontecimento. A sobremodernidade convive com a falta de paz nas coisas e suas disjunções múltiplas não mais como um quadro patológico  que necessita ser domesticado, mas sim, como o cerne de sua própria constituição. A partir daí impõe-se que o seus registros sejam lidos através  de um plano de consistência que se componha do movimento e do repouso dos conteúdos, de sua velocidade e lentidão relativa, as quais permitirão que as partículas cheguem  rápido, ou não, para operar uma passagem, um devir ou um salto. O fracasso dos arranjos faz parte do próprio plano, junto com as inúmeras composições das relações dos conteúdos nos agenciamentos e nas tramas, e não deve ser alardeado como um prognóstico de uma nova ordem a partir de uma referência de filiação evolucionista, uma vez que as linhas flutuantes dos agenciamentos são capazes de dobrar os devires em uma nova relação de  seus elementos e materiais, que dançam, fundem-se e dissolvem-se eternamente na natureza das coisas e do mundo.

"Plano fixo da vida, onde tudo mexe, atrasa ou se precipita. Um só Animal abstrato para todos os agenciamentos que o efetuam. Um só e mesmo plano de consistência ou de composição para o cefalópode e o vertebrado, pois bastaria o vertebrado dobrar-se em dois suficientemente rápido para soldar os elementos das metades de suas costas, aproximar sua bacia de sua nuca, e juntar seus membros a uma das extremidades do corpo, tornando-se assim Polvo ou Sépia, tal um saltimbanco que joga seus ombros e sua cabeça para trás para andar sobre sua cabeça e suas mãos".(Gilles Deleuze - Mil Platôs)

Do Centro Impermanente

 

" Dar um centro é, por um lado, organizar, orientar, equilibrar um movimento, desencadear as suas forças, permitir o seu envio e libertar o jogo dos elementos no interior da forma total mas, por outro (e ao mesmo tempo), é pregá-lo em um clausura irremediável e opressiva... O jogo revela-se, pois, um jogo fundado, constituído a partir de uma imobilidade fundadora e de uma certeza tranquilizadora, ela própria subtraída do jogo. A partir desta certeza a angústia pode ser dominada ". (Às Margens - A propósito de Derrida - Organização Paulo Cesar Duque-Estrada)

O conhecimento da realidade do mundo no qual o homem se insere, apresenta-se, insistentemente, como um desafio que tem figurado nas diversas etapas da organização histórica da existência humana, bem como de seu pensamento. A partir desta perspectiva, surge uma dificuldade que se coloca de uma forma incômoda. Como atingir este intento, partindo de sua (do homem) clara finitude e perante a insegurança provocada pela instabilidade do fluxo de um devir que perpassa esta realidade, e do qual, sua vida é o principal exemplo?

O homem lançado no mundo contempla seu curso, que prossegue independente de sua existência, obrigando-o a buscar, sob o risco de sua sucumbência, uma integração a este movimento. Como, porém, buscar a estabilidade numa realidade marcada por um ritmo de freqüentes e múltiplas transformações, das quais a sua própria vida participa?

Uma direção, naturalmente apontada, parece ser a construção de um plano, estaticamente imóvel e uno, que expugne toda e qualquer mobilidade, devir ou multiplicidade. Contudo, este somente poderá ser elaborado a partir de uma representação colocada paradoxalmente às originais impressões provenientes de um primeiro confronto, transformando-se em uma tentativa de ordenação desta inerente instabilidade transitória.

Quer partamos das primitivas práticas mágicas, das diversas concepções religiosas, das formações hierarquizadas de Estado, das inúmeras correntes do pensamento filosófico ou dos elaborados construtos teórico-científicos, esbarramos no esforço de se tentar minimizar as incertezas e insignificações da avalanche de uma descontínua transitoriedade. Todo ele se concentra na busca por uma unidade essencial ou universalidades constantes, sendo na esperança de extrair um arcabouço para o mundo, ou na tentativa de obter segurança, a partir da organização e controle do mesmo. Da necessidade de garantir sua sobrevivência, o homem se estabelece num constante confronto com as forças da natureza, fazendo da captura destas forças uma pré-condição básica de sua autopreservação e de seu autodesenvolvimento. O jogo deste controle se processa através de diversos mecanismos que se sucedem no fluxo das civilizações, sob a égide de princípios ordenadores.

Fugindo do caos da insignificação brotam as construções em categorias individuais e sociais que vão preenchendo um escopo para a realidade. Contudo, a ameaça do caos se apresenta de uma forma insistente, exigindo representações em busca de esferas estabilizantes. Esta parece jamais figurar na ameaçadora avalanche da descontinuidade do mundo apreendido pelos sentidos. Sendo assim, a tendência inevitável é o seu transporte para um mundo além da percepção sensível, numa dimensão ontológica, essencialmente ordenada. O ser fica, assim,  resguardado de toda multiplicidade aparente, e a civilização da ameaça do devir.

Porém a marcha do mundo da transitoriedade sugere sua superioridade sobre as construções estabilizadoras, visto que elas necessitam ser constantemente reelaboradas, através de novos dispositivos e instituições. Sociedades primitivas segmentárias são apropriadas e incorporadas pela soberania dos Estados. Cai a verdade absolutizada, resguardada no universo do mito, surge o logos como realidade capaz de harmonizar a verdade ameaçada pelas contradições estabelecidas. Frente ao paradoxo da dúvida, o pensamento desenvolve critérios absolutos para o resgate da unívoca verdade do ser, que se desloca desde a ascensão ao mundo das idéias eternas, passando pelas realidades essenciais, portadoras da ordem em si mesmas, pela eficácia do conhecimento de um espírito absoluto e pelo desenvolvimento de uma racionalidade científico-tecnológica.

Todas estas tentativas visam à apreensão da verdade do ser, como ponto de equilíbrio de uma realidade desorganizada, e se reproduzem historicamente através de específicas organizações no âmbito das civilizações, estabelecendo simultâneas ou sucessivas configurações. Estas configurações históricas se expressam através de organizações na esfera da ordem social. Nestas organizações são harmonizadas as forças que agem no seu interior, como pré-condição necessária à subsistência da ordem em si mesma. Cada organização se estabelece na medida em que consegue realizar o equilíbrio dos poderes individuais e sociais, e entra em declínio, justamente, quando perde esta capacidade de coesão. A composição destes poderes é marcada pela inter-relação de movimentos individuais e coletivos, e pelo processo de interação da realidade indivíduo-mundo, tanto no que se refere à sua natureza biológica, quanto social, determinando um equilíbrio temporário e viabilizando a específica configuração constitutiva de uma ordem, ou o seu sentido.

Uma ordem pode ser entendida como uma dimensão de estabilidade; uma configuração onde se relacionam diversos elementos e onde existe uma variedade de conteúdos em constante movimento. Ela deve ser capaz de organizar o espaço onde matérias diversas se relacionam por intermédio de linhas de articulações, por onde as trocas se dão em diferentes quantidades e velocidades do “... caos do Ser, sempre vivo, sempre atuante, em que uma multiplicidade de formas materializa-se a partir de um sem-número de elementos” [1]. A ordem captura o devir através de modelos que reduzem o número de dimensões infinitas que a multiplicidade abre como possibilidade. Ela define um estatuto para o estado das coisas e para os enunciados, e relaciona os acontecimentos de forma a organizá-los em uma configuração específica.

Ao recuarmos no tempo e apelarmos para uma série histórica, podemos assistir a uma coexistência de modelos e possibilidades dentro de configurações específicas; sistemas dinâmicos organizados sob a ordem de chefes tribais, reis, magos, sacerdotes, juristas, déspotas ou legisladores de Estado.  A história tão-somente traduz em sucessão uma coexistência de devires. Uma ordem planifica um conjunto de relações de produção, quer sejam elas subjetivas, econômicas, políticas ou sociais, que unem, em um determinado momento as matérias heterogêneas, o meio onde estas se relacionam e o código de enunciados dominantes historicamente determinados,  remetendo a um estado de mistura de corpos em uma sociedade.

A base de uma organização social pode ser vista, à luz de todo os movimentos que a antecederam, sempre caracterizados pela ação do devir e pelas tentativas de controle e redução de suas infinitas possibilidades, através de dispositivos de captura do acontecimento, da criação e da produção do novo, a partir de um centro que visa equilibrar os agenciamentos. Os dispositivos de captura do acontecimento em uma determinada ordem se distribuem pelos processos individuais e coletivos, que através de um movimento de troca, vão construindo sentido para uma realidade móvel, mantendo-a em equilíbrio. Estas linhas de articulação funcionam enquanto conseguem escoar o acontecimento e perdem sua eficácia quando o movimento encontra novas linhas de fuga, que irão escoar o acontecimento através de novas segmentariedades. Daí a sucessão de diversas ordens por centros impermanentes, onde as matérias, corpos e enunciados são distribuídos em diferentes arranjos, onde os saltos ou rupturas que se podem detectar no movimento se traduzem em diferentes organizações sociais. Quer seja numa “Ordem Tribal”, numa “Ordem Feudal” ou numa “Ordem Capitalista” cada ordem assume as matizes específicas de captura dos acontecimentos, distribuindo o devir em novas dimensões através de um princípio ordenador do caos.

Em organizações como a de povos nômades, das pequenas  sociedades agrícolas “primitivas”, ou dos Estados Nacionais Modernos, o principio ordenador visa capturar o fluxo do devir que atravessa a máquina social em sua mistura de corpos e conteúdos, expugnando deles a insignificação e os arranjos caóticos. Esta mistura de corpos compreende todas as “atrações e repulsões, as simpatias e as antipatias, as alterações, as alianças, as penetrações e as expansões que os afetam uns em relações aos outros”. Assim, cada máquina social possui seu princípio ordenador que, em última instância, engendra um modo de produção específico destas formações sociais. Mais do que um modo de produção determinado, estas formações sociais compõem-se pelos processos que definem os aparelhos de captura que engendrarão os amálgamas e simbioses, dos quais os modos de produção dependem. Desta forma não é a máquina social que “supõe um modo de produção determinado” mas é a máquina social que “faz da produção um modo”.


[1] Carlyle, Thomas – Selected Writings – On History – p.95