sexta-feira, 25 de março de 2011

Sobrenodernidade: A Era da Diferença Excedente"
















Em tempos que os discursos se espalham pela grande rede informacional, desmaterializada e não localizável, a topologia dos territórios enunciativos reivindica a  noção de vazio de um (ciber) espaço que abre-se como (não) lugar onde se processam as conexões rizomáticas entre as formas de conteúdo e as formas de expressão, que cada vez mais voláteis, viajam na dimensão de uma jornada sem partida ou chegada. Faz-se necessário, assim, para que se consiga traduzir os registros grafados pela passagem dos corpos e dos enunciados, que a subjetividade sobremoderna encontre uma nova linguagem, apta a descrever as intensidades circulantes na potência de seu acontecimento.

Penso na discussão deleuzianano,  levada a cabo no seu ensaio sobre a obra de Kafka,  sobre a possibilidade de uma “literatura menor”, como tentativa de utilização dos significantes de uma língua “standard”, levando-os ao limite de sua capacidade de dizer as coisas. Há de se buscar, segundo ele, matérias de expressão que, a despeito da repetição dos mesmos signos, sentenças e códigos linguísticos, libertem-se da cadeia original de significados. Isso não passaria pela invenção de novas palavras ou de novas línguas, mas diz respeito ao seu uso menor. Menor, na perspectiva de um espaço infinitesimal por onde se consiga fazer passar os conteúdos, corpos, frequências e intensidades, evocando a equivocidade das palavras e intervenção recíproca entre elas e as coisas.

“… a pure and intense sonorous material that is always connected to its own abolition – a deterritorialized musical sound, a cry that escapes signification, compositions, song, words – a sonority that ruptures in order to break away from a chain that is still all too signifying…sound doesn’t show up here as a form of expression, but rather as an unformed material of expression”. ( Gilles Deleuze an Félix Gattari – Kafka, Toward a Minor Literature)

John Cage costumava dizer que quando ouvia o que tradicionalmente se costuma chamar de música, era como se ele ouvisse alguém falar, expressando suas ideias e sentimentos. Porém, quando ele ouvia o som do tráfego, entrando por sua janela no 17o andar de seu apartamento,  não percebia nenhuma fala, mas sim o som agindo de forma pura. A atividade do som para Cage, se apresentava a partir de suas intensidades, limitando-se a expressar suas frequências, sem que ele sentisse a necessidade de qualquer fala. 

“I love the activity of sound. What it does is it gets louder and quieter, and it gets higher and lower, and it gets longer and shorter, it does all of the things. I am complete satisfied with that. I don’t need sound to talk to me … I love sounds just as they are” (John Cage About the Silence - http://www.youtube.com/watch?v=pcHnL7aS64Y).

Nos pares das expressões e dos conteúdos que se tocam no horizonte sobremoderno, falta a ordenação que garanta um único significado. Já que não se necessita mais das fixas marcações das formas de tempo e espaço, tem-se a liberdade de perseguir as variações que se estendem a um plano infinito de significantes, sem que se careça da linearidade das combinações dos rígidos pontos. Os corpos, finalmente, podem bailar ao sabor de uma música que não se sabe de onde vem e para onde quer levá-los. Se os limites do ponto foram implodidos pela lascívia do movimento absoluto, abre-se o vazio que se estende no sopro das ausências, brancuras e espaçamentos, elevando os conteúdos a enésima potência. Como a base não aponta precisão, o expoente está livre para vasculhar a eternidade de um silêncio que já não emite som algum que reivindique uma harmonia matematicamente estruturada. Sobram, assim, a falta de direção, onde o meio como presente contínuo, não cansa de se desintegrar e se reconstruir na dimensão do esquecimento. Nela, os tons aderem a nova interface do tempo, surgida da eternidade de um presente que se move como intensidade do ritmo inercial do acontecimento. Daí a novidade de não se concentrar os significados em nenhuma das arestas da passagem dos conteúdos por qualquer ponto se quer. Os conteúdos erguem-se para mergulhar, em seguida, no círculo que se faz passagem ininterrupta e recíproca do virtual para o atual, sem que se tenha dois estágios mas uma só e única dimensão. Dimensão atonal, onde faltam os pontos que impõe ao mundo o princípio de ordenamento. Se não há um ponto, não existe a possibilidade de solapassá-lo ou ultrapassá-lo, uma vez que não existe uma tonalidade  estável e sim um mundo de multiplicidades sem uma tonalidade determinada.

“…the indistinction of inside and outside leads to the discovery of another dimension, a sort of adjacency marked by halts, sudden stops where parts, gears, and segments assemble themselves” (ibdem).














(Photos Carlos Machado)

A virtualização dos conteúdos e das expressões na sobremodernidade da-se através da volatilização das formas que os sustentam. Esta operação guarda referência com uma “máquina produtora” capaz de desorganizar os arranjos das formas, entenda-se forma, aqui, no sentido dado por Foucault, como a relação entre duas ou mais forças. Se tomarmos o sentido equivalente da mecânica quântica, as formas sobre as quais nos fala o filósofo francês traduziriam-se nas ressonâncias entre frequências. Tal máquina origina-se na intervenção recíproca entre as formas de conteúdo e formas de expressão que modelam mecanismos de abolição dos limites do espaço e do tempo, criando componentes capazes de produzir uma quantidade ilimitada de combinações. As tecnologias do Vale do Silício, cuja ação combinada com a desregulamentação das relações entre conteúdos e expressão, imprimiram uma velocidade vertiginosa ao movimento ora tornado fluxo. Os fluxos que circulam pela rede global que se conecta fora da região espaço-temporal ordinária, desmaterializam as formas e lançam os conteúdos e as expressões no puro vazio das regiões inextensas.

O território das operações financeiras oferece-nos exemplos precisos do processo de virtualização das formas sobremodernas. Se tentarmos localizar, através dos conceitos clássicos de espacialidade e temporalidade, as transações financeiras de milissegundos, onde ativos financeiros são transacionados ao redor do mundo, esbarramos na constatação de que eles acontecem na exata medida da conexão entre conteúdos e expressões, que trafegam virtualizados em bits e bytes, deixando os rastros de sua passagem pelo vazio do ciberespaço, nos broadcasts das mesas  de operações ao redor do globo. Os ativos financeiros (conteúdos) nada mais são do que um movimento contínuo de compra e venda de “posições financeiras”(espacialidade inextensa) através de ordens (expressão) de comprar e vender, processadas em uma velocidade vertiginosa. Em finanças o conceito de “spread” é a diferença entre o preço de compra e de venda de um ativo. A capacidade do processamento de uma grande quantidade de ordens de compra e venda em frações de segundos, gera uma diferença mínima que multiplicada pela quantidade das transações realizadas em alta frequência  gera um excedente que se constitui como um conjunto de forças excedentes, multiplicando a quantidade de recursos em jogo a enésima potência. Daí  o resultado das transações  de ativos financeiros hoje em circulação distarem, em muito, do resultado da compra e venda de bens e produtos produzidos na chamada “economia real”. Tal diferença deve ser entendida a partir do “enriquecimento das atividades, de acoplamentos qualificadores” com bem já nos colocava Pierre Lévy, que libera um excedente potencial  “descolado dos constrangimentos materiais” e portanto assumidos como forças não relacionadas.

Podemos expandir esta análise retirada do mundo das finanças  aos diversos signos que permeiam a cultura sobremoderna, onde mundos virtuais atingem seu estágio mais avançado de desmaterialização. Como nos dizia Lévy, os signos então “tornam-se ubiquitários na rede – no momento em que eles estão em algum lugar, eles estão em toda parte – e interconectam-se em um único tecido multicolor, fractal, volátil, inflacionista…”. Tendo os conteúdos e expressões se libertado do limite da forma através da virtualização de sua ação recíproca, eles são capazes de produzir um excedente virtual que é a potência que sustenta o fluxo. Através do tráfego veloz entre as diversas redes, estes conteúdos e expressões “digitalizados” elevam-se em direção ao infinito de possibilidades, face a capacidade indefinida da combinação destes dados, no processamento através de diversas interfaces.

Se ao longo dos últimos 40 anos esta virtualização surge como produto das novas tecnologias do ocidente, relacionadas com as formas de expressão de uma sociedade que procurava  subverter a ordem de seu tempo, hoje elas assumem, definitivamente, um papel de transformação e acabam abrindo um espaço de subversão nas sociedades do oriente, num mundo composto por grandes blocos interconectados em rede, por onde trafegam formulações enunciativas – sentenças, códigos da língua e dinâmicas de saber e poder, responsáveis pela regulação de novas regulações sociais. Na modernidade tais códigos se estabeleceram num território que tinha na capacidade de esclarecimento sua principal potencia, cujos ecos comandaram o processo de consolidação de um dizer apoiado em signos de uma humanidade que se constituiu através dos esforços para fixação de um espaço que resguardasse o ser da transitoriedade e instabilidade do fluxo do devir, de cuja existência individual e coletiva dos homens e da sociedade são o principal exemplo. Exemplo que grita e explode em linhas de fuga de um devir louco. Paradoxalmente a este intento de fixação do sentido, seguem-se estratégias expressas nos códigos enunciativos, onde a desregulamentação e a reivindicação pela autonomia do sujeito da enunciação não encontrava nenhum apoio que não o de sistemas que passaram a regular os conflitos e litígios entre os conteúdos constitutivos da cultura dita europeia ou ocidental.

A mediação deste conflito requer um mecanismo que seja capaz de regular os encontros, embates e batalhas que ameaçam a integração dos indivíduos em uma realidade dinâmica e de múltiplas transformações. Sem apelar para heteronomia, autoridade ou tradição, o elemento regulador vai ter no conhecimento universal e no escrutínio pela razão das formas naturais ou institucionais,  a novidade de um fundamento onde vem repousar o modelo de verdade da modernidade europeia, espalhado aos quatro cantos da terra. E é justamente a partir da reivindicação da autonomia do sujeito e na sua liberdade que a modernidade assistiu a  ilimitada multiplicação das base dos seus códigos de saber e poder. Apoiado nas novas tecnologias vemos surgir as novas formulações enunciativas, onde o conhecimento perde o seu caráter de universalidade e assume a dimensão informação circulante, múltipla e particular, sobremaneira desregulamentada, volátil e instantânea; “... fase da comunicação e a informação digital ... permitindo escapar do tempo linear e do espaço geográfico. Entram em jogo a tele presença, os mundos virtuais, o tempo instantâneo a abolição do espaço físico, em suma, todos os poderes da transcendência e de controle simbólico do espaço e do tempo ... Ela se compõe como um zapping de signos, como apropriações de bits num espaço-tempo em profundas transformações” (André Lemos).















( Photos by Carlos Machado)


Isso nos deixa como que estatelados, numa situação de perplexidade, mas essa perplexidade não vem de um descaminho, de uma falta de caminhos. Vem do excesso de riqueza, vem do amontoado de informações, do excesso... que se renova sempre, e nós não podemos mais dominar tudo isso... não saber o que nos espera depois da próxima esquina"(Gerd Bornheim, citação extraída de aula ministrada na Faculdade de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em 1995).

Assim, a sobremodernidade se caracteriza pelo excesso dos elementos onde se apoiaram a cristalização dos fundamentos da era que ficou conhecida como modernidade, sendo a autonomia do sujeito do conhecimento o principal deles. O sujeito moderno, abandonado pelos deuses e rebatido na sua própria finitude encontra na razão a principal força de construção do seu mundo. Contudo os caminhos do “animal racional” desembocaram, mais uma vez no “caminho trilhado pelos homens de duas cabeças” e se tornaram os descaminhos que os levou a crise e reconstrução desta realidade. Desde sempre marcada pelo ritmo das profundas e frequentes transformações da impermanência e da transitoriedade, a ordenação dos espaços de saber e de trânsito das forças relacionadas encontram na diferença excedente sobremoderna, seu novo fundamento. Fluido, volátil, desregulado, transitório, virtual e definitivamente assombrado pelo imponderável, incapaz de ser mensurado pelos instrumentos da razão instrumental.

Se no final do século XX o “fim da história” surge como a constatação de que não haveria mais ideais de mundo a serem perseguidos, o início do século XXI irrompe com a potencia da multiplicidade de novas e infinitas possibilidades, onde o excedente virtual gerado pela aceleração das trocas entre os conteúdos e as expressões interconectados num espaço inextenso e um tempo descronologizado, orientam o fluxo rizomatico através de (não) lugares, onde as fronteiras não são mais capazes de fixar ou circunscrever os elementos das sociedades e dos agrupamentos humanos. Estados, formas de governos, sistemas econômicos, religiões, artes e ciências, tornaram-se capital circulante de uma economia desejante da  dimensão inflada de um “rio sem margem, superfície ou fundo”, que corre sem partidas ou chegadas, num meio que se transforma em cada movimentos, salto ou ruptura desse espaço unidimensional.

Se os últimos movimentos tectônicos no Japão desconstruíram o território nipônico os eventos políticos que tomam lugar no norte da África e no Oriente Médio apontam para a desconstrução de um território de poder, sem que se possa prever a nova forma que irá surgir daí. A emergência de um modelo de mundo onde o tráfico dos conteúdos e expressões se dão numa velocidade vertiginosa não cansa de cobrar a conta do excesso de uma diferença que desorganiza os espaços de circulação do capital sobremoderno e a virtualização das trocas entre as forças atualizadas em cada um destes (não) lugares, identidades locais e formas estabelecidas, apontando realidades que deverão ser marcadas pela singularidade de suas novas configurações, sem que seja impossível determinar qual mundo surgirá destas novas relações globais.






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