Esta visão cerebral da evolução parece hoje imprecisa e dir-se-ia que a documentação é suficiente para demonstrar que o cérebro se beneficiou do progresso da adaptação locomotora em vez de causá-lo. É por isso que a locomoção será considerada aqui como o facto determinante da evolução biológica (Andre Leroi-Gourhan, El gesto y la palabra, 1971, p. 30)
Para Leroi-Gourhan o papel da locomoção na evolução do cérebro humano se relaciona com a postura bípede que permitiu aos primeiros hominídeos caminharem eretos, desempenhando, assim, um papel crucial no desenvolvimento cerebral ao longo da evolução biológica. A transição para a locomoção bípede teria liberado as mãos humanas para atividades além da locomoção, como o uso de ferramentas e a manipulação de objetos. Isso teria levado a uma maior complexidade na interação com o ambiente, exigindo habilidades cognitivas mais avançadas para coordenar essas atividades.
Além disso, a postura bípede teria alterado a estrutura do crânio e do sistema nervoso, especialmente do cérebro. Com a necessidade de equilíbrio e coordenação durante a locomoção ereta, o cérebro teria passado por adaptações para processar informações sensoriais de maneira mais eficiente e para coordenar os movimentos do corpo de forma mais precisa. Essas mudanças teriam levado ao aumento do tamanho e da complexidade do cérebro humano ao longo do tempo evolutivo. Leroi-Gourhan sugeriu que o desenvolvimento da locomoção bípede foi um fator chave na evolução do cérebro humano, contribuindo para a emergência de habilidades cognitivas avançadas, como a linguagem, a cognição espacial e a capacidade de planejamento.
Se a locomoção foi fundamental para o desenvolvimento do cérebro a necessidade de comunicar as urgências desse animal humano, segundo Nietzsche, foi fundamental para o aparecimento da consciência, que surge através da atividade linguística. “Trata-se de raças inteiras e de gerações sucessivas: quando a necessidade e a miséria forçaram por muito tempo os homens a se comunicar, a se compreender reciprocamente de uma maneira rápida e repentina” (Friedrich Nietzsche, A gaia ciência, 2000, p. 250 e 251). Foram as necessidades diante das ameaças do mundo que fizeram o homem-que-nós-somos ser capaz de exprimir sua aflição, de tornar-se inteligível, forjando uma consciência que fosse capaz de saber qual era a sua disposição de espírito e ao mesmo tempo saber e comunicar o que pensava.
Em resumo, o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (não da razão, mas somente da razão que se torna consciente de si própria) se dão as mãos. Acrescentemos que não é somente a língua que serve de intermediário entre os homens, mas também o olhar, a pressão, o gesto; a consciência das impressões de nossos próprios sentidos, a faculdade de poder fixá-los e determiná-los, de alguma forma fora de nós mesmos, aumentaram ao ritmo com que aumentava a necessidade de comunicá-los a outros por meio de sinais (Friedrich Nietzsche, A gaia ciência, 2000, p. 252).
Face a perspectiva evolutiva que forjou o homem-que-nós-somos através da linguagem e da consciência, as experiências de Fernand Deligny com as crianças autistas com as quais conviveu nas montanhas de Cévennes, pontua uma percepção do autismo como modelo de uma existência à margem da consciência e suas construções linguísticas. Longe de ser uma patologia, o autismo nos faz defrontar com um desvio que nos coloca diante das marcas da permanência de um humano que não se limita pelas construções do homem-que-nós-somos. As experiências de Deligny em Cévennes nos colocam diante de um humano que não se confunde com o lugar do sujeito linguageiro e consciente. Tratar-se-ia de chegar a um humano que não se reduzisse à função simbólica da linguagem, mas que ao invés disso prevalecesse a partir de um aparelho psíquico do qual a linguagem está ausente. O homem-que-nós-somos deve o seu ser à instituição simbólica que acompanha o seu aparecimento no mundo e o inscreve numa teia de significações que aos poucos o fazem despojar da natureza e do inato, que dão lugar às finalidades que se oferecem ao ser enquanto sujeito humano em seu processo de subjetivação pelo acesso à linguagem e ao universo simbólico.
Tudo se passa como se, para nós, e pela necessidade de ter de usar a linguagem, tivéssemos de fazer constantemente um desvio pela história acumulada, areias movediças onde se encontra a originalidade precisa daquilo que cada um percebe. Não sou autor da fórmula de que ‘o adquirido invade o inato’. De uma forma ou de outra, diz-se. Diz-se também: “O adquirido substituiu o inato”, o que equivale a dizer que o homem conseguiu domesticar-se inteira, completamente, e neste estado de domesticação inveterada, a ela se agarra, com a energia do desespero" (Fernand Deligny, OEuvres, 2017, p. 1182).
Se tomarmos uma simples taxinomia que parta do reino animal, nenhuma das diferenças responsáveis por agrupar as classes, as ordens, as famílias e os gêneros são capazes de separar os indivíduos do reino animal tanto quanto aquilo que que caracteriza o gênero Homo, através de sua única e exclusiva espécie viva, a Homo Sapiens. Em Instintos e instituições (1955), Deleuze irá afirmar que o “homem não tem instintos, ele faz instituições enquanto um animal que está em vias de se despojar da espécie” (Gilles Deleuze, Instintos e instituições, 2006, p. 31). Tanto os instintos quanto as instituições, para Deleuze, operariam as sínteses entre as tendências e os objetos que as satisfazem. Contudo, Deleuze destaca que quanto mais perfeito o instinto, mais ele pertence à espécie. De outro modo, quanto mais aperfeiçoável ele é, mais ele está submetido à variação de circunstâncias de um sistema de antecipação capaz de produzir a gratificação. Dessa forma, o homem vai aos poucos se despojando da espécie fazendo com que das urgências do animal devenham exigências que vão se integrando em suas instituições. É assim que “o instinto traduziria as urgências do animal, e a instituição as exigências do homem: no homem, a urgência da fome devém a reivindicação de ter pão” (Gilles Deleuze, Instintos e instituições, 2006, p. 31). São essas exigências, então, que vão compondo a essência do homem-que-nós-somos, esse ser que foi se distanciando de seus instintos por intermédio dos meios sociais como totalidade artificialmente construída que permite que as reivindicações de interesses individuais possam ser satisfeitas individual e coletivamente, constrangendo-os, sabotando-os, transformando-os ou sublimando-os. A sociedade surgiria, assim, como um conjunto de convenções fundadas na perspectiva de atender às exigências e reivindicações dos homens, enquanto as instituições seriam os meios oblíquos de satisfação das tendências como meio de sua reflexão e esquadrinhamento. Desta forma, no homem, a satisfação das tendências se daria na medida da tendência refletida a partir da sua capacidade de inventar os meios artificiais que libertam o organismo da natureza e o submetem à razão, operando, deste modo, o seu despojamento da espécie. Os instintos seriam os meios naturais de satisfação das tendências ou das urgências do animal, enquanto as instituições são os meios artificiais de satisfação dos indivíduos conscientes. Nos temos dessa satisfação Deleuze irá afirmar:
Às vezes, reagindo por natureza a estímulos externos, o organismo retira do mundo os elementos de satisfação de suas tendências e de suas necessidades, elementos que, para diferentes os animais, formam mundos específicos. Outras vezes, instituindo um mundo original entre suas tendências e o mundo exterior, o sujeito elabora meios de satisfação artificiais, meios que liberam o organismo da natureza ao submetê-lo a outra coisa e que transformam a própria tendência ao introduzi-la em um novo meio; é verdade que o dinheiro livra da fome, com a condição de se tê-lo, e que o casamento poupa do trabalho de se procurar um parceiro, mas traz consigo outras obrigações. Isto quer dizer que toda experiência individual supõe, como um a priori, a preexistência de um meio no qual a experiência é levada a cabo, meio específico ou meio institucional. O instinto e a instituição são as duas formas organizadas de uma satisfação possível. (Gilles Deleuze, Instintos e instituições, 2006, p. 29).
Diante de um diferente tipo de registro perceptivo, Deligny se pôs a trabalhar com aquelas crianças em Cévennes a partir de uma crítica ao sujeito, à consciência e à linguagem. Ao invés de enaltecê-los como elementos fundamentais para a elevação do homem-que-nós-somos ao topo de numa hierarquia do reino, ele os acusava de responsáveis por desnaturalizar a espécie. É aí que as análises de Deleuze e de Deligny se encontram, numa clara percepção do despojamento da espécie por parte do homem-que-nós-somos, que irá conferir a natureza humana, por conta de sua artificialidade, um aspecto que a desvincula do instinto e do natural. A incapacidade de perceber o mundo na dimensão que torna o homem-que-nós-somos naquilo que ele é, fazia aqueles indivíduos recortarem outras marcas no mundo, marcas de outra natureza que permitiam a eles novas iniciativas. A natureza daquelas crianças estava desvincula de qualquer construção subjetiva, bem como das reflexões que o sujeito opera no espírito. Fora do lugar do sujeito o ponto de ver daquelas crianças nada trazia da carga simbólica a que fora submetido o homem-que-nós-somos, por isso que para Deligny elas só podiam ser identificadas como indivíduos e não como sujeitos. “Sabíamos que o indivíduo sempre já é um sujeito, diz Louis Althusser. Às vezes não é assim” (Fernand Deligny, OEuvres, 2017, p. 1150). Isso leva Deligny a perseguir um humano sem sujeito, ou uma natureza sem história. Uma tal natureza teria outros marcadores que não se encaixam na função simbólica ou na função fundadora do sujeito, que deixam de fora o fio de significados que evocam a onipotência da linguagem, inescapável para o homem-que-nós-somos. Verifica-se, assim, a ruptura entre o mundo percebido pelo sujeito e o mundo das coisas identificadas pelo ponto de ver do indivíduo, que leva Deligny a indagar: “E por que, em nome de que, a priori, o humano deve ser reduzido à função simbólica?” (Fernand Deligny, OEuvres, 2017, p. 1151). Os marcadores daqueles indivíduos, então, eram de outra natureza e revelavam iniciativas que nada tinham a ver com o que seria o projeto de um sujeito consciente.
No que diz respeito às crianças autistas, de onde vem a falta dessa consciência do ser que é o selo do que o homem pode dizer a si mesmo? Esse não é o meu ponto; o fato é que, na ausência dessa marca cultural, o jeito de ser dessas crianças parece ser de uma natureza que não é a nossa (Fernand Deligny, OEuvres, 2017, p. 1386).
O modo se ser comum àquelas crianças não passava pelos registros que marcam a história da evolução humana, como um despojamento da espécie pelo homem-que-nós-somos. Aqui, poderíamos dizer que as leis da evolução das sociedades e culturas deixou de fora a natureza desses indivíduos vacantes da linguagem, uma vez que suas leis se mantêm vinculadas à ordem das leis da natureza. Desta forma, a natureza desse sujeito consciente e linguageiro é tomada por Deligny como um mito a que se recorre para afirmar a superioridade na hierarquia dentro de um reino. Diferentemente disso, teríamos uma natureza que está aquém do sujeito, do projeto e da identidade consciente que ele chamará de humano-de-natureza. A partir daí o que se tenta fazer é ressignificar o humano, que na sua acepção dominante não passa do resultado de ideias que foram elaboradas para produzir ou reproduzir os meios de redirecionamento das urgências de um animal que passou a se despojar da espécie através de suas instituições nas produções de sua vida coletiva submetida durante milênios de domesticação simbólica. “Isso não é humano, estritamente falando, e em termos de espécie” (Fernand Deligny, OEuvres, 2017, p. 1090). Resgatando o sentido de espécie, reivindicam-se os traços da natureza que fazem do humano um conjunto de instintos não mediados pelo simbólico, onde a relação entre as células de percepção e as células de impulso mantêm a sua integridade não mediada. “É sobre desordem, e sobre Janmari, onde toca aquilo que está além do sujeito e do projeto, e além da identidade consciente, existe o que chamo de humano-de-natureza para marcar claramente que não se trata da natureza do homem, que faz parte da história” (Fernand Deligny, OEuvres, 2017, p. 1156). Ir atrás de um humano que não se confunde com o produto de milênios de dominação simbólica que deu origem ao homem-que-nós-somos; permanecer aquém desse produto, como forma de resistência a adequação aos padrões majoritários que geraram essa orgulhosa imagem dominante. Isso exige a esquiva de uma crença de que a única existência possível é a da criança que já aparece no meio dos referenciais simbólicos de seu círculo social. “Tudo o que a sociedade propõe e sobrepõe como marcos graças aos quais a identidade consciente de cada um será elaborada, será impressa, fundará a natureza do homem, ser da cultura” (Fernand Deligny, OEuvres, 2017, p. 1172 e 1173). É nessa oposição entre a natureza do homem-que-nós-somos e a natureza como capacidade inata de uma espécie de que o homem está sempre em vias de se despojar que surge o humano para Deligny, o humano que é parte da natureza daqueles indivíduos autistas com os quais convivia e em torno dos quais passou a erigir seu pensamento.